O
texto abaixo é de autoria da escritora brasileira Nanete Neves.
Para
maiores informações sobre a autora, favor acessar: https://naneteblog.wordpress.com/about/.
Boa
leitura!
O
IOGURTE
Arrastando
o corpanzil na tarefa diária de supervisionar a empregada, Irene tentou parecer
natural, mas com aquela sobrancelha levantada e o olhar superior, perguntou a
das Dores por acaso você viu onde foi parar aquele iogurte de morango que
comprei semana passada? Sei não dona Irene, não vi ele não.
Justiça
era o lema de Irene. Nunca gostou de acusar sem ter certeza, mas lembrava que
encomendou 12 copinhos ao delivery do supermercado, três de cada sabor:
morango, pêssego e ameixa, os dois primeiros os preferidos de Juninho, o neto,
e os últimos dela própria, porque faziam andar bem seu intestino preguiçoso.
Enquanto revolvia a mente para descobrir se, de fato, o menino havia consumido
todos, Irene deixava no ar a desconfiança enquanto pensava é preciso sempre
estar de olhos abertos porque, se a gente bobear, essa gente nos leva tudo.
Bem,
tudo é maneira de falar, porque levar tudo daquela família seria obra difícil,
tantos eram os bens e o conforto que o seu Farah, dono de um comércio
atacadista de grãos, proporcionava não só à mulher como aos agregados: filha,
genro, netinho e ainda mais recentemente a sogra. E o comando de Irene era no
estilo senzala, não desgrudava os olhos do material de limpeza, da despensa e
da geladeira, nada escapava ao seu controle. Contava até o número de gotas de
detergente que a empregava pingava na bucha para lavar a louça. É preciso
economizar, repetia a todo momento na sua voz gutural que sobressaía por entre
a trilha sonora que fazia ao se mover, balançando as várias correntes pesadas
de ouro que trazia junto ao pulso e o colo. Seu xodó eram as tapeçarias que ela
fazia das Dores limpar toda semana com pano levemente embebido em água e
vinagre. Nem pense pedir esses produtos caros de limpeza, o vinagre é melhor
que todos, dizia.
Enquanto
Irene esparramava o imenso quadril no sofá da sala esperando o chá da tarde,
das Dores se esforçava na cozinha para não esquecer nenhum item e aborrecer
ainda mais a patroa: biscoitos amanteigados, bolacha recoberta de chocolate,
petit-fours de aliche e as rodelas de limão que ela adorava pingar na bebida.
Naquele dia especialmente, desde cedo a empregada estava com dificuldades em se
concentrar, preocupada que estava com Nereu, seu caçula que nasceu diferente.
Fazia algum tempo que ele vinha tendo convulsões a toda hora, mesmo tomando
aqueles remédios que o médico prescreveu. Bem que ele alertou que o estado do
menino iria piorar a cada dia, não havia nada que ela pudesse fazer para
evitar.
Desde
que veio ao mundo, esse menino só sofre, pensava ela, condoída, contando as
horas para poder dar uma passada no hospital e visitar o caçula, antes de
voltar ao quarto e cozinha nos cafundós, a quase três horas de condução do
emprego. Foi ele nascer que o Antônio se foi, aquele desgraçado que só servia
pra beber e me embuchar. Deve ter se assustado com aquele bichinho feio que só
chorava e nem tinha força pra mamar. Sobrou pra mim me virar para criar os
cinco mais esse pequeno sempre doentinho que toda vida precisou mais do meu
cuidado.
Nereu
já estava com 6 anos mas ainda não andava, não falava, só babava e emitia sons
estranhos. Chamava a atenção na rua, no ônibus que tomavam juntos até o
ambulatório do SUS todos os meses, isso quando não precisava ser levado às
pressas ao pronto-socorro. A coluna de das Dores piorava com o esforço de
carregar o menino nos braços. E o salário cada vez menor, sempre com essas
horas descontadas. E não adiantava explicar que o motivo era de doença. Dona
Irene nunca quis saber de problemas, já bastavam os dela, costumava dizer,
cortando qualquer tentativa de das Dores pedir algo ou algum aumento.
Mas
o menino vinha piorando, nem mais a papinha de farinha de milho com coentro, o
jantar de toda noite da família ele conseguia engolir. Das Dores pensou em lhe
dar algo diferente para comer, um agrado, algo que fizesse aquele anjinho mais
feliz, nem que por alguns momentos. E a oportunidade surgiu na tarde passada,
quando o Juninho, moleque gordo como a avó e mimado como a mãe, abriu o iogurte
de morango com os dentes mesmo, mas tomou apenas dois goles, largando a
embalagem sobre a mesa da cozinha assim que um amiguinho veio chamá-lo no
portão.
Era
a chance, e das Dores nem pensou duas vezes. Pegou o copinho semiaberto,
escondeu-o no bolso do avental e, assim
que pôde, enfiou-o na sacola, torcendo para que dona Irene não tivesse tempo de
revistar suas coisas na hora da saída.
Deu
certo. Ela aproveitou o momento em que a patroa foi atender ao telefone,
despediu-se de longe e correu pegar o ônibus, depois o trem, outro ônibus e
ainda um pedação a pé. No caminho, cuidava o tempo todo para a sacola não virar
e o copinho derramar. Chegando em casa, a primeira coisa que fez foi dar o
iogurte de morango para Nereu, o seu anjinho marcado, com a ajuda de uma
colher. O menino vibrava com aquele novo sabor, ria, batia as mãozinhas. Foi um
momento de festa. Breve demais. Perto da meia-noite ele começou a se debater na
cama, cólicas seguidas de uma diarreia tão forte que foi preciso chamar a
ambulância. Dessa vez o garoto ficou internado e das Dores sequer pôde ficar
com o filho. Mas até que o dia passou rápido.
Chegando
ao hospital, a mãe foi informada: Nereu não resistira e falecera há poucos
minutos. No curto velório daquele
cemitério do bairro estavam apenas das Dores e quatro de seus filhos. O maior
que estava longe, na avó, nem foi porque não havia dinheiro para a passagem.
Mas
das Dores era forte, uma sobrevivente, resistiria a mais essa. No dia seguinte
ela foi trabalhar. Chegando lá, a primeira coisa que ouviu de dona Irene foi
você não lembra onde colocou o tal iogurte de morango que desapareceu?