Quando ele despertou, deitado ao comprido num estreito caixão negro e dourado, tinha as mãos postas numa derradeira prece. Lançou vagamente os olhos em torno, e em torno tudo era silêncio e treva. Procurou levar as mãos aos olhos, mas sentiu as mãos presas, sem movimento; e parece-lhe então que estava morto.
Como é pesado o ar que respira! Como é profunda a escuridão que encerra! E onde está? No seu quarto? No seu leito? Que estranha cama, estreita e dura! E por que dorme calçado? E que vestes tão solenes! Terá vindo ébrio de alguma festa? E as mãos amarradas! E que falta de ar! Ah! Que dolorosa e lenta agonia.
De novo distendeu os braços; mas a fita que os unia partiu-se, a as mãos geladas bateram de encontro às tábuas. Passou os frios dedos pelo rosto e retirou-os espantado, sentindo a face morta como a de um cadáver. Veio-lhe à memória uma vaga lembrança de moléstia e de perda de sentidos.
E sentiu em si uma tampa, uma tampa de caixão, de caixão de defunto!
Um medo contínuo de si próprio, um indefinível asco do “cadáver” que sente a seu lado, assoberba-o. Rebenta o caixão, levanta-se, quer correr, mas bate de encontro a uma parede, uma fria e cinzenta parede de mármore. Rápida e rija vem-lhe a certeza de estar enterrado vivo, prisioneiro da morte, atirado num calabouço. No silêncio e na treva, entra a loucura e a morte, dá dois passos, mas tropeça. Que será?
E como seus pés tateassem na sombra, encontraram um degrau que subiram; depois, outro mais outros, outros ainda. Oh! Que sepultura profunda! Erguendo as mãos para o céu que está tão longe dos abismos, sentiu nas mãos a fria laje do teto.
— Em vão tenta erguê-la. Respira a longos haustos por uma fresta aberta na pedra. Um novo esforço para erguê-la: em vão! — Uma sepultura de mármore, como que para guardar o corpo aos vermes e ao pó; uma fresta por onde apenas entra o ar que prolonga a vida ao condenado; uma escada que os passos sobem e inutilmente descem; uma laje que se levanta para enterrar os mortos e que se não ergue para salvar os vivos; — Oh! Essa sepultura é com certeza uma sepultura de Igreja.
E novamente luta para erguer a pedra, mas com o esforço inútil, vem o cansaço, vem o abatimento, vem o desânimo. Então como o inconsciente ou o muito atilado, que vendo abertos os braços lívidos da Morte, em vez de fugir; aos braços se atira, ele resignadamente desce. Ao descer alucinado e cego, bate com o corpo no mármore da parede e grita. A sua voz sobe e desce, abafada como o eco de um trovão distante encerrado’ numa gruta profunda. Agora, sereno e calmo, como quem leva um sol apagado no coração e uma estrela sem luz em cada olhar, sobe de novo os degraus da Vida e da Morte. Nos primeiros momentos, com a calma e serenidade com que subira, junta ao intento a sua força, mas a pedra permanece impassível. A angústia do sofrimento prolongado destrói-lhe o sossego da ação; com um doloroso esforço, ingurgitadas as veias, os músculos retesados na onipotência da sua própria força, os olhos saltando das órbitas, procura num ansiado desespero levantar a pedra que talvez para sempre o encerra. Trabalho inútil! Parece que o pranto preso na garganta vai sufocá-lo, — e sente uma a uma ensanguentarem-se, dilacerarem-se, largarem-lhe da carne as unhas. Impossível!
Exausto de fadiga e dor, deixa-se abater, e o seu corpo doente, rolando de degraus como um fardo sinistro, vai parar ao pé da parede cinzenta e fria...
Veio o sono. Veio seguindo a nébula do sono a doida fantasia do sonho.
Era vago e tênue. Mas porque tão vago fosse e tão tênue, quase sem tonturas, o Espírito-Zombateiro dos Sonhos fê-lo aclarar-se, — assim como uma cidade que despede aos primeiros raios do sol a túnica de névoas em manhãs de frio.
Vai-se largamente o sonho dilatando, mas sempre duvidoso e cinzento.
