O
conto abaixo pertence ao autor venezuelano Pedro Emílio Coll.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://singrandohorizontes.blogspot.com.br/2010/06/pedro-emilio-coll-1872-1947.html?m=0.
Boa
leitura!
O
DENTE QUEBRADO
Aos
doze anos de idade, Juan Pena, brigando com uns moleques de rua, levou uma
pedrada num dente; o sangue correu, lavando-lhe o sujo da cara, e o dente
partiu-se em forma de serra. Nesse dia começa a idade de ouro de Juan Pena.
Com
a ponta da língua, Juan passava o tempo a roçar o dente quebrado — o corpo
imóvel, o olhar vago, sem pensar. Assim, de rebelde e brigão que era, fez-se
calado e manso.
Os
pais de Juan, fartos de ouvir queixas da vizinhança e dos transeuntes — vítimas
das perversidades do garoto —, e que haviam esgotado toda espécie de
repreensões e castigos, achavam-se agora estupefatos e aflitos com essa
transformação.
Juan
não dizia uma palavra, e passava horas a fio em atitude hierática, como em
êxtase, enquanto lá dentro, na escuridão da boca fechada, sua língua acariciava
o dente quebrado. Sem pensar.
—
Esse menino não anda bem, Paulo — dizia a mãe ao marido.
—
É preciso chamar o médico.
Veio
o doutor, grave e pançudo, e fez o diagnóstico: pulso normal, bochechas
sangüíneas, excelente apetite, nenhum sintoma de doença.
—
Minha senhora — acabou por dizer o sábio, depois de longo exame —, a
honestidade da minha pessoa impõe que lhe declare...
—
O quê, senhor doutor de minha alma? — interrompeu a angustiada mãe.
—
Que seu filho está são como um perro. O que é indiscutível — continuou, em voz
misteriosa —, é que estamos em face de um caso fenomenal: seu filho, minha
estimável senhora, sofre daquilo a que hoje chamamos o mal de pensar; numa
palavra, seu filho é um filósofo precoce, um gênio talvez.
Na
escuridão da boca, Juan acariciava o seu dente quebrado. Sem pensar.
Parentes
e amigos fizeram-se eco da opinião do doutor, acolhida com indescritível júbilo
pelos pais de Juan. Dentro em pouco, citava-se em toda a cidade o espantoso
caso do “menino-prodígio”, e sua fama cresceu como um balão inchado de fumaça.
Até o mestre-escola, que sempre o tivera como a cabeça mais lerda deste mundo,
submeteu-se à opinião geral, visto que a voz do povo é a voz de Deus. E cada um
trazia a confronto o seu exemplo: Demóstenes comia areia; Shakespeare era um
malandrinho esfarrapado; Edison etc.
Cresceu
Juan Pena entre livros abertos diante dos olhos, mas que ele não lia, distraído
pela tarefa de sua língua ocupada em tocar a pequena serra do dente quebrado.
Sem pensar.
E,
com o corpo, crescia-lhe a reputação de homem judicioso, sábio e “profundo”, e
ninguém se cansava de louvar o talento maravilhoso de Juan.
Juan
ainda em plena mocidade, e as mais belas mulheres tratando de seduzir e
conquistar aquele espírito superior, entregue a fundas meditações, segundo o
julgamento de todos, mas que, na escuridão de sua boca, roçava o dente
quebrado. Sem pensar.
Passaram-se
meses e anos, e Juan Pena foi deputado, acadêmico, ministro. E achava-se a
pique de ser eleito presidente da República, quando a apoplexia o surpreendeu,
acariciando com a ponta da língua o seu dente quebrado.
E
os sinos dobraram; e foi decretado rigoroso luto nacional; um orador chorou,
numa oração fúnebre, em nome da pátria; e caíram rosas e lágrimas sobre o
túmulo do grande homem que não tivera tempo de pensar.
(Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai, Mar de histórias – Nova Fronteira,
vol. 10, p. 115)