quinta-feira, 16 de abril de 2020

SESSÃO LEITURA - O SONHO DO FEIJÃO - CARLOS EDUARDO NOVAES

O texto abaixo é de autoria de Carlos Eduardo Novaes.
Para maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa644/carlos-eduardo-novaes.
Boa leitura!

O SONHO DO FEIJÃO

Dona Abgail sentou-se na cama, sobressaltada, acordou o marido e lhe disse que havia sonhado que iria faltar feijão. Não era  a primeira vez que esta cena ocorria.
Dona Abgail, consciente de seus afazeres de dona de casa, vivia constantemente atormentada por pesadelos desse gênero. E de outros gêneros, quase todos alimentícios. Ainda bêbado de sono, o marido esticou o braço e apanhou a carteira sobre a mesinha de cabeceira: "Quanto é que você quer?" A mulher pensou um pouco e pediu o suficiente para comprar 15 quilos, "depois se a situação se agravar você me dá para comprar mais 15". Levantou-se rápida, mudou de roupa e ligou para sua amiga, dona Etelvina, que era uma espécie de líder das donas de casa de Irajá.
- Alô, Etelvina? Eu estou com o pressentimento de que vai faltar feijão.
- Feijão também? Então deixa eu avisar rápido às outras.
Em menos de cinco minutos a notícia se espalhou por toda a cidade. As donas de casa possuem uma misteriosa rede de comunicação por onde os boatos se propagam com a rapidez de um Boeing-747. É só alguém dizer que vai faltar, por exemplo, azeite, no Leblon, que em três minutos já se forma uma fila no Méier.
Ao sair para comprar o feijão, dona Abgail atrasou-se um pouco para deixar seus quatro filhos na escola. Quando parou na porta do supermercado, viu uma fila enorme que se estendia por mais de 80 metros. Perguntou a uma das enfileiradas.
- Que fila é essa?
- É a do feijão.
Perfilou-se arrependida por ter revelado o seu sonho. Se não tivesse espalhado a notícia poderia fazer sua compra tranquilamente, pois ninguém saberia que o feijão ia faltar. Depois, dona Abgail começou a encontrar outras amigas, estabeleceu-se um animado bate-papo e acabou achando que aquela fila estava ótima. Era uma das melhores que já frequentara.
Existem algumas donas de casa que têm uma atração toda especial por fila. Para muitas há qualquer coisa de heroico numa fila: a espera, a paciência e o que é mais importante, a entrada triunfal em casa sobraçando o tão disputado produto. Esta é a realização suprema da dona de casa, daí elas não permitirem que suas empregadas as substituam nas filas.
Quando chegou a sua hora de comprar, dona Abgail percebeu que as prateleiras já estavam vazias. Voltou-se para dona Etelvina ao seu lado e comentou: "Eu não disse que iria faltar feijão?"
Ao sair notaram que já havia mais três filas formadas:
- Essa fila é de quê?
- De pasta de dentes.
- E essa?
- Essa é de papel higiênico.
- E essa? É pra quê?
- Pra nada. É pra quem não tem o que fazer.
Dona Abgail, que já não arranjara o feijão, pensou que deveria levar alguma outra coisa. Entrou na fila do papel higiênico e convidou dona Etelvina para acompanhá-la, "assim a gente aproveita e conversa um pouco". Dona Abgail comprou 30 rolos de papel higiênico e voltou para casa. Deu de cara com o marido que assustou-se ao vê-la chegar assim carregada e não resistiu em perguntar:
- Tem alguém desarranjado aqui em casa?
Com um apartamento pequeno, dona Abgail ficou sem saber onde colocar aqueles 30 rolos. Resolveu recorrer à sua vizinha dona Olga, companheira de mais de 10 anos de fila:
- Olga, será que eu posso deixar uns 10 rolinhos de papel higiênico em sua casa?
- Pode. Mas por quê?
- Porque como vai faltar eu resolvi estocá-lo.
- Vai faltar? Não me diga. E você não me avisou nada?
Dona Olga se arrumou rapidamente e correu ao supermercado. Já tinha oito filas, sendo que três ela só de papel higiênico. Para provar sua organização, as donas de casa fizeram uma fila para papel branco. Outra para papel rosa e outra para o azul. Dona Olga entrou na fila do azul que combinava com os azulejos de s eu banheiro. Comprou 20 rolos (dona Olga era viúva e não tinha as mesmas condições econômicas de dona Abgail, que podia comprar 30 rolos), cumprimentou algumas conhecidas de fila e perguntou:
- Alguém aí sabe o que vai faltar amanhã?
- Não sei - disse uma senhora que parecia ser a coordenadora da fila - mas parece que vai faltar azeitona.
- Verde ou preta?
- Ainda não decidimos.
- Se for verde você me telefona que eu venho.
A coordenadora informou também a dona Olga que provavelmente faltaria arroz. Dona Olga retornou à sua casa e tratou de avisar a dona Abgail que faltaria arroz.
- Oba - gritou dona Abgail - essa fila é das boas. E correu ao quarto para botar o despertador para as cinco horas.
Dia seguinte levantou-se, fez o café do marido e saiu. A fila ainda estava pequena. Entrou e, caminhando lentamente, foi esbarrar no balcão de enlatados: "Ué, mas eu vim para a fila do arroz".
- Mas o arroz não vai faltar - disse-lhe um empregado - não aqui. Parece que está faltando em Bangu.
- E o senhor sabe se tem fila por lá?
- Olha, até as seis horas a fila dava a volta no quarteirão.
Dona Abgail não pensou duas vezes. Pegou um táxi e foi para Bangu. Realmente a fila estava gigantesca. Saltou e indagou: "Essa é a fila do arroz?"
- Não, é do óleo de soja.
- Mas como do óleo de soja? Não tem óleo de soja.
- Eu sei - respondeu uma enfileirada - mas quando chegar nós já estamos na fila.
A fila foi andando, andando, e quando dona Abgail encostou no balcão o óleo de soja ainda não havia chegado. Aí dona Abgail não teve outra alternativa, pensou um pouco e comprou mais 30 rolos de papel higiênico.

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