quinta-feira, 10 de setembro de 2020

SESSÃO LEITURA - ANTA QUE BERRA - MONTEIRO LOBATO

O texto abaixo é de autoria de Monteiro Lobato.
Para maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/monteiro_lobato/.
Boa leitura!

ANTA QUE BERRA

História propriamente não é o que vou contar, mas simples episódio — coisa de um aparte inocente que atrapalhou a façanha narrada pelo meu saudoso amigo major Pedro Falaverdade, de Itaquaquecetuba.
Apesar de grande caçador o meu amigo não mentia: atrapalhava-se às vezes, confundia uma caçada com outra: mas mentir deliberadamente, como a maioria dos devotos de são Huberto, isso nunca! Para narrar feitos venatórios não havia outro; imitava ao vivo os cães na acuação, os anseios da espera, a corrida, o tiro, levando o naturalismo a ponto de reproduzir até o estrebuchamento final da caça ferida, para o que se atirava ao chão e tremelicava de pernas entre roncos e arquejos de animal agonizante.
É impossível reproduzir as suas histórias com o encanto que lhes emprestava a mímica pitoresca e o seu maravilhoso estilo técnico de caçador encanecido nas lides cinegéticas.
Além disso, confesso aqui à puridade, não sou literato; não fiz versos aos vinte anos e nem sequer coloco decentemente os pronomes.
Mas vamos ao caso.
Por uma tarde modorrenta de agosto o major narrava-me em sua fazenda a mais bela proeza da sua vida:
— Caçada de que me orgulho — dizia ele —, como Napoleão se orgulhava de Marengo.
Passou-se o feito nos sertões do Peripipeva, Serra do Mar, às margens do Itaguaçu. Para encurtar caminho e não amolar os leitores, começo do meio. Fale o major:
—… E aí soltei a cachorrada. O Vinagre, como sempre, rompeu na dianteira. Cachorro fantasista, amigo de contemplações, pegou logo de namoro com os tangarás, e moita — não correu. Olho Verde, Molho Pardo e Tatuíra, esses afundaram firmes por uns carreiros velhos.
“Mozart partiu por último, depois de um consciencioso farejo pela beira do rio.
“Mozart! Que cachorrão! Era o mestre da matilha e único que fazia fé. Os outros às vezes negavam fogo, mentiam, perdiam a caça ou mudavam de rasto. Mozart, nunca!
“Sóbrio, comedido, de poucas vozes, mas certo como um relógio. Quando ele acuava, eu me punha a postos, que era caça, na certeza matemática; e conforme o número de acuos, já de antemão eu sabia que animal levantara. Um sinal, paca; dois, veado; três, porco; quatro, anta.
“Aos bichos vagabundos, irara, cutia, coati, ouriço, ele magoava com o silêncio de um desprezo olímpico.
“Nesse dia, a primeira voz que me chegou aos ouvidos foi a acuação do Olho Verde. Não fiz caso. Olho mentia como um cachorro.
“Depois latiu a Tatuíra. Era mais sério. Tatuíra, por Mozart e Minerva, herdara do pai as sólidas qualidades de mestre, prejudicadas, porém, por umas excentricidades histéricas da mãe, que, coitada, morreu hidrófoba. E assim, como chienne souvent varie, eu que estava deitado de papo acima sob a copa de um ingazeiro marginal ergui-me, mas só nos cotovelos.
“Nisto acuou Mozart — au, au, au, au: — anta! De um pulo pus-me na espera, atento. Logo depois os latidos amiudaram e percebi que todos os cães, exceto aquele tranca do Vinagre, corriam no calcanhar da anta.
“Como você sabe, corrida de anta no mato é um castigo. Não há barulho igual. Anta acuada mete-se num trote rompente por meio dos tramados, e vara caminho em linha reta, amassando o reino vegetal como um tanque de carne.
“E por isso enche a floresta de uma barulhada infernal, de fazer pequeno o coração do caçador novato.
“Vinha para meu lado a bicha, margeando o rio. O estrépito das taquaras rachadas, e da galhaça feita em lascas, crescia de vulto rapidamente. Eu postei-me em posição de fogo, no eixo de um valado, onde forçosamente ela havia de entreparar, e engatilhei a Lafourché, bem encaroçada de paula-sousa.
“Au! au! au! Estava a bicha a coisa de cem metros; mais minuto e rompia na clareira onde a esperava o meu tiro. O barulho fez-se atroador! Parecia um furacão do inferno em trabalhos de arrasar a floresta! Os taquaruçus rebentavam com estampidos de bomba; e embaúvas de foice gemiam estaladas nas sapopembas. Vinte metros! O fragor já ensurdecia os meus ouvidos. Dez passos! Só tinha o monstro de vencer um moitão de taquaruçus para cair no limpo da espera. Bá, bá, tá, tá — a moita estremeceu, rasgou-se, estrondeante, e uma anta cascuda, que mais parecia um rinoceronte, rompeu da tranqueira verde e estacou apalermada à beira do valo. — Eu — pum! pum! — tiro de barragem no pé do ouvido. Ela moleou o corpo e sumiu o corpanzil para dentro do buraco, estrebuchando, e lá desferiu um berro que parecia fim do mundo!”
Neste ponto eu interrompi o major com um aparte inocente:
— Será que anta berra, major?
O homem vacilou um segundo, mas tomando pé incontinenti disse:
— Ora, que diabo! Estou confundido. Não era “propriamente” anta o que eu caçava nesse dia, era um veado! É isso mesmo, um lindo veado-catingueiro…
Mas, como ia dizendo, o veado berrou e eu…
O veado berrou e o major continuou a história da maior façanha da sua vida com uma impavidez que é privilégio dos heróis. E eu tive lado de verificar quanta razão assistia ao povo em tê-lo na conta do caçador mais verídico da zona. O major positivamente não mentia, confundia apenas uma caçada com outra, por defeito de memória, coisa aliás desculpável em quem já trazia sobre si o peso de sessenta janeiros. Agora que o meu pobre amigo jaz a dormir o derradeiro sono, presto aqui a homenagem desta confissão às altas qualidades do seu espírito superiormente fidedigno.

Um comentário:

  1. Amei ler esse conto! Ri muito com a pergunta: Será que anta berra?
    Os nomes dos cachorros também são muito engraçados kkkk.
    Mais um ótimo texto de Monteiro Lobato!

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