A crônica abaixo foi escrita por Antônio Maria.
Para maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.releituras.com/antoniomaria_bio.asp.
Boa leitura!
BILHETE FRATERNAL, TALVEZ ÚTIL
Minha
prezada Maísa:
Sabe
você com que cores se costuma pintar os maus momentos e as aflições alheias.
Ontem, por exemplo, disseram-me, na rua, que você, num só desespero, além de
cortar os pulsos, abrira o gás do banheiro e ingerira uma dose violentíssima de
certos comprimidos tóxicos. Era a notícia que corria em Copacabana, depois das
seis da tarde. Mais tarde, nas boates, todos diziam que o seu estado era
desesperador, aguardando-se o desenlace para cada momento.
Comentei
com amigos o desperdício dos suicídios e, no seu caso especial, o absurdo de
uma jovem tão bonita, tão artista, tão cheia de êxitos, tender, constantemente,
para a desistência do bem essencial a todos os bens, que é a vida. Hoje, graças
a Deus, os noticiários da imprensa contaram a história direito, explicando que
você apenas tomara um pileque maior e alguns comprimidos além de Miltown.
Contra
os pileques, não tenho nada a reclamar. Também os tomo, e só Cristo sabe com
que desgosto lamento os erros a que eles me levam. Mas no beber há um mistério,
uma sabedoria e, além disso, um certo recolhimento, que nos levam sempre aos
copos, com independência e estado de graça. Não fosse a ameaça futura de ter um
fígado transformado em pâté maison e não pesassem outras ameaças sobre os
devotados do álcool, os sábios e doutores aconselhariam que a humanidade
bebesse o mais possível ― isto, na constatação de não nos ter o Criador
concedido nascer bêbados, o que seria, além de nobre, muito mais barato.
Mas,
minha prezada Maísa, o que me leva a este bilhete não é aconselhá-la à
perseverança do scotch e seus substitutivos. Queria conversar sobre a morte,
dentro da verdade irrefutável de que a vida, mesmo quando não chega a ser uma
delícia, é uma fascinante experiência de luta e coragem, bela não só nos
momentos de intensa felicidade, como, e mais ainda, nos transes dolorosos, de
que saímos mais livres e fortes. Não quero dizer com isso que sofrer seja bom.
Boa é a nossa convicção de sobrevivência a todas as injustiças que nos fazem à
carne e à alma.
O
suicídio contém uma desforra, e este é o seu lado fascinante. Mas o suicídio
contém a morte, e este é o seu defeito irreparável. Nunca morrer hoje, quando
se pode morrer amanhã... ou daqui a cem anos. Há muito o que ver e sentir, há
muito o que amar! Em mim e em meus semelhantes mais intranquilos haverá, um
dia, aquela manhã clara e azul, e, com os olhos da alma sossegada, veremos toda
a beleza da rosa, toda a luz do lago duro e prisioneiro, o sopro da manhã cheia
de pássaros, o convite do amor no ser que passa.
Quantas
vezes estive cansado, infeliz da minha completa impossibilidade, cativo da hora
improtelável, faltado de todo o bem-querer humano, faltoso a todos os meus
compromissos e, mesmo assim, estive certo dessa manhã que nos aguarda a todos.
Há uma série de acontecimentos recentes em minha vida, que só por eles jamais
cometeria a ingratidão de me matar. Poderia enumerar alguns: o caminho de
Versalhes, a descida do Tejo, a estrada de Teresópolis, a noite que acabo de
dormir, pesadamente. Em tudo isto quanto apego a esta minha vida sem método,
por este destino sem porto de chegada, pelo meu coração, que só deseja o acaso
dos homens e das coisas! Que incontida necessidade de confiar! Que lúcida noção
de todas as minhas falhas... E, mesmo assim, viver! Ninguém recebeu o conselho
dos mortos. Por isso, ninguém se deve matar.
Minha
jovem amiga, abra uma janela de sua casa ― a que dá para o mar ou para a
montanha. Procure o mundo e dê-se por perdida. Viva, sem a nervosia de
procurar-se a si mesma, porque cada um de nós é um perdido, um ilustre perdido
na humanidade vária e numerosa. Viva, que no fim dá certo. É o seu amigo, A.M.
Fonte: https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/13366/bilhete-fraternal-talvez-util.
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