O
conto abaixo é de autoria do escritor português Fialho de Almeida.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.acfialhodealmeida.org/DISCOVER.
Boa
leitura!
A
VELHA
Entretanto,
os senhores ficam avisados de que esta história é um pouco triste. Era uma
velha que vivia em companhia do filho, numa aldeia da Bairrada, lá para as
bandas do Luso[1]. E o filho era casado. A mulher dele não gostava da sogra,
como é de uso, e zus duma banda, zus doutra, lá vinha sempre a assanhada da
moça meter-se com a pobre da velha, que tudo ouvia, coitadinha sem jamais
retrucar uma palavra. O seu coração golfava amargura e tormentos, por vezes, naquela
cabana de campônios[2], onde as inércias da doença e a invalidez dos anos,
quase lhe não deixavam mexer palha, da lareira para o quintal, e do quintal
para a lareira.
Por
mais que ela se encolhesse nas estamenhas[3] velhas do seu trajo, por menor que
fosse a bucha[4] arrancada à broa de milho, durante as refeições, sempre o seu
vulto estorvava os outros na cabana, e sempre à volta da banca, sorvidas
gulosamente as últimas colheres de caldo verde, alguém ficava com ciúmes do que
a velha ia mastigando, com os seis trôpegos dentes que ainda restavam na sua
boca murcha de não rir há muito tempo.
Uma
noite, era por dezembro, no sopé[5] do Caramulo, e à vista da Serra da Estrela,
sempre neve, por dezembro! — uma noite, à hora da ceia, os ódios da nora arreganharam
mais vivos contra a velha as suas dentuças peçonhentas. Ela ouviu, ouviu… Mas
daquela vez fora medonho. Deixou cair a colher no fundo da malga[6] em que
comia, e lentamente pôs-se a erguer por sobre os ombros, à guisa de capote, a
saia de estamenha que trazia vestida. E só passado um instante ela disse, em
voz mui baixa, tartamudeada pela emoção:
–
Se vos faço estorvo na casa, digam-no vocês, que me vou já, sem mais aquelas.
E
alongava a pobre cabeça branca, a fim de não perder uma palavra do que sem
dúvida seu filho iria responder. Mas o filho da velha, filho único, deixara-se
ficar calado, com os olhos no fundo da sua tigela, e triturando nos gumes dos
incisivos, restos de côdeas[7] esquecidas sobre a mesa. E a desgraçada embalde
punha no casal a angústia dos seus olhos extintos!
Uns
poucos de segundos passaram ainda, dentro dos quais não se ouvia senão o
tic-tac seco, monótono, escarninho quase, do velho relógio suspenso na parede,
por cima duma grande arca de castanho.
Eu
bem dizia: é um poucochinho triste a historieta. Seguidamente a nora ergueu-se.
E ao entrar na casa dos bois, com o alguidar vazio das sopas da ceia, virou-se,
e disse:
–
Já vossemecê sabe que ninguém Ihe acudirá. Que abale ou fique, pouco se nos dá.
E
aquele filho calado, enrolando um cigarro, da outra banda da mesa, sem olhar
para as fundas rugas da sua miséria e da sua idade! Então a pobre mulher pôs-se
de pé, desenferrujando as juntas para se dispor a caminhar. Tirou da arca meia
dúzia de trapos que lá tinha. E turbados de lágrimas, os seus olhos contemplam
a casinhola onde tinha passado a vida toda, desde o nascer, dia por dia, a casa
que seu pai Ihe dera por legítima, e com que ela presenteara o filho, toda
contente, no dia em que o vil se tinha ido casar.
Da
arribana[8] então quis-lhe parecer que a nora resmungava:
–
E não se despacha, a seresma[9]!
Abriu
docemente a porta do casebre, e foi-se embora. Que tormenta de neve cai lá
fora, Nossa Senhora de Mortágua! Já todo esse campo está de camisa nova
vestida, e muito branca… da lua escorrem luzeiros opados[10], cor de pérola,
cor de cinza, através do nevão que está caindo. E uma lufada[11] de flocos
parece que teima em empurrar a veIhota para dentro da casa, como quem aconselha
se abrigue.
–
Deixa-me, deixa-me, granizo estuporado! responde tragicamente a pobre expulsa,
como se falasse à lufada: tu não mandas coisa alguma ali dentro da casa. E o
seu dono deu-me a saber que eu estava de sobejo[12], entre os que lá vivem,
estuporado granizo!
