O
texto abaixo é da autoria de Graciliano Ramos.
Para
maiores informações sobre o autor, favor acessar: http://www.releituras.com/graciramos_bio.asp.
Boa
leitura!
A
ÚLTIMA NOITE DE NATAL
Os
grandes olhos claros e aguados boiavam na sombra nevoenta, cheios de espanto.
Esfregou-os, arrastou-se pesado e entanguido, mal seguro à bengala, sentou-se
num banco do jardim, fatigado, suspirando, examinou a custo os arredores.
Gastou uns minutos passeando as mãos desajeitadas na gola do casaco. O
exercício penoso enfureceu-o. Resmungou palavras enérgicas e incompreensíveis,
esforçou-se por dominar a tremura. Com certeza era por causa do frio que os
dedos caprichosos divagavam no pano esgarçado e os queixos banguelos se moviam
continuamente. Era por causa do frio, sem dúvida. Se conseguisse abotoar o
casaco e levantar a gola, os movimentos incômodos cessariam.
Em
que estava pensando ao chegar ali? Ia jurar que pensava em coisas agradáveis.
Ou seriam desagradáveis? Pedaços de recordações incoerentes dançavam-lhe no
espírito, acendiam-se, apagavam-se, como vaga-lumes, confundiam-se com os
letreiros verdes, vermelhos, que se acendiam e apagavam também quase invisíveis
na poeira nebulosa. Tentou reunir as letras, fixar a atenção nas mais próximas,
brilhantes, enormes.
A
igreja toda aberta resplandecia. O incenso formava uma neblina perturbadora. E,
através dela, os altares refugiam como sóis, a luz das velas numerosas chispava
nas auréolas dos santos.
Que
doidice! Não é que estava imaginando ver ali, nas transitórias claridades, a
igreja vista sessenta anos antes? Tresvariava. Sacudiu a cabeça, afastou a
lembrança importuna. De que servia desenterrar casos antigos, alegrias e
sofrimentos incompletos?
O
que devia fazer... Pôs-se a mexer os beiços, procurando nas trevas úmidas e
leitosas que o envolviam o resto da frase. O que devia fazer... Repetiu isto
muitas vezes, numa cantilena, distraiu-se olhando a chuva amarela, verde,
vermelha, dos repuxos. Impossível distinguir as cores. Ultimamente a cidade ia
escurecendo. As pessoas que transitavam junto aos canteiros sem flores eram
vultos indecisos; os prédios se diluíam nas ramagens das árvores, manchas
negras; os letreiros vacilantes não tinham sentido.
O
que devia fazer... De repente a ideia rebelde surgiu. Bem. Devia meter os
botões nas casas e agasalhar o pescoço. Depois cruzaria os braços, aqueceria as
mãos debaixo dos sovacos, ficaria imóvel e tranquilo. Mas os dedos finos e
engelhados avançavam, recuavam, não havia meio de governá-los. Se pudesse
riscar um fósforo, chegá-lo a um cigarro, esqueceria os inconvenientes que o
aperreavam: o frio, a dureza das juntas, o tremor, a zoeira constante, sussurro
de maribondos assanhados. Dores errantes andavam-lhe no corpo, entravam nos
ossos e vinham à pele, arrepiavam os cabelos, fixavam-se nas pernas,
esmoreciam.
Agora
não estava no banco do jardim, perto das estátuas, das árvores, do coreto, dos
esguichos coloridos. Estava longe, a sessenta anos de distância, ajoelhado na
grama, diante da igreja da vila. Os rostos embotados, que se dissociavam,
juntaram-se no largo onde um padre velho dizia a missa da meia-noite.
Fervilhavam matutos em redor das barracas, num barulho de feira, e uma sineta
badalava impondo em vão respeito e silêncio. Os cavalinhos rodavam.
Esgueiravam-se casais pelos cantos. O padre velho dirigia olhares fulminantes
àquela cambada de hereges. Uma figura pequenina cantava os hinos ingênuos, de
versos curtos, fáceis. Tudo parecera de chofre muito sério, eterno. Os hinos
capengas elevavam-se, estiravam-se. A mulher tinha um rosto de santa e exigia
adoração. Sessenta anos. As fachadas enfeitavam-se com lanternas de papel,
janelas escancaradas exibiam presépios, listas de foguetes cortavam o céu
negro. A sineta badalava, zangada. E o burburinho da multidão não diminuía.
Sessenta
anos. Da cinza que ocultava os olhos frios saltou uma faísca; os alfinetes
pregados na carne trêmula embotaram-se; o espinhaço curvo endireitou-se; um
débil sorriso franziu os beiços murchos; os braços ergueram-se lentos, buscando
a imagem de sonho.
Imagem
de sonho, que doidice! Era apenas uma bonita criatura de bom coração. Ligara-se
a ela. E dezenas de vezes tinham-se os dois ajoelhado ali na grama, olhando as
lanternas, os presépios, os foguetes, o padre que dizia a missa da meia-noite.
Algumas esperanças, muitos desgostos. Os meninos cresciam, engordavam. E no
jardim da casa miúda um jasmineiro recendia.
Depois
tudo fora decaindo, minguando, morrendo. Achara-se novamente só. Os filhos e os
netos se haviam espalhado pelo mundo. Agora... Que extensa caminhada, que
enormes ladeiras, pai do céu! Já nem se lembrava dos lugares percorridos.
Conseguiu
abotoar o casaco e levantar a gola.
Andar
tanto e afinal chegar ali, arriar num banco, não perceber as letras que se
acendiam e apagavam.
Certamente
àquela hora, diante duma igreja aberta, outro homem novo admirava outra
pessoinha ajoelhada, sentia desejos imensos, formava planos absurdos. Os
desejos e os planos iam desfazer-se como a fumaça luminosa dos repuxos.
(20
de dezembro de 1941).
Texto
extraído do livro “Linhas Tortas”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1983, pág.
222.