O conto que reproduzimos abaixo é da
autoria de Eça de Queiroz.
Para maiores informações sobre o autor,
favor acessar: www.e-biografias.net/eca_queiroz/.
Boa leitura!
MEMÓRIAS DE UMA
FORCA
Foi por um modo sobrenatural que eu tive
conhecimento deste papel, onde uma pobre forca apodrecida e negra dizia alguma
coisa da sua história. Esta forca intentava escrever as suas trágicas Memórias.
Deviam ser profundos documentos sobre a vida. Árvore, ninguém sabia tão bem o
mistério da natureza; forca, ninguém conhecia melhor o homem. Nenhum tão
espontâneo e verdadeiro como o homem que se torce na ponta de uma corda — a não
ser aquele que lhe carrega sobre os ombros! Infelizmente, a pobre forca
apodreceu e morreu.
Entre os apontamentos que deixou, os
menos completos são estes que copio — resumo das suas dores, vaga aparência de
gritos instintivos. Pudesse ela ter escrito a sua vida complexa, cheia de
sangue e de melancolia! É tempo de sabermos, enfim, qual é a opinião que a
vasta natureza, montes, árvores e águas, fazem do homem imperceptível. Talvez
este sentimento me leve ainda algum dia a publicar papéis que guardo avaramente,
e que são as Memórias de um Átomo e os Apontamentos de Viagem de Uma Raiz de
Cipreste.
Diz assim o fragmento que eu copio — e
que é simplesmente o prólogo das Memórias:
“Sou duma antiga família de carvalhos,
raça austera e forte — que já na Antiguidade deixava cair, dos seus ramos,
pensamentos para Platão. Era uma família hospitaleira e histórica: dela tinham
saído navios para a derrota tenebrosa das índias, contos de lanças para os
alucinados das Cruzadas, e vigas para os tectos simples e perfumados que
abrigaram Savonarola, Espinosa e Lutero. Meu pai, esquecido das altas tradições
sonoras e da sua heráldica vegetal, teve uma vida inerte, material e profana.
Não respeitava as nobres morais antigas, nem a ideal tradição religiosa, nem os
deveres da história. Era uma árvore materialista. Tinha sido pervertida pelos
enciclopedistas da vegetação. Não tinha fé, nem alma, nem Deus! Tinha a
religião do Sol, da seiva e da água. Era o grande libertino da floresta
pensativa. No Verão, enquanto sentia a fermentação violenta das seivas, cantava
movendo-se ao sol, acolhia os grandes concertos de pássaros boémios, cuspia a
chuva sobre o povo curvado e humilde das ervas e das plantas e, de noite,
enlaçado pelas heras lascivas, ressonava sob o silêncio sideral. Quando vinha o
Inverno, com a passividade animal dum mendigo, erguia, para a impassível ironia
do azul, os seus braços magros e suplicantes!
“Por isso nós os seus filhos, não fomos
felizes na vida vegetal. Um dos meus irmãos foi levado para ser tablado de palhaços:
ramo contemplativo e romântico, ia, todas as noites, ser pisado pela chufa,
pelo escárnio, pela farsa e pela fome! O outro ramo, cheio de vida, de sol, de
poeira, áspero solitário da vida, lutador dos ventos e das neves, forte e
trabalhador, foi arrancado dentre nós, para ir ser tábua de esquife! — Eu, o
mais lastimável, vim a ser forca!
“Desde pequeno fui triste e compassivo.
Tinha grandes intimidades na floresta. Eu só queria o bem, o riso, a dilatação
salutar das fibras e das almas. O orvalho de que a noite me banhava, atirava-o
a umas pobres violetas, que viviam por debaixo de nós, doces raparigas
lutuosas, melancolias condensadas e vivas da grande alma silenciosa da
vegetação. Agasalhava todos os pássaros na véspera dos temporais. Era eu quem asilava
a chuva. Ela vinha, com os cabelos esguedelhados, perseguida, mordida,
retalhada pelo vento! Eu abria-lhe as ramagens e as folhas, e escondia-a ali,
ao calor da seiva. O vento passava, confundido e imbecil. Então a pobre chuva,
que o via longe, assobiando lascivo, deixava-se escorregar silenciosamente pelo
tronco, gota por gota, para o vento a não perceber; e ia, de rastos, por entre
a erva, acolher-se à vasta mãe Água! Tive por esse tempo uma amizade com um
rouxinol, que vinha conversar comigo durante as longas horas consteladas do
silêncio. O pobre rouxinol tinha uma pena de amor! Tinha vivido num país
distante, onde os noivados têm mais moles preguiças: lá se enamorara: comigo
chorava em suspiros líricos. E tão mística pena era que me disseram que o
triste, de dor e de desesperança, se deixara cair na água! Pobre rouxinol!