Aí
vai ela, aí vai, trôpego corcovada, através da fantástica noite de neve,
lutando contra o frio, lutando contra as maravalhas[13] de gelo que se lhe
derretem na cara, e sobre as mãos encarquilhadas.
As
suas forças esgotam-se, ergue os olhos a Deus, e um vago terror se Ihe apodera
do espírito, naquela solidão sinistra do caminho. Dentro de pouco ela já nem
poderá afastar da cara os brancos flocos que lhe causticam as rugas, por tal
forma tem as mãos entorpecidas. Uma lassidão[14] traiçoeira começa a invadi-la,
dos pés aos quadris, e da ponta dos dedos aos extremos superiores do antebraço.
Reza uma Salve Rainha a Nossa Senhora da Mortágua. Irá levar-lhe para a lâmpada
uma almotolia[15] de azeite novo se viver. Mas quando? quando? Em solteira, ia
ela, no carro de bois, pela romaria de agosto, até ao monte que ensombra a
vila, com o pai, e os irmãos, e os parentes, de chapéu novo, lenço de seda, e
tamancos de polimento, mais ricos, com seu tacão encarnado. Cada qual depois
fora morrendo, um agora, outro ao depois. . . terras vendidas, filhas casadas…
e agora expulsa de casa, e tão pertinho já da sepultura!
–
Não lhes dizia eu que era uma historieta um pouco triste?
Uma
lassidão traiçoeira começava a invadi-la, e vai subindo. Há um momento em que
ela já não pode. . . Salve Rainha, mãe de misericórdia. . . Oh! como a cabeça
anda à roda! Nossa Senhora de Mort… e acocora-se na vereda, a pobre velha,
crispado de pés e pernas… Vida de doçura, esperança nossa… E cai para o lado,
fechando os olhos, numa suprema agonia. Triste, um pouco triste, a historieta.
Desperta
ao calor dum lume crepitante[16] – é uma casa já velha, muito pobre – e um
velho esperta a fogueira com ramos de pinho seco, que vai parando e deitando. O
velho tem-se aproximado, risonho, carinhoso.
–
Eh lá! tia mulher!
Ela
só vagamente percebe as suas vozes de aconchego.
–
Eh lá! repete o homenzinho.
Já
os seus olhos o fitam com mais concentrada solicitude.
–
Eh, mana mulher!
Então
a vagabunda[17] conhece-o. Aí o moleiro do Pego, que a requestara em
cachopa[18], e na romaria de agosto, em Mortágua, lhe arrancara a confissão dum
amor, que a leviana, mais tarde… Raparigas! Raparigas![19] Tinha jurado esta
não casar com outro, à hora dele partir para soldado. E encontrara-a casada, ao
voltar, o pobre diabo!
A
velha não diz nada, passaram cinquenta anos: e uma grande comoção a agita, e
envolve, e entorpece. Vai fazer um esforço para se erguer do canto – é melhor,
a fim de começar a sua peregrinagem por esses montes, sob a neve, até que as
matilhas de lobos Ihe arremetam. Aventura-se a dizer, como ele a encara:
–
Mas que hei de eu ficar aqui fazendo?
–
O que fazem pessoas da nossa idade, mana mulher. Pouca coisa. Descansar.
–
Dirão de nós que dormimos.
–
E isso que tem, nesta idade? O último a morrer fechará os olhos do primeiro que
se tiver ido. Deixe-se ficar aqui. É como se a minha mana voltasse, graças a
Deus, do outro mundo.
Ela
reparava, cismando, nas carantonhas que a cinza esquissava[20], de capricho,
por sobre o vermelho fulvo do brasido. E por esse campo, a tormenta de neve não
cessava de cair.
Pouco
depois contava-lhe ele a sua vida. Era uma tranquila história de trabalho,
pouco batalhada contra a miséria, mas com raros solavancos de alegria também;
uma pachorrenta história de três figuras, moinho, moleiro e burro, vivendo
todos três na santa paz de Nos’Senhor. Mas o que ela sofrera, a pobre velha! O
que ela tinha sofrido desde o casamento!
–
Pra lhe falar ensinado, fez o moleiro, nada me espanta da sua pouca fortuna.
Vosmecê foi como as outras mulheres, alma penada por homem, e sem paciência de
aguardar a fortuna, quando lhe picou o sangue na guelra, como o peixe. Ah, não
há meio, tornava ele, não há meio de as fazer ter paciência! Em a tal coisa
Ihes subindo à garganta, hão de casar por força, vocês. Receba agora o mau pago
de não ter querido aguardar o pobre tarimbeiro. – É castigo de Deus! tornava
ele, e a velha abanava a cabeça em sinal de afirmação.
