O
texto abaixo é de autoria de Orígenes Lessa.
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maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.academia.org.br/academicos/origenes-lessa/biografia.
Boa
leitura!
O
NATAL DE TIA CALU
Tia
Calu deixara a porta semi-aberta, para não correr a todo instante a receber os
rapazes. Maria Augusta, sozinha, não daria conta do recado. Eram salgadinhos de
toda sorte, delicados pastéis, empadinhas apimentadas, camarões recheados,
canapés de salmão importado, caprichosas invenções do seu reconhecido gênio
culinário. Entre os presentes recebidos àquela manhã havia dois vidros grandes
de caviar. Seriam a surpresa da noite. Cortava, amassava, picava, colocava, com
requintes de decoradora, trabalho amoroso e sutil, em que punha a alma. Naquela
noite todos viriam! Pela primeira vez todos estariam em sua casa, na doce festa
de Natal.
Soaram
passos na sala.
—
Vai ver quem chegou, Maria Augusta.
A
preta espiou à porta, viu um jovem oficial, de malinha na mão, contemplando
risonho a grande árvore, fulgurante de luzes.
—
Tem um que eu não conheço. Está fardado.
—
Fardado?
Seu
rosto subitamente se fechou. Tia Calu, em suas festas, não gostava que eles
viessem de uniforme e todos sabiam disso. O uniforme era a lembrança viva do perigo
permanente, da ceifadora implacável.
Tia
Calu, em silêncio, lavou as mãos à torneira, enxugou-as lentamente.
—
Você, meu filho?
—
Pois é, tia Calu — disse o rapaz, alegre, ligeiramente constrangido. — Tenho
que estar no campo às cinco horas. Vou para Assunção. Posso dormir aqui, depois
da festa?
—
Claro, seu pirata! — disse tia Calu abrindo-lhe os braços, beijando-o na testa.
E
já brincalhona:
—
Mas quem não trabalha não come e não dorme. Venha ajudar na cozinha, que está
tudo atrasado e às dez horas a Maria Augusta vai-se embora. Tem festa também…
O
capitão deixou a malinha a um canto, sacou fora o dólmã, arregaçou as mangas da
camisa.
—
Assim que eu gosto. Soldado enfrenta o inimigo em qualquer terreno. E se
adapta… A capacidade de adaptação é tudo…
—
Eh! Eh! Eh! — riu Maria Augusta, feliz. Ela gostava daquela rapaziada porque
topava tudo, não tinha orgulho. Onde é que já se viu um capitão cheio de
medalhas botar pastel na frigideira e ficar todo salpicado de gordura?
—
Eh! Eh! Eh! Essa Dona Calu tem cada idéia! Mas já havia rumor novo na sala.
—
Ô de casa! Pode-se entrar?
—
Rua! — disse tia Calu aparecendo, os claros dentes abertos num sorriso. — Rua!
Isto aqui não é casa da sogra! — Rua! Rua!
Estava
com as mãos cheias de pacotinhos, que os dois lhe passavam.
—
Vocês são umas crianças! Pra que essa bobagem?
E
colocou, numa alegria de mãe feliz, os pacotes junto ao embrulhinho que o
capitão auxiliar de cozinha depositara timidamente sobre um móvel.
—
Vocês são impossíveis!
—
Sabem que hoje não vai faltar ninguém?
—
Não diga! — exclamou surpreso um dos recém-chegados.
—
Não falta ninguém! O Guilherme chegou hoje do Pará. Já me telefonou. O Oto
conseguiu habeas-corpus da família. Prometeu que vem. E até o Mesquita. Ele me
telegrafou de Bagé. Conseguiu licença. Deve estar chegando…
E
já dona-de-casa:
—
Vão se servindo. Uísque tem à bessa.
—
Uísque? Com os preços que andam por aí?
—
Ora! Pra que é que a tia Calu trabalha? Não é pra vocês? Sobe o preço do uísque
eu subo o preço das aulas, ora essa! Eu acompanho a marcha do câmbio…
Voltaram-se
os três. Dois braços apontavam na porta, cada um terminando por uma garrafa de
uísque. Tia Calu sorriu de novo:
—
E depois, nem era preciso. Eu trabalho com um corpo incansável de
contrabandistas… Eles não falham nunca!
Abraços
e gargalhadas festejaram a aparição dos braços e garrafas.
—
Gelo é só buscar lá dentro!
Voltou
à cozinha:
—
Vai fazer sala, capitão de bobagem. Seus companheiros estão chegando. Aqui você
serve só para atrapalhar.
Vozes
e exclamações festivas animavam a sala. Duas horas da manhã!
—
Um uísque só — pediu o oficial que chegara primeiro.
—
Guaraná, capitão. Hoje você é donzela. Também, pra que é que foi aceitar
serviço para a manhã de Natal? É guaraná, se quiser. Você tem de voar muitas
horas. E não amola, não, que daqui a pouco eu te ponho na cama…
Tia
Calu se mirava amorosa nos doze rapazes. Estavam todos! Não faltava nenhum. Uma
juventude magnífica, alguns prematuramente graves, alguns melancólicos, a
família longe. O Heitor, um dos bravos da campanha na Itália, fumava muito
sério, o copo de uísque na mão esquerda. No mundo, só tinha tia Calu. O único
irmão perecera num desastre, dois anos antes, nas margens do Guaporé. Subira
num avião obsoleto, que ele sabia sem condições de vôo. Dois outros recordavam
uma viagem por Mato Grosso, em que o avião caíra. Haviam escapado por milagre.
O mecânico desaparecera.
Tia
Calu contemplava a sua macacada, como sempre dizia.
—
Vocês não podiam respeitar um pouco esta casa? Isto é família, tá bem?
