O
texto abaixo é de autoria de Walcyr Carrasco.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/walcyr_carrasco/.
Boa
leitura!
FILHO
PAI
Quando eu tinha pouco mais de 20
anos, morava com minha família em um pequeno sobrado de vila. Meu pai era
ferroviário. Minha mãe se dedicava a bicos, como vender roupas feitas ou blusas
de lã que ela mesma tricotava. Eu estudava e contribuía para parte das despesas
trabalhando aqui e ali. Não havia luxos, mas o dia-a-dia era relativamente
confortável. Na época eu não seria capaz de avaliar a contribuição que meu pai
dera à minha vida. Minha carreira de jornalista e escritor ainda engatinhava. O
estímulo para que eu estudasse, os livros que ganhara ao longo dos anos, o
curso de inglês, a máquina de escrever, tudo isso me parecia obrigação. Pelo
contrário. Eu me ressentia dos modos autoritários de papai. De sua braveza. E
também de suas parcas condições financeiras. Observava meus amigos bem de vida,
alguns ricos. Achava que ele, pai, poderia ter ganho mais dinheiro. Eu também
sentia dificuldade em conversar abertamente. Havia uma espécie de muro entre
nós dois.
Sua mãe, minha avó, vendeu a casinha
no interior. O dinheiro acabou rapidamente. Ela veio morar conosco. Logo teve
um pequeno derrame. Fosse por isso ou por alguma outra doença, perdeu o juízo.
De repente, a vovó que adorava fazer doces tornou-se uma pessoa furiosa. Dizia
coisas horrendas. Pior. Parecia ter desenvolvido uma sensibilidade especial para
atingir o ponto fraco de cada um. Um psicanalista teria feito uma tese com suas
frases, tal a súbita argúcia para alardear velhos ressentimentos, mágoas
escondidas, tensões ocultas. Não me poupou: acusava-me de não me dar bem com
meu pai. Eu me sentia culpado ao ouvi-la, pois acreditava que ele me devia mais
carinho, mais cuidados, mais confortos.
Pior era com mamãe. Nunca se deram
bem. Fora uma torturada relação entre nora e sogra. Agora vovó levava minha mãe
às lagrimas algumas vezes por dia. A situação era ruim. Tornou-se insustentável
quando ela passou a ameaçar mamãe fisicamente. Descobrimos uma espécie de
estilete escondido entre seus objetos pessoais.
Hoje teria sido possível a
contratação de uma enfermeira. Na época, nem podíamos oferecer-lhe um quarto.
Eu dormia na sala. Ela dividia um aposento com meu irmão menor. Só havia uma
solução. Interná-la em uma casa de saúde.
Meu irmão mais velho, já casado,
escolheu uma que parecia adequada, embora modesta. (Ao longo dos anos
seguintes, trocamos de lugar várias vezes, quando constatávamos deficiências.)
Todos os netos se cotizaram para pagar a mensalidade. Em um sábado, meu irmão
veio com o carro. Vovó pareceu ter percebido alguma coisa, apesar de nada ter
sido explicado. Gritou:
— Não quero ir!
Foi preciso alguma firmeza para
convencê-la a entrar no automóvel. Meu pai assistiu a toda a cena da sala.
Fiquei com ele, enquanto levavam vovó. Fechei a porta. Ouvimos o motor, a
partida. Houve um silêncio.
Papai subiu as escadas lentamente.
Senti um nó na garganta. Fui atrás. Ele atirou-se na cama de casal. Chorou.
Pela primeira vez em toda a minha vida, eu via meu pai chorar. Um choro
convulsivo, com soluços, o peito estremecendo. Debrucei-me sobre ele.
Abracei-o.
— Não chora, pai. Não chora!
Permaneci com meu pai nos braços. O
muro se rompeu. Percebi que há um momento na vida em que o pai se torna filho e
o filho, pai. Agora era minha vez de cuidar dele. Abracei-o mais fortemente,
oferecendo reservas de sentimento guardadas. Descobri, então, como era profundo
meu amor por papai, e como eu estava disposto a fazer o impossível para que ele
não sofresse tanto.
Gostei muito dessa crônica..
ResponderExcluirEmocionante esse texto! Amei ler.
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