Era
uma borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei
que fosse uma bruxa ou qualquer outro desses insetos que fazem vida urbana;
mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela.
Era
na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; ela borboleteava junto ao
mármore negro do Grande Ponto; depois desceu, passando em face das vitrinas de
conservas e uísques; eu vinha na mesma direção; logo estávamos defronte da
A.B.I. Entrou um instante no hall, entre duas colunas; seria um jornalista? –
pensei com certo tédio.
Mas
logo saiu. E subiu mais alto, acima das colunas, até o travertino encardido. Na
rua México eu tive de esperar que o sinal abrisse: ela tocou, fagueira, para o
outro lado, indiferente aos carros que passavam roncando sob suas leves asas.
Fiquei a olhá-la. Tão amarela e tão contente da vida, de onde vinha, aonde
iria? Fora trazida pelo vento das ilhas – ou descera no seu voo saçaricante e
leve da floresta da Tijuca ou de algum morro – talvez o de São Bento Onde
estaria uma hora antes, qual sua idade? Nada sei de borboletas. nascera, acaso,
no jardim do Ministério da Educação? Não; o Burle Marx faz bons jardins, mas
creio que ainda não os faz com borboletas – o que, aliás, é uma boa ideia.
Quando eu o mandar fazer os jardins de meu palácio, direi: Burle, aqui sobre
esses manacás, quero uma borboleta amare... Mas o sinal abriu e atravessei a
rua correndo, pois já ia perdendo de vista a minha borboleta.
A
minha borboleta! Isso, que agora eu disse sem querer, era o que eu sentia
naquele instante: a borboleta era minha – como se fosse meu cão ou minha amada
de vestido amarelo que tivesse atravessado a rua na minha frente, e eu devesse
segui-la. Reparei que nenhum transeunte olhava a borboleta; eles passavam,
devagar ou depressa, vendo vagamente outras coisas – as casas, os veículos ou
se vendo –, só eu vira a borboleta, e a seguia, com meu passo fiel. Naquele
ângulo há um jardinzinho, atrás da Biblioteca Nacional. Ela passou entre os
ramos de acácia e de uma árvore sem folhas, talvez um "flamboyant";
havia, naquela hora, um casal de namorados pobres em um banco, e dois ou três
sujeitos espalhados pelos outros bancos, dos quais uns são de pedra, outros de
madeira, sendo que estes são pintados de azul e branco. Notei isso pela
primeira vez, aliás, naquele instante, eu que sempre passo por ali; é que a
minha borboleta amarela se tornava sensível às cores.
Ela
borboleteou um instante sobre o casal de namorados; depois passou quase junto
da cabeça de um mulato magro, sem gravata, que descansava num banco; e seguiu
em direção à Avenida. Amanhã eu conto mais.
***
Eu
ontem parei a minha crônica no meio da história da borboleta que vinha pela rua
Araújo Porto Alegre; parei no instante em que ela começava a navegar pelo oitão
da Biblioteca Nacional.
Oitão,
uma bonita palavra. Usa-se muito no Recife; lá, todo mundo diz: no oitão da
igreja de São José, no oitão do Teatro Santa Isabel... Aqui a gente diz: do
lado. Dá no mesmo, porém oitão é mais bonito. Oitão, torreão.
Falei
em torreão porque, no ângulo da Biblioteca, há uma coisa que deve ser o que se
chama um torreão. A borboleta subiu um pouco por fora do torreão: por um
instante acreditei que ela fosse voltar, mas continuou ao longo da parede. Em
certo momento desceu até perto da minha cabeça, como se quisesse assegurar-se
de que eu a seguia, como se me quisesse dizer: "estou aqui".
Logo
subiu novamente, foi subindo, até ficar em face de um leão... sim, há uma
cabeça de leão, aliás há várias, cada uma com uma espécie de argola na boca, na
Biblioteca. A pequenina borboleta amarela passou junto ao focinho da fera,
aparentemente sem o menor susto. Minha intrépida, pequenina, vibrante borboleta
amarela! pensei eu. Que fazes aqui, sozinha, longe de tuas irmãs que talvez
estejam agora mesmo adejando em bando álacre na beira de um regato, entre
moitas amigas – e aonde vais sobre o cimento e o asfalto, nessa hora em que já
começa a escurecer, oh tola, oh tonta, oh querida pequena borboleta amarela! Vieste
talvez de Goiás, escondida dentro de algum avião; saíste no Calabouço, olhaste
pela primeira vez o mar, depois...