Era uma noite profunda, iluminada de estrelas. O céu muito alto era como um imenso veludo macio. — E o céu alto e a noite profunda cobriam e envolviam uma cidade estranha, mas que lhe não era de todo desconhecida. Havia velhos lugares que amava e, pelos sítios conhecidos, — nem viv’alma! Apenas sombra. Caminhava e, quando era a grande fadiga e o repouso que lhe abria os braços amigos, outros braços mais fortes o impeliam e uma sinistra voz bradava: — Marcha! Marcha! — As pernas pesavam, se entorpeciam; desejos protetores de descanso inundavam-lhe o lasso corpo. À proporção que atravessava caminhos, os caminhos mudavam: eram jardins floridos e perfumados, prados extensos, longas campinas, casarios que fugiam na sombra; outras vezes, charnecas adustas e ressequidas, betesgas exalando podridão. Passou por cemitérios e à sua passagem os defuntos erguiam-se, cobertos de pó e de segredo, acompanhando-o fantasticamente por dilatados e dolorosos momentos. As arvores tomavam assombradoras formas de avejões e as estrelas, apagando-se no céu, deixavam o céu cinzento e frio como o mármore da sua sepultura tão fria e tão cinzenta. E, entretanto, no silencio, na noite e na treva — o defunto caminhava.
De súbito, como aos olhos tontos e averiguadores do náufrago, aparece orla branca de uma praia distante, no seu espírito cansado nasceu uma idéia feliz: aquela noite de loucura e de assombramento marcava o aniversário de sua noiva e por data essa tão formosa haveria uma formosa festa. Devia ser tarde; ansiavam por ele. — Com uma força nova, um grande desejo de ver, de ouvir, de sentir, de querer, de palpitar, de amar e de viver banhou-lhe a alma numa cariciosa sensação de vida. Apressou o passo, correu. Mas, voltando-se para trás, julgou ver na sombra uma sombra que resvalava. Levantaram-se-lhe os cabelos, um calafrio de medo correu-lhe o corpo de alto a baixo — e partiu, assombrado, numa carreira mal segura, de perseguido. Batendo com os pés no solo, todo o solo ressoava ao contato, como se os pés fossem de aço. Depois, com surpresa, sentiu-se leve; houve um suspiro de prazer e de alivio e, flutuando no espaço, começou a voar. Subiu; rompeu a camada cinzenta do céu e o céu tornou-se inteiramente negro. Como subisse mais alto, seus olhos extasiaram-se diante do azul, um azul, tão límpido e transparente como atéhoje olhos humanos não sonharam. No alo, imensamente longe, brilhavam as estrelas no glorioso esplendor de uma imortal claridade.
Muito embaixo, perto da Terra, desaparecia a Lua amorável dos poetas. Os seus olhos humanos quase cegaram fitando Sírius. — Entre as estrelas abriu-se o céu e aqueles mesmos deslumbrados olhos viram sobre os sóis o suave Jesus dos Humildes. Perto de Cristo apareceram duas sombras que se foram corporificando e nas quais o Defunto se reconheceu, a si e a sua Noiva! Ela! Mas como, se “ele” ali estava oculto contemplando a felicidade do outro “ele”! Jesus os abençoou. E eles voaram. Ah! Se ele pudesse, também seguir-lhes o vôo!...
Quando quis voar, as asas se lhe desfizeram e ele caiu, rolou, precipitou-se, tocou a terra — e partiu novamente, correndo pelas estradas solitárias e ermas. Voltando o rosto viu outra vez, na treva, o mesmo vulto que o acompanhara; dominado pelo medo, correu mais, até que, numa curva do caminho, espessa sebe lhe tomou o passo. Retrocedeu, passou, assombrado, pelo vulto, que lhe estendeu os braços, e na mesma carreira fantástica, atravessou planícies, estepes nuas, estradas mortas, frias e cinzentas. Lamentou a perda das suas asas felizes e lembrou-se da sombra que não o deixava. Mas, se ele estava morto, por que o perseguiam? Cada vez mais o vulto avançava e era tão longe a casa de sua Noiva! O vulto já ia tocá-lo... — Mas ele era cadáver e na sua qualidade de morto, devia amedrontar os vivos... Voltou-se, mas quem que era riu-lhe diante da medrosa face. Mais intenso foi então o pavor de si mesmo e da sombra que devia ser a sua alma... e ela vinha resvalando na sombra, acompanhando-o... Estava perdido! Já não tinha mais forças! Coragem! Uma luz brilhou ao longe; oh! Que deliciosa alegria! Era a casa de sua Noiva! Mas um passo! Avante! O alguém seguia-o, quase alcançando-o; mas estava salvo! Era a casa dela, era o som da orquestra, era a luz intensa, era a salvação! Um pouco de ânimo — coragem! E antes de bater com o corpo nas lajes cinzentas e frias da sepultura, pareceu que o vulto perseguidor lhe abriu os braços. E também pareceu que era os braços regelados da Morte...
