quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

SESSÃO LEITURA - O RISCO DA MEIA DA MOÇA - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

O texto abaixo é da autoria de Ignácio de Loyola Brandão.
Para saber mais sobre esse autor, favor acessar: http://www.releituras.com/ilbrandao_bio.asp.
Boa leitura!

O RISCO DA MEIA DA MOÇA

Cedo ainda, pai e filha entraram na lanchonete deserta. O homem escolheu a mesa no canto, junto à janela. Magro, óculos de lentes espessas, parecia cansado. Indagou da menina:
— O que você quer?
— Chocolate.
— E para comer?
— Pão de queijo. E o senhor?
— Acho que nada.
Enquanto ela comia com lentidão, o pai olhava atento, como que preocupado. Havia um breve brilho de alegria nos olhos dele, talvez contentamento por estar com ela. No entanto, não parecia muito à vontade. A manhã de maio era límpida, fresca.
— O que é vaidoso, pai?
— Onde você ouviu isso?
— A professora disse para um menino que ele fazia muita pose na classe, que era vaidoso. É coisa ruim?
— Depende.
— O que é depende?
O homem não respondeu. Seu olhar se tornou pensativo. Como explicar, em poucas palavras, ou em palavras simples, o significado de depende?
— É coisa boa, pai?
— Pode ser.
— Ou é ruim?
— Pode ser. Às vezes, uma pessoa quer brincar com a outra, carinhosamente, e diz: você é vaidoso. Ou então, faz ironia, para cutucar o outro, mexer. Se a pessoa é muito cheia de si, é vaidosa, não vai gostar.
— Pai, o que é ironia? E uma pessoa cheia de si?
O homem novamente não respondeu. No entanto, parecia contente com a curiosidade da filha. Ela tomou mais um pouco do chocolate, fazendo barulho com a boca.
— Não faça isso, é feio. Coisa de gente mal-educada.
— Sou bem-educada?
— Ao menos, tenho tentado.
Ele viu que o pão de queijo tinha sido devorado. Talvez a menina quisesse outro. Virou-se um pouco, tirou umas moedas do bolso, contou.
— Quer outro pão de queijo?
— Posso?
— Por que não?
— Outro dia, na padaria, comi um pão na chapa e você não comeu nada, estava sem dinheiro. Você tem dinheiro, pai?
— Pode comer outro. Sossegada.
Desta vez, ele pediu um pão de queijo com recheio, ela mordeu, o requeijão escorreu. Ela riu, os dois riram.
— Surpresa, pai! Que delícia! Quer provar?
Os olhos dele indicavam que sim, ele disse não.
— Quando chove, a água não leva a cor das flores?
— O quê?
— Quem pinta o céu de azul?
— É o azul do ar.
— Por que o vidro é transparente?
— Vamos fazer uma lista das coisas que você quer saber e no sábado nos sentamos no Ibirapuera e resolvemos tudo.
A menina não prestou atenção, estava olhando uma mulher que tinha entrado, morena, muito bonita.
— Viu a meia dela, pai?
— Não. O que tem?
— É moderna, tem um risco no meio, atrás. Você me compra uma?
— No seu aniversário.
— Vou ficar maravilhosa como aquela mulher?
— Vai.
— Por que não olha para ela, pai?
— Já olhei. Uma mulher dessas é um sonho, filha.
— Sonhos não acontecem?
— Depende da gente.
— Depende... o que é depende?
O pão de queijo se acabava, ela queria desfrutar ao máximo. Ao terminar, ficou olhando pela janela. O salão de festas da lanchonete estava bem à frente, todo colorido.
— O que é aquilo?
— Para festas de aniversário.
— Vamos fazer a minha ali?
— O seu aniversário demora.
— Mas vamos fazer?
Ele pareceu indeciso entre dizer não e desiludir e dizer sim, ela esperar e ele não poder cumprir.
— Depende...
— Depende, quer dizer coisa ruim, não é?
— Vou tentar tudo. Agora, vamos embora.
Eles se levantaram, o homem começou a apanhar a bandeja.
— O que está fazendo pai?
— Limpando a mesa, é costume.
— Eles não têm empregados?
O homem não soube responder. Apanhou tudo e levou ao lixo, em cuja tampa estava escrito obrigado. A menina deu a mão ao homem, caminharam para a saída. Na calçada, ela se voltou para ele:
— Não sabemos muita coisa, não é pai? Ou o senhor não gosta de responder perguntas?
— Um dia saberemos.
— Saberemos? E se a mulher olhasse para você, pai?
O homem não respondeu, mas sabia que carregaria dentro dele, quem sabe para sempre, o belo rosto da mulher, já que não tinha visto o risco da meia.

Fonte: http://paginas-cronicas.blogspot.com.br/2011/09/o-risco-da-meia-da-moca-ignacio-de.html.

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