Ninguém tão amante, tão viúvo e tão casto!
“Eu queria proteger todos os que vivem.
E quando as raparigas do campo vinham para junto de mim chorar, eu erguia
sempre as minhas ramagens, como dedos, para apontar à pobre alma aflita de
lágrimas todos os caminhos do Céu!
”Nunca mais! Nunca mais, verde mocidade
distante!
“Enfim, eu tinha de entrar na vida da
realidade. Um dia, um daqueles homens metálicos que fazem o tráfico da
vegetação, veio arrancar-me à árvore. Não sabia eu o que me queriam.
Deitaram-me sobre um carro e, ao cair da noite, os bois começaram a caminhar, enquanto
ao lado um homem cantava no silêncio da noite. Eu ia ferido e desfalecido. Via
as estrelas com os seus olhares lancinantes e frios. Sentia-me separar da
grande floresta. Ouvia o rumor gemente, indefinido e arrastado das árvores.
Eram vozes amigas que me chamavam!
“Por cima de mim voavam aves imensas. Eu
sentia-me desfalecer, num torpor vegetal, como se estivesse sendo dissipado na
passividade das coisas. Adormeci. Ao amanhecer, íamos entrando numa cidade. As
janelas olhavam-me com olhos ensanguentados e cheios dum sol irado. Eu só
conhecia as cidades pelas histórias que delas contavam as andorinhas, nos
serões sonoros da espessura. Mas como ia deitado e amarrado com cordas, apenas
via os fumos e um ar opaco. Ouvia o rumor áspero e desafinado, onde havia
soluços, risos, bocejos, e mais o surdo roçar da lama, e o tinido sombrio dos
metais. Eu sentia enfim o cheiro mortal do homem! Fui arremessado para um pátio
infecto, onde não havia o azul e o ar. Comecei então a compreender que uma
grande imundície cobre a alma do homem, porque ele se esconde tanto das vistas
do Sol!
“Uns homens vieram, que me deram
desprezivelmente com os pés. Eu estava num estado de torpor e de materialidade,
que nem sentia as saudades da pátria vegetal. Ao outro dia, um homem veio para
mim e deu-me golpes de machado. Não senti mais nada. Quando voltei a mim, ia
outra vez amarrado no carro, e pela noite um homem aguilhoava os bois,
cantando. Senti lentamente renascer a consciência e a vitalidade. Parecia-me
que eu estava transformado numa outra vida orgânica. Não sentia a magnética
fermentação da seiva, a energia vital dos filamentos e a superfície viva das
cascas. Em redor do carro iam outros homens, a pé. Sob a brancura silenciosa e
compassiva da Lua, tive uma saudade infinita dos campos, do cheiro dos fenos,
das aves, de toda a grande alma vivificadora de Deus, que se move entre a
ramagem. Eu sentia que ia para uma vida real, de serviço e de trabalho. Mas
qual? Tinha ouvido falar das árvores, que vão ser lenha, aquecem e criam, e,
tomando entre a convivência do homem a nostalgia de Deus, lutam com os seus
braços de chamas para se desprender da terra: essas dissipam-se na augusta
transfiguração do fumo, vão ser nuvens, ter a intimidade das estrelas e do
azul, viver na serenidade branca e altiva dos imortais, e sentir os passos de
Deus!
“Eu tinha ouvido falar das que vão ser
vigas da casa do homem: essas, felizes e privilegiadas, sentem na penumbra
amorosa a doce força dos beijos e dos risos; são amadas, vestidas, lavadas;
encostam-se a elas os corpos dolorosos dos Cristos, são os pedestais da paixão
humana, têm a alegria imensa e orgulhosa dos que protegem; e risos das
crianças, ais namorados, confidências, suspiros, elegias da voz, tudo o que
lhes faz lembrar as murmurações da água, o estremecimento das folhas, as
cantigas dos ventos — toda essa graça escorre sobre elas, que já gozaram a luz
da matéria, como uma imensa e bondosa luz da alma.
“Eu tinha ouvido falar também das
árvores de bom destino, que vão ser mastro de navio, sentir o cheiro da maresia
e ouvir as legendas do temporal, viajar, lutar, viver, levadas pelas águas,
através do infinito, entre surpresas radiosas — como almas arrancadas do corpo
que fazem pela primeira vez a viagem do Céu!
“Que iria eu ser?… — Chegámos. Tive
então a visão real do meu destino. Eu ia ser forca!
“Fiquei inerte, dissolvida na aflição.
