A crônica que apresentamos abaixo é da
autoria de Cecília Meireles.
Para saber mais sobre a autora, favor
consultar: http://www.releituras.com/cmeireles_bio.asp.
Boa leitura!
O FIM DO MUNDO
A primeira vez que ouvi falar no fim do
mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me
interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de
umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa
que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.
Nada disso se entendia comigo: o mundo
era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para
brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.
Mas, uma noite, levantaram-me da cama,
enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem
à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que
nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era
um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que
caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do
cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por
que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.
Ora, o cometa desapareceu, aqueles que
choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um
pouco triste - mas que importância tem a tristeza das crianças?
Passou-se muito tempo. Aprendi muitas
coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo
tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas
mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do
mundo peculiar a cada um.
Dizem que o mundo termina em fevereiro
próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver
um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é
verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.
O mundo vai acabar, e certamente
saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns
trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão
hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só
nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos -
além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas.
Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.
Se o fim do mundo for mesmo em
fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira
mais digna.
Em muitos pontos da terra há pessoas,
neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que trate com
benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal.
Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores ao fogo,
num rito de adoração.
Enquanto isso, os planetas assumem os
lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a
que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos -
insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.
Ainda há uns dias a reflexão e o
arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em
fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...
Texto extraído do livro "Quatro
Vozes", Distribuidora Record de Serviços de Imprensa - Rio de Janeiro,
1998, pág. 73.
Fonte: http://www.releituras.com/cmeireles_ofimdomundo.asp.
Que linda crônica! Grande Cecília Meireles!
ResponderExcluirMuito boa! Gostei!
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