Mas
um amigo me bateu nas costas, me perguntou "como vai bichão, o que é que
você está vendo aí?" Levei um grande susto, e tive vergonha de dizer que
estava olhando uma borboleta; ele poderia chegar em casa e dizer:
"encontrei hoje o Rubem, na cidade, parece que estava caçando
borboleta".
Lembrei-me
de uma história de Lúcio Cardoso, que trabalhava na Agência Nacional: Um dia
acordou cedo para ir trabalhar; não estava se sentindo muito bem. Chegou a se
vestir, descer, andar um pouco junto da Lagoa, esperando condução, depois viu
que não estava mesmo bem, resolveu voltar para casa, telefonou para um colega,
explicou que estava gripado, até chegara a se vestir para ir trabalhar, mas
estava um dia feio, com um vento ruim, ficou com medo de piorar – e demorou um
pouco no bate-papo, falou desse vento, você sabe (era o noroeste) que arrasta
muita folha seca, com certeza mais tarde vai chover etc., etc..
Quando
o chefe do Lúcio perguntou por ele, o outro disse: "Ah, o Lúcio hoje não
vem não. Ele telefonou, disse que até saiu de casa, mas no caminho encontrou
uma folha seca, de maneira que não pode vir e voltou para casa."
Foi
a história que lembrei naquele instante. Tive – por que não confessar? – tive
certa vergonha de minha borboletinha amarela. Mas enquanto trocava algumas
palavras com o amigo, procurando despachá-lo, eu ainda vigiava a minha
borboleta. O amigo foi-se. Por um instante julguei, aflito, que tivesse perdido
a borboleta de vista. Não. De maneira que vocês tenham paciência: na outra
crônica, vai ter mais história de borboleta.
***
Mas,
como eu ia dizendo, a borboleta chegou à esquina de Araújo Porto Alegre com a
Avenida Rio Branco; dobrou à esquerda, como quem vai entrar na Biblioteca
Nacional pela escada do lado, e chegou até perto da estátua de uma senhora nua
que ali existe; voltou; subiu, subiu até mais além da copa das árvores que há
na esquina – e se perdeu.
Está
claro que esta é a minha maneira de dizer as coisas; na verdade, ela não se
perdeu; eu é que a perdi de vista. Era muito pequena, e assim, no alto, contra
a luz do céu esbranquiçado da tardinha, não era fácil vê-la. Cuidei um instante
que atravessava a Avenida em direção à estátua de Chopin; mas o que eu via era
apenas um pedaço de papel jogado de não sei onde. Essa falsa pista foi que me
fez perder a borboleta.
Quando
atravessei a Avenida ainda a procurava no ar, quase sem esperança. Junto à
estátua de Floriano, dezenas de rolinhas comiam farelo que alguém todos os dias
joga ali. Em outras horas, além de rolinhas, juntam-se também ali pombos, esses
grandes, de reflexos verdes e roxos no papo, e alguns pardais: mas naquele
momento havia apenas rolinhas. Deus sabe que horários têm esses bichos do céu.
Sentei-me
num banco, fiquei a ver as rolinhas – ocupação ou vagabundagem sempre doce, a
que me dedico todo dia uns 15 minutos. Dirás, leitor, que esse quarto de hora
poderia ser mais bem aproveitado. Mas eu já não quero aproveitar nada; ou
melhor, aproveito, no meio desta cidade pecaminosa e aflita, a visão das
rolinhas, que me faz um vago bem ao coração.
Eu
poderia contar que uma delas pousou na cruz de Anchieta; seria bonito, mas não
seria verdade. Que algum dia deve ter pousado, isso deve; elas pousam em toda
parte; mas eu não vi. O que digo, e vi, foi que uma pousou na ponta do trabuco
de Caramuru. Falta de respeito, pensei. Não sabes, rolinha vagabunda, cor de
tabaco lavado, que esse é Pai do Fogo, Filho do Trovão?
Mas
essa conversa de rolinha, vocês compreendem, é para disfarçar meu desaponto
pelo sumiço da borboleta amarela. Afinal arrastei o desprevenido leitor ao longo
de três crônicas, de nariz no ar, atrás de uma borboleta amarela. Cheguei a
receber telefonemas: "eu só quero saber o que vai acontecer com essa
borboleta". Havia, no círculo das pessoas íntimas, uma certa expectativa,
como se uma borboleta amarela pudesse promover grandes proezas no centro
urbano. Pois eu decepciono a todos, eu morro, mas não falto à verdade: minha
borboleta amarela sumiu. Ergui-me do banco, olhei o relógio, saí depressa, fui
trabalhar, providenciar, telefonar... Adeus, pequenina borboleta amarela.
Rio,
setembro de 1952
Fonte:
http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/aborboletaamarela.htm.