O
texto abaixo é da autoria de Rachel de Queiroz.
Boa
leitura!
UM
CASO OBSCURO
Não
quero fazer campanha contra quem acredita em espíritos, quem tem visões ou ouve
"avisos". Espiritismo é religião tão respeitável quanto qualquer
outra. Quero apenas prevenir meu amigo leitor contra alguma conversão
apressada, porque o fato é que as forças da terra muitas vezes se misturam com
as forças do céu.
O
caso que passo a contar como exemplo, naturalmente que é verídico. Se fosse a
cronista inventar um conto, teria que apurar muito mais o enredo e os
personagens, dar-lhes veracidade e complexidade. E, aliás, como ficção ele não
teria importância nem sentido. O seu valor único é a autenticidade.
Certa
professora de grupo, minha conhecida, tem uma empregada, senhora cinquentona,
de cara séria e jeito discreto, natural de Suruí, no Estado do Rio, de onde
veio há poucos meses. E lá em Suruí deixou a mãe cega e enferma, da qual não
tinha notícias desde que viera para a cidade. Analfabeta, não escrevia nem
recebia cartas. Essa gente da roça não acredita muito em correspondência senão
para notícias capitais.
Mas
um belo dia acordou a empregada, que se chama Joana, chorando, abaladíssima,
queixando-se de estranhas visões. Dizia que passara toda a noite acordada; mas
não pudera chamar ninguém porque com o medo ficara sem fala. Sentira uns
assopros no ouvido, depois lhe sacudiam a cama, como se fosse um terremoto. Por
fim vira a mãe, a velhinha cega, estirada num caixão, metida numa mortalha
preta. Toda a manhã a mulher chorou e lamentou-se. A patroa, penalizada,
ofereceu-se para mandar um telegrama pedindo noticias. Joana porém tinha medo
de telegramas:
—
E mais medo tem minha mãe. Chegando telegrama lá, se ela ainda estiver viva
morre só de susto.
Estavam
nisso as coisas quando ao meio-dia aparece na casa da professora um filho homem
de Joana, que também reside na cidade. Trazia na mão um envelope fechado, sem
carimbo nem selo. Era uma carta vinda em mão própria da sua terra, explicou o
moço. E como ele também não sabia ler, pediram à patroa que abrisse e lesse a
missiva — aliás curta e comovente.
"Minha
irmã como vai esta tem por fim de lhe dizer que a nossa mãe está às portas da
morte já de vela na mão. Joana se apresse sinão não vê mais nossa mãe adeus do
seu irmão Basílio."
Chegando
assim aquela carta, após a série de visões noturnas, era impressionante. E a
própria patroa a abrira, excluindo-se assim a possibilidade de conhecimento
prévio do conteúdo. Era uma dessas bofetadas que o mundo dos invisíveis atira
aos pobres humanos, deixando-os cheios de susto e dúvida. Com seus próprios
ouvidos escutara a patroa pela manhã a história do assopro, das sacudidelas na
cama, da figura amortalhada no caixão. Com suas mãos recebera a carta, com seus
olhos lera o endereço tremido e oblíquo, e depois a lacônica má nova.
Naturalmente deu imediata licença a Joana para a viagem. Grande falta lhe faria
em casa, mas quem pode pensar em impedir um filho de despedir-se da mãe, à hora
da morte? E deu-lhe mais dinheiro, deu-lhe um vestido preto quase novo, consultou
o horário dos trens, forneceu provisões para a viagem. Não era só caridade de
burguesa progressista que a animava, mas principalmente o interesse do profano
por uma criatura feita instrumento das forças do Incognoscível. E Joana partiu.