Ergueram-me. Deixaram-me só, tenebrosa, num campo. Tinha, enfim, entrado na
realidade pungente da vida. O meu destino era matar. Os homens, cujas mãos
andam sempre cheias de cadeias, de cordas e de pregos, tinham vindo aos
carvalhos austeros buscar um cúmplice! Eu ia ser a eterna companheira das
agonias. Presos a mim, iam balouçar-se os cadáveres, como outrora as verdes
ramagens orvalhadas!
“Eu ia dar esses negros frutos: os
mortos!
“O meu orvalho seria de sangue. Ia
escutar para sempre, eu a companheira dos pássaros, doces tenores errantes, as
agonias soluçantes, os gemidos de sufocação! As almas ao partir, rasgar-se-iam
nos meus pregos. Eu, a árvore do silêncio e do mistério religioso, eu, cheia de
augusta alegria orvalhada e dos salmos sonoros da vida, eu, que Deus conhecia
por boa consoladora, havia de mostrar-me às nuvens, ao vento, aos meus antigos
camaradas puros e justos, eu, a árvore viva dos montes, de intimidade com a
podridão, de camaradagem com o carrasco, sustentando alegremente um cadáver
pelo pescoço, para os corvos o esfarraparem!
“E isto ia ser! Fiquei hirta e
impassível como nas nossas florestas os lobos, quando se sentem morrer.
“Era a aflição. Eu via ao longe a cidade
coberta de névoa.
“Veio o sol. Em roda de mim começou a
juntar-se o povo. Depois, através dum desfalecimento, senti o ruído de músicas
tristes, o rumor pesado dos batalhões, e os cantos dolentes dos padres. Entre
dois círios, vinha um homem lívido. Então, confusamente, como nas aparências
inconscientes do sonho, senti um estremecimento, uma grande vibração eléctrica,
depois a melodia monstruosa e arrastada do canto católico dos mortos!
“Voltou-me a consciência.
“Estava só. O povo dispersava-se e
descia para os povoados. Ninguém! A voz dos padres descia lentamente, como a
última água duma maré. Era o fim da tarde. Vi. Vi livremente. Vi! Dependurado
de mim, hirto, esguio, com a cabeça caída e deslocada, estava o enforcado!
Arrepiei-me!
“Eu sentia o frio e a lenta ascensão da
podridão. Ia ficar ali, de noite, só, naquele descampado sinistro, tendo nos
braços aquele cadáver! Ninguém!
“O sol ia-se, o sol puro. Onde estava a
alma daquele cadáver? Tinha passado já? Tinha-se dissipado na luz, nos vapores,
nas vibrações? Eu sentia os passos tristes da noite, que vinha. O vento
empurrava o cadáver, a corda rangia.
“Eu tremia, numa febre vegetal,
dilacerante e silenciosa. Não podia ficar ali só. O vento levar-me-ia,
atirando-me, aos pedaços, para a antiga pátria das folhas. Não. O vento era
brando: quase somente a respiração da sombra! Tinha vindo então o tempo em que
a grande natureza, a natureza religiosa, era abandonada às feras humanas? Os
carvalhos já não eram, pois, uma alma? Podiam, com justiça, vir o machado e as
cordas buscar os ramos criados pela seiva, pela água e pelo sol, trabalho suado
da natureza, forma resplandecente da intenção de Deus, e levá-los para as
impiedades, para os tablados da forca onde apodrecem as almas, para os esquifes
onde apodrecem os corpos? E as ramagens puras, que foram testemunhas das
religiões, já não serviam senão para executar as penalidades humanas? Serviam
só para sustentar as cordas, onde os saltimbancos bailam, e os condenados se
torcem? Não podia ser.
“Pesava sobre a natureza uma fatalidade
infame. As almas dos mortos, que sabem o segredo e compreendem a vegetação,
achariam grotesco que as árvores, depois de terem sido colocadas por Deus na
floresta com os braços estendidos, para abençoar a terra e a água, fossem
arrastadas para as cidades, e obrigadas, pelo homem, a estender o braço da
forca para abençoar os carrascos!
“E depois de sustentarem os ramos de
verdura que são os fios misteriosos, mergulhados no azul, por onde Deus prende
a terra —fossem sustentar as cordas da forca, que são as fitas infames, por
onde o homem se prende à podridão! Não! se as raízes dos ciprestes contassem
isto em casa dos mortos — faziam estalar de riso a sepultura!
“Assim falava eu na solidão. A noite
vinha lenta e fatal. O cadáver balouçava-se ao vento. Comecei a sentir
palpitações de asas. Voavam sombras por cima de mim. Eram os corvos. Pousaram.
Eu sentia o roçar das suas penas imundas; afiavam os bicos no meu corpo;
penduravam-se, ruidosos, cravando-me as garras.
