O
texto abaixo é da autoria de Clarice Lispector.
Para
maiores informações sobre a autora, favor acessar: http://www.releituras.com/clispector_bio.asp.
Boa
leitura!
RESTOS
DO CARNAVAL
Não,
não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha
infância e para as quartasfeiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam
despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a
cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao
carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como
explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de
botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife
enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim
cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
No
entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile
infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas
11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando
ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e
economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um
saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei
de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu
era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
E
as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de
encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma
espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo,
eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não
era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu
mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não
me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa
tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para
enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então
a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano.
Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça
- eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava minha
boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me
sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
Que lindo conto, gostei muito de ler!
ResponderExcluirMuito bom mesmo!
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