A patroa ficou contando a história aos conhecidos; contou por boca e por
telefone. Chegou a contar por carta. Não a repetiu às crianças no grupo só de
medo de assustá-las com essas coisas misteriosas que ficam entre o céu e a
terra. O caso era tão simples, tão líquido: resumia-se apenas a fatos dos quais
ela própria era testemunha. E fazia cálculos: a carta deve ter partido de Suruí
na antevéspera, de modo que a velha bem podia estar mesmo morrendo na hora das
visões noturnas de Joana. Ficou a esperar impaciente a volta da viajante. Sim,
porque Joana pediu que o seu lugar fosse conservado, que, consumado tudo,
voltaria. "Nem espero a semana de nojo, patroa. Venho logo depois do
enterro."
E,
falando em enterro, rompeu em pranto.
Passados
oito dias, chegou Joana, mas ainda com a saia estampadinha de encarnado com a
qual partira, em vez do vestido de seda preta que lhe dera a patroa, prevendo o
luto. Sim, a velha continuava viva. Contou que a mãe estivera de fato muito
ruim, vai-não-vai, mas de repente melhorara. Por isso Joana se demorara mais,
até que a melhora parecesse segura. E voltou a trabalhar como dantes.
Aquela
quase ressurreição desorientou a patroa. Afinal, a velha aparecera de mortalha,
e dera o assopro, e sacudira a cama... Mas consultando sobre o assunto os amigos
espíritas, eles lhe explicaram que era assim mesmo, e tanto o espírito
encarnado como o desencarnado poderia mandar "avisos". Falaram mesmo
em corpo astral, e a professora se impressionou muito.
Nesse
estado moral ficou, meio abalada, meio crente, até que um dia sucedeu dessas
incríveis, dessas raras coincidências que só acontecem na vida real e nos
romances de fancaria: recebeu a visita de uma amiga a quem também contara a
história da visão. A amiga vinha de propósito lhe narrar a tal coincidência
inaudita. Imagine-se que o filho de Joana por acaso fora trabalhar em sua casa,
consertando-lhe o jardim. Lá estava fazia uma quinzena quando inexplicavelmente
desapareceu por uma semana. Passados os oito dias, voltou, e alegou motivo de
moléstia para a ausência.
No
jardim, revolvendo os canteiros, podando o fícus, estabeleceu-se entre
jardineiro e patroa esse entendimento normal entre companheiros de trabalho,
Ela explicava como queria o serviço, ele dizia que na casa do Dr. Fulano fazia
assim e assim, que enxerto de mergulha só é bom com lua tal etc. Afinal, ela
lhe perguntou que doença fora a sua, dias antes. O rapaz, que enterrava umas
batatas de dália, ficou encabulado. Depois, teve assim como um assomo de
consciência, e explicou:
—
Patroa, falar a verdade é preciso. Não estive doente não. Mas o caso é que
minha mãe meteu na ideia ir em casa, com vontade de assistir umas ladainhas que
rezam lá no mês de agosto. Como estava num emprego bom, teve medo que a
dona-de-casa se zangasse com uma viagem assim à-toa e não guardasse o lugar
para ela, de volta. Então se combinou comigo, só por causa de não fazer a moça
se zangar. Pegou a ter uns sonhos com a minha avó, enfiava os olhos na fumaça
do fogo para sair chorando. Ai eu mandei um companheiro fazer uma carta
chamando, dizendo que a velha estava morrendo, lá no Suruí. A patroa consentiu
logo, naturalmente. Tive que fazer companhia a minha mãe, assistimos as
ladainhas e agora estamos os dois de volta à nossa obrigação...
A
moça ficou espantadíssima:
—
Mas, criatura, como é que sua mãe teve a coragem de chamar assim morte para
cima de sua avó? Vocês não tiveram medo do agouro?
—
Qual, dona! Uma velha daquela, cega, doente, em cima duma cama, dando trabalho e
consumição a todo mundo, chamar a morte para ela não é agouro; chamar a morte
para ela é mais uma obra de caridade. E daí, agouro que fosse, vê-se bem que
não pegou...
O
texto acima foi extraído do livro "Quatro Vozes", Distribuidora Record - Rio de Janeiro, 1998, pág. 35.