—
Ora, tia Calu, não chacoalha — sorna um rapaz moreno, de sobrancelhas espessas.
Estava
a contar ao amigo a história de uma garota conhecida em Anápolis.
E
continuando, já alto de uísque:
—
Você não faz idéia! Nunca vi criatura mais clara, cabelos mais louros! Mas
louro natural, entendeu? Uma coisa maravilhosa! Custei a acreditar que fosse
goiana. A gente sempre acha que goiano tem de ser índio…
—
O Lauro era goiano e parecia alemão — disse tia Calu.
Ouve
um silêncio pesado. Rápido. Lauro caíra seis meses antes. O motor falhara. O
avião fora descoberto uma semana depois, quatro homens carbonizados em plena
floresta. Tia Calu sentiu um arrepio. Ouvia ainda as três descargas em funeral,
diante da cripta dos aviadores, no São João Batista. Vinte e oito anos.
(—
Estou ficando velho, tia Calu. Parece que vou ficar pra semente…)
Tia
Calu ergueu o copo de uísque à altura dos lábios. Sorria para o Capitão
Eduardo:
—
Está com inveja, hem, seu boboca? É pra você não aceitar vôo em véspera de
Natal, tá bem?
O
rapaz fez um muxoxo infantil:
—
Ora, tia Calu.
—
É pra aprender, entendeu? Olha, prova esses camarões… Trabalho de mestre…
Duvido que você já tenha comido coisa melhor… Alguém cantarolava na cozinha,
procurando mais gelo.
—
Pára com essa taquara rachada — ordenou uma voz, ligeiramente engrolada.
Tia
Calu se ergueu, dirigiu-se para o interior. Voz tinha o Meira. Estava agora em
Pistóia. Tia Calu mordeu os lábios. Meira deixara um filhinho, tinha agora oito
anos.
(—
O que é que você vai ser quando homem, Vadinho?
—
Ué! Aviador, tia Calu!)
Ela
já estava na cozinha, um amontoado de bandejas, pratos, panelas, garrafas.
—
Puxa! Você não presta nem pra tirar gelo, Simão. Nunca vi cara mais sem jeito!
Escorre um pouco de água em cima, que eles se desprendem .
O
rapaz olhou-a, atarantado. Tia Calu aproximou-se, em voz baixa:
—
Você não tinha arranjado uma colocação no Ministério?
—
Falhou, tia Calu.
Ela
ficou séria, olhando a testa larga, os olhos ingênuos do moço. Fazendo viagens
longas, voando em ferro velho, a mulher esperando bebê. Era o mais imprudente
de todos. Na escola, até os instrutores tinham medo de subir com ele. Fora
várias vezes censurado, até punido. Adorava os malabarismos no espaço. Ficava
possuído, ao subir, de verdadeiro delírio. Dos malucos da turma, dos tidos como
malucos, era o único sobrevivente. Por que não tivera ainda a sorte de cair e
ficar inutilizado para os vôos, arranjando sinecura numa base qualquer, pegando
uma promoção, livrando-a daquela agonia permanente?
—
Vai ser menino ou menina?
—
Pelo jeito, menina.
—
Graças a Deus — disse tia Calu, arrumando uns canapés.
Voltou
para a sala com a bandeja. O grupo cantava, agora, um dos sambas do
pré-carnaval. Tia Calu parou à porta, contente de ver aquela sadia
despreocupação. Eram o seu orgulho, aqueles rapazes. Caíam como pássaros
atingidos em bando, por invisíveis caçadores. Tinham filhos, mãe, esposa,
irmãs, gente que vivia em terra, sempre de coração pequenino. Voavam sempre, os
nervos de aço, a vontade inquebrantável. Pela primeira vez os tinha todos ao
mesmo tempo em casa. Rapazes de escol, exemplares raros de coragem, de saúde
física, de saúde moral. Era como se fossem filhos. Nunca mãe nenhuma tivera
tantos filhos, tantos filhos tão jovens, tão fortes, tão belos. Pena que não
estivessem todos como Carlos. Ah! antes estivessem! E o coração apertado,
pousou os olhos enternecidos em Carlos. Somente Carlos não cantava. Levava aos
lábios um pastel de camarão. Uma entrada profunda no frontal, que lhe deformava
a cabeça, garantia que Carlos não voaria mais.
Olhou
o relógio de pulso.
—
Duas e meia, capitão! Berço! Chega de guaraná! Vai dormir! Quer que eu te chame
a que horas?
O
rapaz, que cantava também, quis protestar.
—
Não tem choro não. Vai dizendo boa-noite, dá um beijo na mamãe, vai dormir.
O
capitão se ergueu, obedeceu docilmente. Pouco depois, um a um, o grupo se
dispersava.
—
Bom Natal, tia Calu.
Quando
se viu só — o capitão ressonava. Maria Augusta saíra às dez horas, o
apartamento em silêncio — tia Calu olhou a sala. Parecia um campo de batalha.
Precisava pôr em ordem tudo aquilo, senão Maria Augusta resmungaria o dia
inteiro. Começou a reunir os copos numa bandeja. Treze copos, doze de uísque,
um dela, e o de guaraná, do capitão que ressonava. Aproximou-se, na mão a
bandeja, ficou a observar-lhe o sono vagamente atormentado. A seguir, voltou e,
a bandeja sempre na mão, atulhada de copos, enfrentou o retrato do filho na
parede principal da sala, medalhas e citações ao lado. Durante toda a noite
passara despercebido. Havia como que um acordo tácito. Tia Calu agora encarava
o filho. Depois, os olhos enxutos, agitou a cabeça:
—
E pensar que vocês eram setenta e oito, tenente, setenta e oito!
Que lindo conto! Amei ler!
ResponderExcluirDesculpe JE, comentei no outro post kkkk.