O conto abaixo é de autoria de Nelson Rodrigues.
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Boa leitura!
O CRÂNIO CALVO
A mãe resolveu pôr a questão em pratos limpos:
– Vem cá, minha filha, vem cá! Passando a escova nos cabelos, Julinha aproximou-se:
– Pronto, mamãe.
D. Matilde, que era uma gorda senhora, de busto imenso, indescritível, não sabe por onde começar. Finalmente, toma coragem:
– Quero que você me explique uma coisa, você gosta ou não gosta do Aluízio?
– Gosto. E a mãe:
– Pergunto se gosta pra casar, minha filha. Julinha suspira.
– Talvez.
– Ah, não! Tem santíssima paciência, mas isso não é resposta. Afinal de contas, esse namoro, já dura há quanto tempo? Dois anos!
– Três, mamãe. A velha retifica:
– Ou três. Pois é. Três anos. Tempo mais do que suficiente. Você decide se quer, ou se não quer e pronto, acaba-se com isto.
Novo suspiro de Julinha:
– Vou resolver, mamãe. Por essa semana, eu liquido o assunto.
Estranho namoro
De fato, era um estranho namoro, que se arrastava ao longo dos dias, semanas e meses, justificando a pergunta: “Sai ou não sai esse casamento?” Tanto a pequena, como a família, os conhecidos, coincidiam na seguinte opinião: Aluízio era um partido ótimo. Funcionário do Itamaraty, sempre de colete, flor na lapela, calças de vinco espetacular, tinha sempre o ar de que lavou o rosto há dez minutos. Essa pele enxuta dava o que pensar. Fazia-se a blague: “Aluízio não transpira. Aluízio não sua!” De resto, era a delicadeza personificada, incapaz de uma grosseria, de uma irritação. Julinha, reconhecendo as virtudes do rapaz, criava apenas uma objeção:
– É bom demais!
Dir-se-ia que esse conjunto de qualidades a desencantava. Há três anos atrás, Aluízio se declarara mais ou menos nestes termos:
– Eu gosto de você, amo você. Mas não tenho pressa. Você pensa, estuda o assunto e, depois, me dá uma resposta. Sim?
– O.k.
O tempo, porém, foi passando e nada de resposta. Andavam sempre juntos.
Nas festas, Aluízio era o par inevitável e constante. A própria Julinha o apresentava como “noivo”, “meu noivo”, embora não tivesse havido o pedido oficial. Intimamente, talvez tivesse desejado um amor mais sôfrego, mais impaciente. Mas como a situação ficasse em suspenso, a família começou a fazer pressão: “Casa logo! Casa de uma vez!” A mãe insistia:
– Um rapaz tão bom! E gosta tanto de mim!
Esta era uma virtude a mais de Aluízio: cortejava a sogra, a futura sogra, da maneira mais deslavada. E a coisa dava tanto na vista que uma prima de Julinha, meio destabanada, criticou: “Mas é um puxa-saco esse cara!”
Decisão
Tanto falaram que, por fim, Julinha viu-se sem argumento. Vira-se para a mãe, define-se:
– Caso, pronto. Caso.
Quando Aluízio soube, apanhou a mão da garota e a levou aos lábios. Sem uma palavra, Julinha teve o comentário interior: “Por que não me beijou na boca?” O fato é que ela, perplexa diante das próprias reações, ignorava se o amava ou não. De noite, sozinha com d. Matilde, suspira:
– Mamãe, eu acho que amor é ou deve ser isso que eu sinto! Então, d. Matilde pensa, pensa e opina:
– Amor é ilusão, minha filha. A amizade tem muito mais valor.