Um raio de sol, fino e tênue, atravessava a fresta aberta na pedra.
***
Despertou suado, ardendo em febre. Pelo seu rosto lívido andava, molemente, uma larva. Quis gritar, mas só lhe saiu da boca um grunhido surdo que o apavorou. Abriu os braços para certificar-se da vida e na treva os braços bateram contra a parede.
Pensou, então, no seu sonho — e tristemente verificou que era, em verdade, por aqueles dias, o aniversário de sua Noiva. Que data era de sua morte? Quem sabe se não era mesmo aquele o dia festivo! Todo o passado irrompeu,tumultuando, da sombra e ele reviu as longas horas de contemplação ou de melancolia em que todo o seu ser era um crente adorando a um ídolo. E outra vez, de repente, voltou a encarar a sua situação de morto.
Longas horas passaram; desparecera o raio de sol; e um sino tangia ao longe, fúnebre e evocativo, os dobres que deviam ser as da Ave-Maria. O som triste do bronze, chegando a seus ouvidos, falava na vida e na liberdade. A liberdade! A delícia infinita! Ah! Como era doloroso morrer assim, solitário, consciente, indefeso, abandonado, sem o prazer da luta, sem o esforço da salvação! E por que o enterraram vivo? Mil vezes amaldiçoou a estupidez criminosa que o atirara à morte! Os soluços e as lagrimas rebentaram e sofrendo sem termo, e chorando sem esperança adormeceu, sem sentidos, esperando pela Morte...
***
Ao despertar, na manhã do outro dia, viu a fita do sol — único que lhe levava à cova a carícia de uma visita.
Admirando-se de ainda estar enterrado, quis levantar-se e sentiu que desmaiava. Tinha uma fome devoradora e uma sede que o requeimava. Ah! Quarenta e oito longas, intermináveis, horas sem comer, sem beber! Sem beber! Sentia o estomago vazio e gelado e a língua, ressequida, estalava. De novo quis levantar-se e de novo ficou. O dia inteiro — longo como um deserto; a noite inteira — vazia como o silêncio, ele passou, ora em profunda sonolência, ora acordado, com a ânsia estranguladora de comer e de beber.
Outra vez o sol que devia ser o dia, outra vez a manhã que devia ser a vida!
O enterrado ouviu a seus pés um guincho fino; os olhos tiveram um rápido brilho de prazer e, estendendo as mãos crispadas, apanhou um rato, vivo e mole. Abrindo os lábios num sorriso que devia ser de imbecialidade, bestializado e faminto, levou o rato à boca, frio, áspero, nojento, estrebuchando e guinchando entre os dentes. Oh! Mas a sede! A sede que aquela carne repulsiva aumentara! A fome que ela fizera crescer! — E então, num esforço hercúleo, ergueu-se; olhou a treva um instante, com um olhar profundo, calmo, parado. De repente, soltando um uivo de fera enjaulada, rasgou as roupas, dilacerou-as — e, nu, selvagem, rugindo e chorando de desespero, retalhou com os dentes a carne branca dos seus braços. O sangue brotava em ondas rubras que espumavam e ele o sorvia, atirando a cabeça de um lado para o outro, aparando-o para não perder uma gota chupando aquele sangue que corria quente espesso, vivo, garganta abaixo, descendo para o estomago crispado pela fome.
Um rugido mais rouco, dois saltos contra a parede onde repartiu a cabeça, de onde brotou mais sangue que lhe envolveu o rosto numa mascará vermelha. Enlouquecera.
Outra vez, pela ultima vez, subiu as escadas. Ajoelhou-se, rilhou os dentes, entrelaçou os dedos sobre as mãos, numa prece maldita — e ficou morto, imóvel, rígido e nu, coberto de sangue escarlate, como o mármore cinzento e frio da sua sepultura...
Fonte: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/thomas_lopes.pdf.