A crônica que reproduzimos abaixo foi
escrita por Rachel de Queiroz.
Para saber mais sobre essa escritora,
favor acessar: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=261&sid=115.
Boa leitura!
AGORA QUERO FALAR DE FLORES
Flor tem moda como roupa de mulher. E as plantas do tempo antigo, flores, folhagens e ervas de cheiro, ninguém as cultiva mais. Agora são só aqueles estúpidos fícus italianos que parecem feitos de plástico, os antúrios e até tulipas.
Hoje em dia, principalmente nas cidades grandes, acabaram-se os manjericões.
E as manjeronas, e as alfavacas e de modo geral todas as ervas cheirosas.
Quem é que ainda planta alecrim? Quem é que ainda conhece malva-rosa?
Rosas, já cultivei rosas quando morava
na Ilha do Governador, e era um problema obter mudas das velhas rosas
tradicionais dos jardins brasileiros.
Rosas Paul-Neron que o povo chama de Palmeirão, Rosa Amélia com seu tom de
rosa-claro, verdadeiro cor-de-rosa. Rosas de cacho com que as moças gostavam de
enfeitar os cabelos. Rosas mariquinhas, que em linguagem de catálogo, se chamam
com um nome horrível - floribundas - e que hoje só aparecem nas suas variedades
mais complicadas. Rosas príncipe-negro, como se feitas de veludo sombrio.
E depois das rosas vem o capítulo dos
cravos. Agora só conhecemos esses inexpressivos cravos de plantação industrial,
enormes, uniformes - e sem perfume. Nos tempos de dantes, no interior, toda
moça tinha à janela do seu quarto um jarro de barro com um craveiro. Cravos
brancos, apertados, de coração rosado, que eram prenúncio de casamento. De
cheiro tão forte que, aspirados com força, entonteciam. Cravos vermelhos, de
dar aos namorados, em sinal de amor sem fim. Cravos que se guardavam secos
dentro do livro de reza, como recordação. E além dos cravos havia as cravinas,
singelas, dobradas, lisas e rajadas. E ainda havia, tão importante quando o dos
cravos, o capítulo dos jasmins. Jasmim-estrela, que podia ser grande e pequeno,
de pétalas tão leves e vulneráveis, que a flor parece feita só de perfume.
Jasmim-do-céu, jasmim-laranja; deste tenho um pé junto ao alpendre do Não Me
Deixes, que me embalsama o terreiro quando está em flor e se cobre de
miniaturas douradas de laranjas, ao acabar da floração.
Jasmim-do-imperador, jasmim-de-são-josé, jasmim-caiano, jasmim-do-cabo, a glória dos velhos jardins, que se chama também gardênia.
E resedá? Meu Deus, que estranha anomalia da sensibilidade fez com que se abandonasse o resedá? E bogari? Ai, de bogari já nem falo que me dói o coração.
Jasmim-do-imperador, jasmim-de-são-josé, jasmim-caiano, jasmim-do-cabo, a glória dos velhos jardins, que se chama também gardênia.
E resedá? Meu Deus, que estranha anomalia da sensibilidade fez com que se abandonasse o resedá? E bogari? Ai, de bogari já nem falo que me dói o coração.
Miosótis, flor da inocência, ninguém vê mais também. E amores-perfeitos são
dificílimos; ah, os amores-perfeitos de Guaramiranga, que minha prima Elsa
acondicionava em caixinhas forradas de bambu japonês com os talos envoltos em
algodão úmido, e eram o mais precioso dos presentes. E as angélicas, que nos
livros se chamam tuberosas, e são as flores de espantar vampiro. Devo ter
qualquer pingo de sangue de vampiro, porque sempre detestei angélicas.
Desapareceram as sebes e os caramanchões
de madressilvas - madressilvas que cheiram a abelhas e a mel. E, falando em
caramanchões, sumiram-se também os estefanotes e as simpatias com seus maciços
vermelhos, e uma trepadeira de cachos brancos e arroxeados, que andou muito em
moda em meados do século passado (imagine, século 20 já está no rol dos séculos
passados!) e ganhou o nome de Coelho Netto.
Todas essas flores para mim são saudades
da infância, pois ambas as minhas avós eram jardineiras empedernidas, que
jamais fizeram uma viagem sem uma bagagem subsidiária de embrulhinhos com
galhos de mudas, batatas, bulbos, sementes - e até mesmo vasos com plantas,
aparentemente preciosíssimas, pois era mister carregá-las no colo, durante os
percursos de trem.
No Brasil, nós ainda não chegamos a esse
eterno retorno ao passado. Há os jardineiros sofisticados das casas ricas com
os arranjos pedantes de plantas de importação recente, e há o comércio de
flores, que se reduz aos produtos de fácil cultivo, de boa resistência e venda
fácil. Comércio de que é expoente típico o horrendo agapanto, a flor mais feia
e triste do mundo, com a qual se insultam os mortos no Dia de Finados,
cobrindo-lhes os túmulos com suas umbelas sinistras. Eu, defunta, chegarei às
piores represálias, puxarei pelo pé, arrastarei correntões, aparecerei de
mortalha fosforescente, soltarei gargalhadas macabras, assombrarei de todas as
maneiras o herdeiro mal-agradecido que me puser agapantos na cova. Perdôo tudo,
até anulação de testamento e enterro de terceira classe; mas agapanto não.
Jornal: O Estado de São Paulo (São Paulo
-SP) em 16/11/2002
Linda crônica! Lembrei de tantas flores que apreciava quando criança, e agora são difíceis de se ver. Realmente, flores são como roupas, um dia estão na moda, no outro ninguém mais as vê!
ResponderExcluirBem interessante essa crônica! Mas ainda existem muitas plantações de todas as espécies!
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