–
Pois fique, fique, dizia o moleiro chegando para ela o seu rude escabelo[21] de
pinho. Por acaso tem medo às línguas más? O mundo que poderá dizer, se o nosso
tempo já passou? Muita vez me ponho a considerar nos que casam, para que o
mundo não tenha fim. Aí se carregam eles de filhos, que têm obrigação de
sustentar e trazer agasalhados. E os filhos crescem, à medida que os pais se
vão alcachinando[22] de velhice.
Por
fim estão fortes, trabalham, casam-se os rapazes… Raio de vida, ali a um canto
da cozinha, os velhos pais já não fazem senão dormir e comer. Esta vida ociosa
aborrece em casa de gente pobre. É um desaforo, urna pouca vergonha… Queixa-se
a nora do pão que lhe escasseia no tabuleiro? Pudera não! Os velhos não fazem
senão comer. Há uma contenda à lareira? Se os velhos são uns intrigantes! Rico
vai o ano de Deus, a seara folhuda e bem lançada, a vinha rija, e tão viçoso o
couval! Que vinténs nós pouparíamos, marido, ao canto da arca, se teu pai nos
não pesasse tanto, o estupor ruim! – Dirás se eu tenho razão, mana mulher,
dirás se eu tenho razão, dizia o velho. E a velha abanava a cabeça, deixando as
suas lágrimas correr a quatro e quatro.
–
Ainda bem que eu fiquei solteiro, por me haveres faltado ao Juramento. Teriam
vindo os filhos, miséria na casa, moinho vendido para os criar. .. e depois de
crescidos, vai-te lá para o esterco, estafermo podre, diria essa canalha de
ingratos! Mas padecera também de isolamento. Todos sofremos, desta maneira ou
daqueloutra. Já tu eras casada, punha-me a figurar, por desfastio, está de ver,
a minha vida contigo, no moinho, com um bom jantar ao canto do fogo, abóboras a
curtir no telhado do alpendre, e três ou quatro porcos no chiqueiro, para a
fartura do ano. Dava-me aquilo um bem-estar! Hoje que estás aí, parece que o
meu sonho foi certo, e que esta noite vem continuada de muitas que temos
passado a aquecer-nos do frio, por baixo da mesma chaminé, como casados.
A
velha entreabria um riso vago, naqueles seus beiços, murchos de não rirem há
muito tempo. Oh, como a vida tem minutos serenos! E ele lhe tomava as mãos
pergaminhosas[23], nas suas mãos com dedos cobertos de nós e calos, para evocar
junto dos seus brancos cabelos, juventude, alegria – que sei eu! – promessas,
ramagens, fatos novos… Através daquelas reminiscências, a velha ia percorrendo
assim paisagens desvanecidas, cenas de outrora, idílicas[24] e frescas, todo um
passado flutuante entre saudades, e tão longe, Senhora de Mortágua, tão longe!…
E as mãos se corram entre as mãos pergaminhosas, e sorri a velha com o seu
triste rosto encarquilhado.
–
Houve um tempo, vai ela a dizer. Houve um tempo...
A
mesma doce melancolia inclina a face aos dois, para uma carícia que nem sequer
se chega a esboçar, pois eles calam-se a ouvir dentro do peito os corações
reverdecidos[23]… Ia jurar que o vento cessa: só a neve continua polvilhando os
braços das árvores com uma primavera fantástica de floritas, menos brancas que
a pureza daquele amor, sagrado quase. Eu bem dizia aos senhores – esta história
é um pouco triste.
[1]
região central de Portugal; [2] camponeses; [3] tecido grosseiro de lã; [4]
pedaço; [5] base da montanha; [6] recipiente para tomar sopa; [7] crosta do
pão; [8] cabana do gado; [9] mulher preguiçosa e sem serventia; [10] grossos
clarões; [11] sopro forte; [12] sobrando; [13] flocos; [14] cansaço; [15]
vasilha para azeite; [16] fogueira que estalava; [17] que andava sem rumo; [18]
namorava quando moça; [19] moças, feminino de rapaz; [20] esboçava; [21] banco;
[22] encurvando; [23] semelhante ao pergaminho; [24] sonho, utopia, conectado à
natureza serena.
A gente vai lendo e fica imaginando o cenário, imaginei como era a velha, engraçado isso... sempre acontece comigo, fica um cenário imaginário na minha cabeça kkkk
ResponderExcluirUma história triste, mas linda! Amei ler!
ResponderExcluir