quinta-feira, 26 de maio de 2022

SESSÃO LEITURA - A CRÔNICA QUE NÃO HÁ - MIGUEL FALABELLA

O texto abaixo é de autoria de Miguel Falabella.
Para maiores informações sobre o autor, favor acessar: https://www.ebiografia.com/miguel_falabella/.
Boa leitura!

A CRÔNICA QUE NÃO HÁ

Hoje acordei com vontade de escrever uma crônica, coisa que não faço há algum tempo. É um bom exercício este: agarrar a vida pela crina e tentar traduzir seus espasmos.. Hoje acordei com vontade de jogar as palavras para o alto, para depois arrumá-las, numa sequência de cores e sentimentos. A crônica é, na essência, uma paisagem impressionista. Um por de sol pontilhado ou a visão de uma casa perdida no meio do nada. Uma fatia de vida que se apanha em pleno voo, como se apanham estrelas por aí.
Durante cinco anos escrevi uma coluna n'O Globo, intitulada "Um Coração Urbano" e passava a semana observando a vida, como um bicho à espreita, tentando capturar aquele momento que me renderia a crônica da semana. E durante todos aqueles anos - já estávamos todos conectados, benza Deus! - estabelecemos eu e os leitores, uma conexão muito forte (tenho amigos daquela época até hoje).Então talvez eu não tenha acordado com vontade de escrever uma crônica no fim das contas. Talvez eu tenha acordado com saudades daquela confraria de amantes da palavra que iam, por sua vez, traduzindo as emoções que aquela fatia de vida lhe provocara, numa progressão sem fim.
Emily Dickinson (sempre ela em minha vida) escreveu: "Eis minha carta ao mundo/que nunca me escreveu!". Amada Emily! Tivesse ela vivido em tempos midiáticos, certamente o mundo lhe escreveria. Mas voltemos à crônica e à vontade de escrevê-la. No princípio era o verbo. Sempre ele. Quando nos privam dele, roubam-nos a alma. Deixamos de ser. É fundamental, portanto, exercitá-lo. Aparar as arestas desta ímpar capacidade que nos torna humanos. Rolar as palavras na língua, acariciá-las, torná-las parte de você.
Eu aprendi a amar as pessoas, porque aprendi a amar as palavras, não sei se isso faz algum sentido. Mas quando me dei por gente, sabia traduzi-las. Ontem mesmo, por exemplo, fiquei olhando a plateia sem ser visto. É uma deformação profissional. Gosto de espiar as reações da plateia, coisa que só posso fazer quando não estou no palco. Gosto de ir adivinhando histórias e tento ser aquela pessoa, ainda que por um breve instante. Tenho uma certa obsessão com neurônios-espelho, aqueles neurônios que permitem que nos coloquemos no lugar do outro e que eu secretamente gosto de chamar de neurônios da tolerância.
São Paulo acordou chorando. Chove. Fico olhando o riacho que se formou lá embaixo, na rua, à espera de um barco de papel que me ofereça alguma viagem. Porque depois do desejo de escrever a crônica, há que se garimpar o assunto. Afinal, qual o sentido de escrever uma carta ao mundo, sem ter o que dizer? Gosto de pensar nessas cápsulas do tempo, onde vão-se guardando lembranças de nossa civilização, para que os sobreviventes de algum possível holocausto nuclear possam ter alguma memória do que foi essa fatia de vida.
Busco rapidamente alguma palavra que nos traduza o estado de espírito, antes que a cápsula se feche e imediatamente uma palavra salta: estarrecidos. Estamos todos estarrecidos com a absoluta falta de decência que nos governa. Estarrecidos. Espero mandar melhores notícias, numa próxima cápsula. Pronto. Agora voltemos a buscar um assunto para a crônica. Deixe-me ver... Acho que estou sem foco. Acordei cedo e fiquei como um urso à beira de uma corredeira, à espera do salmão. Mas não consegui pegar nada. Estou sem foco. E acabei de descobrir que a vontade de escrever a crônica foi-se sem dizer sequer um breve adeus. Acontece. Amanhã eu recomeço, como diria nosso poeta Drummond. Ainda estarrecido. Mas esperançoso de que juntos dominemos a palavra e troquemos o adjetivo. Bom dia a todos.

Fonte: http://www.miguelfalabella.com.br/cronicas/index.html.

Um comentário:

  1. Gosto dessas crônicas de Miguel Falabella! Essa é muito boa!

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