O texto abaixo é de autoria de Moacyr Scliar.
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Boa leitura!
A BALADA DO FALSO MESSIAS
— Não precisamos, padre — respondemos com toda a sinceridade. — Nosso Messias chegou; ele nos libertará, nos fará felizes.
— O Messias? — o padre estava assombrado. — O Messias já passou pela terra.
Foi Nosso Senhor Jesus Cristo, que transformou a água em vinho e morreu na cruz por nossos pecados.— Cala-te, padre! — gritou Santa. — O Messias é Shabtai Zvi! Santa, filha adotiva do gordo Leib Rubin, perdera os pais num pogrom. Ficara então com a mente abalada. Seguia Shabtai Zvi por toda a parte, convencida de que era a esposa reservada para o Ungido do Senhor. E para surpresa nossa Shabtai Zvi aceitou-a: casaram-se no dia em que terminamos o casco do barco. Quanto à embarcação, ficou muito boa; pretendíamos levá-la ao mar, como Bento Gonçalves transportara seu navio, sobre uma grande carreta puxada por bois.
Estes já eram poucos. Chico Diabo aparecia agora todas as semanas, roubando duas ou três cabeças de cada vez. Alguns falavam em enfrentar os bandidos. Shabtai Zvi não aprovava a ideia. “Nosso reino está além do mar. E Deus vela por nós. Ele providenciará.”
De fato: Chico Diabo desapareceu. Durante duas semanas trabalhamos em paz, ultimando os preparativos para a partida. Então, num sábado pela manhã, um cavaleiro entrou a galope na vila. Era Gumercindo, lugar-tenente de Chico Diabo.
— Chico Diabo está doente! — gritou, sem descer do cavalo. — Está muito mal.
O doutor não acerta com o tratamento. Chico Diabo me mandou levar o santo de vocês para curar ele.
Nós o rodeávamos em silêncio.
— E se ele não quiser ir — continuou Gumercindo — é para nós queimar a vila toda. Ouviram?
— Eu vou — bradou uma voz forte.
Era Shabtai Zvi. Abrimos caminho para ele. Aproximou-se lentamente, encarando o bandoleiro.
— Apeia.
Gumercindo desceu do cavalo. Shabtai Zvi montou.
— Vai na frente, correndo.
Foram os três: primeiro Gumercindo, correndo; depois Shabtai Zvi a cavalo; e fechando o cortejo, Natan de Gaza montado num jumento. Santa também quis ir mas Leib Rubin não deixou.
Ficamos reunidos na escola todo o dia. Não falávamos; nossa angústia era demasiada. Quando caiu a noite ouvimos o trote de um cavalo. Corremos para a porta. Era Natan de Gaza, esbaforido.
— Quando chegamos lá — contou — encontramos Chico Diabo deitado no chão. Perto dele, um curandeiro fazia mandingas. Shabtai Zvi sentouperto do bandido. Não disse nada, não fez nada, não tocou no homem — só ficou olhando. Chico Diabo levantou a cabeça, olhou para Shabtai Zvi, deu um grito e morreu. O curandeiro, eles mataram ali mesmo. De Shabtai Zvi nada sei. Vim aqui avisar: correi, fugi!
Metemo-nos nas carroças e fugimos para Erexim. Santa teve de ir à força. No dia seguinte, Leib Rubin nos reuniu.
— Não sei o que vocês estão pensando em fazer — disse — mas eu já estou cheio dessas histórias todas: Barão Franck, Palestina, Sfat… Eu vou é para Porto Alegre. Querem ir comigo?
— E Shabtai Zvi? — perguntou Natan de Gaza com voz trêmula (era remorso o que ele sentia?).
— Ele que vá para o diabo, aquele louco! — berrou Leib Rubin. — Só trouxe desgraças!
— Não fale assim, pai! — gritou Santa. — Ele é o Messias.
— Que Messias, nada! Acaba com essa história, isso ainda vai provocar os antisemitas. Não ouviste o que o padre disse? O Messias já veio, está bom? Transformou a água em vinho e outras coisas. E nós vamos embora. O teu marido, se ainda está vivo, e se ficou bom da cabeça, que venha atrás. Eu tenho obrigação de cuidar de ti, e vou cuidar de ti, com marido ou sem marido!
Viajamos para Porto Alegre. Judeus bondosos nos hospedaram. E para nossa surpresa, Shabtai Zvi apareceu uns dias depois. Trouxeram-no os “Abas Largas”, que haviam prendido todo o bando de Chico Diabo.
Um dos soldados nos contou que haviam encontrado Shabtai Zvi sentado numa pedra, olhando para o corpo de Chico Diabo. Espalhados pelo chão — os bandidos, bêbados, roncando. Havia bois carneados por toda a parte. E vinho. “Nunca vi tanto vinho!” Tudo o que antes tinha água agora tinha vinho! Garrafas, cantis, baldes, bacias, barricas. As águas de um charco ali perto estavam vermelhas. Não sei se era sangue das reses ou vinho. Mas acho que era vinho.
Ajudado por um parente rico, Leib Rubin se estabeleceu com uma loja de fazendas. Depois passou para o ramo de imóveis e posteriormente abriu uma financeira, reunindo grande fortuna. Shabtai Zvi trabalhava numa de suas firmas, da qual eu também era empregado. Natan de Gaza envolveu-se em contrabando, teve de fugir e nunca mais foi visto.
Desde a morte de Santa, Shabtai Zvi e eu costumamos nos encontrar num bar para tomar vinho. E ali ficamos toda a noite. Ele fala pouco e eu também; ele serve o vinho e bebemos em silêncio. Perto da meia-noite ele fecha os olhos, estende as mãos sobre o copo e murmura palavras em hebraico (ou em aramaico, ou em ladino). O vinho se transforma em água. O dono do bar acha que é apenas um truque. Quanto a mim, tenho minhas dúvidas.
Fonte: https://contobrasileiro.com.br/a-balada-do-falso-messias-conto-de-moacyr-scliar/.
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