O conto que reproduzimos abaixo é da
autoria de Menalton Braff.
Para maiores informações sobre o autor,
favor acessar: http://www.menalton.com.br/.
Boa leitura!
A COLEIRA NO
PESCOÇO
Nenhum dos dois conseguia disfarçar os
danos da velhice, que suportavam em silenciosas e mútuas acusações. O velho
parecia fazer um esforço muito grande para puxar o cão ladeira acima. A sola
seca de seus sapatos esfolava o ladrilho da calçada arrancando-lhe um ruído
ríspido, áspero, como de alguma coisa que se arrasta, e isso irritava o cão,
cuja cabeça se mantinha o tempo todo virada para fora, o focinho apontando para
o lado da rua. Seu corpo todo era uma recusa tensa e escura e ele tinha o olhar
aborrecido de quem não pode esperar mais nada da vida além daquela coleira no
pescoço, na ponta de uma corrente.
Uma língua de vento gelado passou rente
ao chão, levantando em revoada, vida efêmera, folhas mortas de magnólia e de
plátano, que se misturavam a outros detritos da rua. Com seu grosso boné de lã
na mão direita, o velho cobriu o rosto e pensou que uma das maneiras de se
morrer pode ser assim mesmo: sufocado pelo cheiro da própria cabeça, um cheiro
de suores noturnos e pesadelos.
A caminhada estava suspensa à espera de
que o vento fosse brincar em outras bandas da cidade, em alguma rua onde, a uma
hora daquelas da manhã, ninguém cumprisse o destino de caminhar. Enquanto isso,
parado sobre as pernas muito abertas, o velho suportava paciente as agulhadas
da chuva de areia suspensa no ar.
O cão, de cabeça virada para a rua,
permaneceu de olhos fechados, espremendo muito as pálpebras em proteção,
aborrecido com aquele passeio cuja significação extraviara-se nos anos de sua
juventude. Sacudiu a cabeça, abanando suas orelhas dependuradas, frouxas,
porque era esse o modo de expressar sua recusa. Não olhava para a frente. Um
rancor muito antigo impedia que os dois se encarassem. Mesmo por trás, e sem a
vigilância daqueles dois olhos lacrimosos presos em suas órbitas avermelhadas,
a figura do velho causava-lhe repugnância. Por isso o pescoço torto, a cabeça
virada para a rua: o lado de fora.
A manhã passava sozinha, sem auxílio
nenhum do sol, que se mantinha escondido entre nuvens grossas e leitosas. O
vento amainou e o boné voltou para o alto da cabeça. Sem proferir uma só
palavra, o velho andou coisa de três passos. Outra vez aquele ruído áspero
esfolando os ouvidos sensíveis do cão. Preso à ponta da corrente esticada, ele
apenas manteve o equilíbrio: suas patas tentavam cravar as unhas no ladrilho do
passeio, mas era uma tentativa absurda. Moveu-se o suficiente para não cair. O
cão sabia por experiência que estava preso à ponta de uma corrente esticada.
Muitas vezes a vira, algumas vezes experimentara seus dentes nos elos de ferro.
Há muito, entretanto, tinha desistido da liberdade. Ultimamente intuíra a
existência de correntes menos visíveis e de elos sem forma definida, mas quase
todas muito mais rígidas do que os dentes de um cão. Parado na calçada, pernas
trêmulas, ele pressentiu a proximidade da magnólia. A idade não lhe extinguira
o faro. Havia, naquele tronco, imensa variedade de cheiros sobrepostos
demarcando inutilmente o sítio. Gesto atávico, há muito tempo destituído de
qualquer significado. Preso à corrente, nem essa ilusão de poderio lhe era
concedida.
A rua subia a ladeira encolhida entre
casas de janelas fechadas e algumas árvores de folhas amarelas. Tosses e vozes
mal chegavam às venezianas: a cidade recusava o dia. Além do velho e do cão,
arrastando-se com dificuldade pela calçada, bem poucos transeuntes, de cabeça
baixa, enfrentavam o frio que ainda restava da noite longa.
Cada um tem que cumprir seu itinerário
na vida, pensava o velho com o braço esquerdo esticado para trás, puxando seu
fardo. Há muito, entretanto, desistira de olhar-se no espelho.
Mesmo sendo um fragor conhecido,
repetido a cada manhã, o cão encolheu-se um pouco, em proteção, quando o velho
levou com a mão direita o lenço ao nariz. As orelhas pretas e caídas não se
moveram. Além do susto já fraco, de tão cotidiano, suas patas malferidas na
superfície áspera do passeio deveriam ser debitadas também ao companheiro. O
cão piscou seu desconforto à passagem de um carro que desapareceu na primeira
esquina, então foi arrastado por mais três passos.
A dor no ombro esquerdo só poderia ter
como causa a teimosia daquele maldito cão, que nunca aceitava sem resistência
as caminhadas matinais. O médico dissera-lhe que era desgaste da idade, a dor
nos joelhos. Não havia razão para duvidar, mas o próprio desgaste teria sido
menor se o companheiro não fosse aquele peso a ser arrastado.
As pernas secas do velho, com seus
joelhos gastos, mediam o passeio menos de quarenta centímetros a cada vez em
que se moviam. Compasso hesitante, de articulações enferrujadas, que pouco se
abria. Em sua concentração, havia indícios de uma desconfiança antiga,
principalmente quando seus pés encontraram as arestas duras de alguns ladrilhos
salientes, empurrados para cima por raízes grossas que se escondiam debaixo da
terra. Depois de avançar meia dúzia de metros, o velho parou, suado, a mão
direita espalmada contra uma parede cinza, e então olhou para trás. A
progressão existia, realmente, ou não passava tudo de alguma ilusão? Atrás ou
na frente, o que via não eram pontos a compor um ponto maior, o todo estático?
Sempre aquelas dúvidas a importuná-lo. O cão, pelo menos, o cão estava lá, no
fim da corrente, com a cauda escondida entre as pernas retesadas e trêmulas,
mergulhado em seu peso e seu pretume. Ir até o cão seria cobrir uma distância.
Esse foi um pensamento indesejado, pois jamais faria isso, mas que lhe concedeu
a paz de que tinha necessidade.
Nos últimos tempos chegaram a passar
dias, semanas, às vezes, sem a troca do menor gesto que os ligasse. E isso foi
acontecendo aos poucos, sem que percebessem. O latido rouco do cão já não tinha
qualquer significado, e o ruído desnecessário exasperava o velho, que detinha o
poder do castigo. Então espancava o companheiro, sem dó, para depois ralhar com
ele, exigindo que ficasse quieto. O cão se encolhia todo e soltava uma espécie
de gemido agudo pela boca fechada. Modelavam-se os dois, um pelas rabugices do
outro. Por fim, aprenderam a engolir o próprio rancor em silêncio.
Quando o Sol por fim se mostrou entre
galhos e platibandas, o velho e seu cão já haviam dobrado a mesma esquina por
onde o carro tinha sumido. Primeiro sumiu o velho com sua altura ameaçada de
desabar, depois foi a vez do cão, com a cabeça virada para trás. Os dois,
acorrentados um ao outro, cumprindo uma interminável caminhada.
Fonte:
http://www.releituras.com/mbraff_menu.asp.
Que lindo conto! Gostei de ler!
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