“Um pousou no cadáver e pôs-se a
roer-lhe a face! Solucei dentro de mim. Pedi a Deus que me apodrecesse
subitamente. Era uma árvore das florestas a quem os ventos falavam! Servia
agora para afiar os bicos dos corvos, e para que os homens dependurassem de mim
os cadáveres, como vestidos velhos de carne, esfarrapados! Oh! meu Deus! —
soluçava eu ainda — eu não quero ser relíquia de tortura: eu alimentava, não quero
aniquilar: era a amiga do semeador, não quero ser a aliada do coveiro! Eu não
posso e não sei ser a Justiça. A vegetação tem uma augusta ignorância: a
ignorância do sol, do orvalho e dos astros. Os bons, os angélicos, os maus são
os mesmos corpos invioláveis, para a grande natureza sublime e compassiva. Ó
meu Deus, liberta-me deste mal humano tão aguçado e tão grande, que se
traspassa a si, atravessa de lado a lado a natureza, e ainda te vai ferir, a
ti, no Céu! Oh! Deus, o céu azul, todas as manhãs, me dava os orvalhos, o calor
fecundo, a beleza imaterial e fluida da brancura, a transfiguração pela luz,
toda a bondade, toda a graça, toda a saúde: — não queiras que, em compensação,
eu lhe mostre, amanhã, ao seu primeiro olhar, este cadáver esfarrapado!
“Mas Deus dormia, entre os seus paraísos
de luz. Vivi três anos nestas angústias.
“Enforquei um homem — um pensador, um
político, filho do Bem e da Verdade, alma formosa cheia das formas do ideal,
combatente da Luz. Foi vencido, foi enforcado.
“Enforquei um homem que tinha amado uma
mulher e tinha fugido com ela. O seu crime era o amor, que Platão chama
mistério, e Jesus chamou lei. O código puniu a fatalidade magnética da atracção
das almas, e corrigiu Deus com a forca!
“Enforquei também um ladrão. Este homem
era também operário. Tinha mulher, filhos, irmãos e mãe. No Inverno não teve
trabalho, nem lume, nem pão. Tomado dum desespero nervoso, roubou. Foi
enforcado ao Sol-posto. Os corvos não vieram. O corpo foi para a terra limpo,
puro e são. Era um pobre corpo que tinha sucumbido por eu o apertar de mais,
como a alma tinha sucumbido por Deus a alargar e a encher.
“Enforquei vinte. Os corvos
conheciam-me. A natureza via a minha dor íntima; não me desprezou; o Sol
alumiava-me com glorificação, as nuvens vinham arrastar por mim a sua mole
nudez, o vento falava-me e contava a vida da floresta, que eu tinha deixado, a
vegetação saudava-me com meigas inclinações da folhagem: Deus mandava-me o
orvalho, frescura que prometia o perdão natural.
“Envelheci. Vieram as rugas escuras. A
grande vegetação, que me sentia esfriar, mandou-me os seus vestidos de hera. Os
corvos não voltaram: não voltaram os carrascos. Sentia em mim a antiga
serenidade da natureza divina. As eflorescências, que tinham fugido de mim,
deixando-me só no solo áspero, começaram a voltar, a nascer, em roda de mim,
como amigas verdes e esperançosas. A natureza parecia consolar-me. Eu sentia
chegar a podridão. Um dia de névoas e de ventos, deixei-me cair tristemente no
chão, entre a relva e a humidade, e pus-me silenciosamente a morrer.
“Os musgos e as relvas cobriam-me, e eu
comecei a sentir-me dissolver na matéria enorme, com uma doçura inefável.
“O corpo esfria-me: eu tenho a
consciência da minha transformação lenta de podridão em terra. Vou, vou. Ó
terra, adeus! Eu derramo-me já pelas raízes. Os átomos fogem para toda a vasta
natureza, para a luz, para a verdura. Mal ouço o rumor humano. Ó antiga Cíbele,
eu vou escorrer na circulação material do teu corpo! Vejo ainda indistintamente
a aparência humana, como uma confusão de ideias, de desejos, de desalentos,
entre os quais passam, diafanamente, bailando, cadáveres! Mal te vejo, ó mal
humano! No meio da vasta felicidade difusa do azul, tu és, apenas, como um fio
de sangue! As eflorescências, como vidas esfomeadas, começam a pastar-me! Não é
verdade que ainda lá em baixo, no poente, os abutres fazem o inventário do
corpo humano? ó matéria, absorve-me! Adeus! para nunca mais, terra infame e
augusta! Eu vejo já os astros correrem como lágrimas pela face do céu. Quem
chora assim? Eu sinto-me desfeita na vida formidável da terra! ó mundo escuro,
de lama e de ouro, que és um astro no infinito — adeus! adeus! — deixo-te
herdeiro da minha corda podre!”
Fonte: http://contobrasileiro.com.br/?p=159#more-159.
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