Quarenta e oito horas depois, ocorre um pequeno episódio, cuja importância só se avaliaria muito posteriormente. Ia Julinha, da cidade para casa, de automóvel. Na esquina de Sete de Setembro com avenida, fecha o sinal. E, então, a garota vê apenas o seguinte: o inspetor de trânsito, que trabalhava no local, acaba de tirar o quepe. E surgiu a sua cabeça, à luz do dia. Mas não era uma cabeça normal, mas algo de liso, nu, sem a mais vaga, a mais remota, a mais sumária penugem. Uma bola de bilhar não seria mais depilada do que aquela calva resplandescente. Julinha ia com o Aluízio e o cutuca: “Espia! Espia!” Ele olhou, surpreso com o deslumbramento da noiva. Julinha prossegue, fremente:
– A cabeça de papai era assim. Também não tinha um fio de cabelo, nada. O sinal abriu. O carro passou, deixando para trás o inspetor de tráfego.
Julinha não mentira: dr. Venâncio Almendariz, seu pai, alto funcionário do Ministério da Justiça, sofrera uma moléstia do couro cabeludo, perdendo, numa semana, todos os cabelos. Dir-se-ia uma dessas calvícies compactas e artificiais, que se usa no teatro. Seus subalternos, no ministério, costumavam dizer à boca pequena, que o dr. Venâncio era a “maior careca da história do Brasil”. Ele morrera assim. No caixão, era de arrepiar aquele defunto calvo. Alguém tapou com dálias e cravos o crânio nu.
Lamentável
Julinha adorava o pai e preservava sua memória como uma fanática. Ao chegar em casa, arremessou-se nos braços maternos: “Imagina! Imagina!” Referiu-lhe o caso. Diante do espanto de d. Matilde e do descontentamento de Aluízio, ela esvaiu- se em exclamações:
– Que coisa linda, meu Deus do céu!
Exagerou tanto que, dentro de sua polidez habitual, o noivo pondera:
– Espera lá! Onde é que você viu careca bonita? Vira-se chocada:
– E não é?
Ele foi taxativo:
– Claro que não! Acho, até que há, num careca, qualquer coisa de imoral, de… Julinha o interrompe, com violência:
– Pois olhe, eu gostaria que você fosse careca, que não tivesse cabelo nenhum.
Percebeu?
Réplica do noivo:
– Fraco gosto!
Ressentimento
Era o primeiro incidente entre os noivos. D. Matilde tentou apaziguá-los: “Parecem crianças!” Julinha, porém, fugiu com o rosto, quando, na saída, o noivo quis beijá-la. Foi sumária: “Estou zangada.” No dia seguinte, a mesma coisa. Houve nova intervenção de d. Matilde. Mais tarde, o jovem diplomata chama a sogra à parte e desabafa, num tom cortês, mas franco. Concluiu, dizendo:
– Veja a senhora, eu acho que Julinha ficou meio biruta depois que viu o inspetor careca.
De uma forma ou de outra, Julinha nunca mais foi a mesma. Era apenas cordial e nada mais. Ao lado do noivo, tinha abstrações súbitas, certos silêncios, um ar de ausência. Uma noite, sonhou, até o amanhecer, com uma legião de crânios calvos.
Bodas
Finalmente, casaram-se. Primeiro, no civil, claro. E à tarde, no religioso. Julinha estava uma noiva de revista de modas. Ao entrar na igreja, houve um deslumbramento geral, quase desrespeitoso. Já caía a noite, quando os noivos entraram, num automóvel feérico, com chofer e ajudantes de luvas. Partiu o carro. Na avenida, justamente na esquina da avenida com a Sete de Setembro, fecha o sinal. Para o automóvel. Então, dá-se a coincidência: lá estava o mesmo guarda do tráfego.
E, por fatalidade, ele repete o gesto anterior: tira o boné para enxugar a cabeça nua. A calva surgiu, em todo o seu esplendor. Então, ocorre o imprevisto: Julinha desprende-se do noivo, abre a porta e corre, como um fantasma nupcial, pelo asfalto. Estupefato e sem se mexer, Aluízio viu aquela noiva em desvario, pôr-se na ponta dos pés e beijar o crânio resplandescente, que a magnetizara.
Fonte: https://contobrasileiro.com.br/o-cranio-calvo-conto-de-nelson-rodrigues/.