O
texto abaixo é de autoria de Marques Rebelo.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.academia.org.br/academicos/marques-rebelo/biografia.
Boa
leitura!
ALMAS
NO JARDIM
Cercada
por uma muralha de morros negros e tristes, silenciosa e limpa, a pequena praça
fica num bairro distante, no fim de uma rua nova mas abandonada. Tem dois mesquinhos repuxos ao gosto
municipal, quatro tabuleiros ingleses de grama dum verde que o vento e o sol
fustigam e queimam, e vários ficus, ostentando, tesos, figuras recortadas por
tesouras de reduzida originalidade. Tem
duas pérgolas também, duas ridículas pérgulas de madeira pintada de branco,
onde umas trepadeiras, que se abrem em agressivos cachos solferinos, se
enroscam mais ou menos raquiticamente. Sob cada pérgula, um banco. Não são incômodos, mas que fossem! não há
bancos incômodos para os casais de namorados.
Nessa
pequena praça, ouvindo a música medíocre dos repuxos , ora numa, ora noutra
pérgula, diariamente, ao cair da tarde, eu me encontro com ela, com ela que é
branca como uma açucena, que é mansa como uma sombra, que é doce como um favo,
com ela cuja voz é uma fonte cantando e cujo olhar traz para mim o mesmo
mistério do céu noturno.
Por
esta hora, nesse bairro distante que o sol custa a deixar e cujo vento é
qualquer coisa de extraordinariamente notável, a pequena praça é pouco
frequentada. Raramente crianças vêm brincar nas retas ruazinhas de fino saibro,
entre os quatro canteiros urbanos, em volta dos repuxos. Para um casal apaixonado é uma solidão
propícia, uma amável solidão. Lá estamos
todas as tardes, eu e ela, tecendo o delicado tecido das esperanças, frágil
teia que não resiste ao menos sopro contrário.
-
Você gosta de mim?
-
Adoro!
-
Se eu morresse…
-
Bobo!
-
Então eu não posso morrer?
-
Não!
Sacudo
os ombros:
-
Pois morrerei. Morrerás. Morreremos.
Ela
- que tem medo da morte! - treme:
-
Não tem mais nada para dizer, não?
Tenho. Tenho um mundo de coisas doces e ternas, ó
miragens, ó sonhos, ó devaneios! E tenho um mundo de coisas graves também. Coisas graves e sérias, mas que jamais
sairão, jamais confessarei, ficarão para sempre dentro do meu peito inquieto,
tubilhonantes, confusas - oh, extremamente dolorosamente confusas e opressoras!
- porque tudo crestariam, pior que o vento da pequena praça, como um vento de
fogo.
E
ela talvez advinhe as minhas coisas graves e sérias. Põe em mim os olhos cheios de amor:
-
Amo-te com todos os mistérios da tua vida.
E
é melhor assim.
Cai
frequentes vezes, ela, num contemplativo mutismo, o queixo apoiado na mão e o
braço apoiado no meu ombro.
-
Em que está pensando? - pergunto.
-
Em você.
-
Ora!… Fala.
-
Gosto mais de te ouvir.
Abre
o amável sorriso de claros dentes, responde numa moleza:
-
Adoro!…
E
o amor é isto: se está triste, amo sua tristeza, se está alegre, amo a sua
alegria; e há palavras que parecem sem sentido, mas que caem fundo no coração;
e há silêncios que valem por todas as palavras; e ora é um sorriso que nos leva
para o céu, ora é um baixar de olhos que nos traz o céu com mil estrelas.
Além
de nós, uma vez por outra, um outro casal ocupa a pérgula fronteira. Olham para nós, sorriem, compreendendo, e
como nós desenrolam a eterna história dos corações. Mas são casais intermitentes. Constantes, constantes como o vento, somos
nós. Nós, os pardais e Liró.
Os
pardais são inumeráveis - ciscam, chilreiam, voam, brigam, amam… O guarda é um polícia municipal que deve
andar pelos quarenta anos, mas a quem se pode dar muito mais. Tem o porte muito pouco marcial (o pagamento
anda sempre atrasado) e o andar de quem já não tem mais pernas. Com o seu cinzento capacete colonial,
escondendo um rosto avermelhado, gretado e melancólico, faz olho morto e
complacente aos nossos beijos, aos nossos abraços demasiados. Já que o vento não consente na primavera dos
canteiros, que ao menos nos nossos corações — deve pensar ele — haja flores e
outras manifestações primaveris. Atira
pedrinhas aos esquivos peixinhos vermelhos no tanque, peixinhos japoneses cuja
cauda tem a transparência das medusas, fica horas e horas numa contemplação,
não sei se estúpida ou poética, dos repuxos que não se cansam na sua música
monótona, medíocre, inútil. Com uma
continência conivente e frouxa, cumprimenta-nos quando chegamos às quatro e
quando saímos às sete, mais ou menos, hora em que a pequena praça começa a
sofrer a noturna invasão dos namorados
do bairro.
Liró
é o contraste do guarda. Liró é
alegre. Liró é brincalhão.
Liró é saltitante. Mal apontamos,
ele corre ao nosso encontro com os olhos transbordantes de simpatia. Quando partimos, nos leva religiosamente até
a esquina mais próxima. Liró, sabemos, é
realmente nosso amigo. Tem o fraco
difícil das verdadeiras e desinteressadas amizades.
Hoje
não vimos Liró ( o nome foi posto por nós no primeiro dia que viemos à pequena
praça). Perguntamos ao guarda por
ele. Com voz surda, voz gasta, voz sem
dentes, respondeu que não sabia. Sumira
desde a véspera., pouco depois de nos termos ido embora.
Ficamos
tristes, inquietos (os pardais chilreavam insensíveis). Se tiver sido apanhado pela carrocinha,
combinamos, irei resgatá-lo no depósito público. Se tiver sido vítima de um
automóvel - e ela ficou com os olhos úmidos - não voltaremos à pequena
praça. Porque Liró é a vida da pequena
praça, convencemo-nos. Toda a vida.
Em:
Contos Reunidos, Marques Rebelo, Rio de Janeiro, José Olympio 1979, 2ª edição.
Que lindo conto! O autor faz e gente ter a sensação de estar na pequena praça, com tanta riqueza de detalhes. Amei ler!
ResponderExcluirMaravilhoso!
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