O conto que reproduzimos abaixo é de
autoria de Monteiro Lobato.
Para maiores informações sobre o autor,
favor consultar: http://www.e-biografias.net/monteiro_lobato/.
Boa leitura!
O SACI
A rotação da terra produz a noite; a
noite produz o medo; o medo gera o sobrenatural: – divindades e demônios têm a
origem comum da treva.
Quando o sol raia, desdemoniza-se a
natureza. Cessa o Sabá. Satã afunda no Inferno, seguido da alcatéia inteira dos
diabos menores.
A bruxa reveste a forma humana. O
lobisomem perde a natureza dupla. Os fantasmas diluem-se em névoa. Evaporam-se
os duendes. Os gnomos subterrâneos mergulham no escuro das tocas. A caipora
deixa em paz o viajante. As mulas sem cabeça reincabeçam-se e vão pastar
mansamente. As almas penadas trancam-se nas tumbas. Os sacis param de assobiar
e, cansados duma noite inteira de molecagens, escondem-se nos socavões das
grotas, no fundo dos poços, em qualquer couto onde não penetre a luz, sua
mortal inimiga. Filhos da sombra, ela os arrasta consigo mal o Sol anuncia,
pela boca da Aurora, o grande espetáculo em que a Luz e sua filha a Côr
esplendem numa fulgurante apoteose.
A treva, batida de todos os lados,
refoge para os antros onde moram a coruja e o morcego. E nessas nesgas de
escuro apinha-se a fauna inteira dos pesadelos, tal qual as rãs e os peixinhos
aprisionados nas poças sem esgoto, quando após as grandes enchentes as águas
descem. E como nas poças verdinhentas a atraíra permanece imóvel e a rã muda,
assim toda a legião dos diabos se apaga. Inutilmente tentaríamos surpreender
unzinho sequer.
O saci, por exemplo.
Abundante à noite como o morcego, nunca
se deixou pilhar de dia. Metido nas tocas de tatú, ou nos ocos das árvores
velhas, ou alapado à beira-rio em solapões de pedra limosa com retrança de
samambaias à entrada, o moleque de carapuça vermelha sabe como ninguém o
segredo de invizibilizar-se. Não colhesse ele, todos os anos, nas noites de São
João, a misteriosa flor da samambaia!…
Mal, porém, o sol afrouxa no horizonte e
a morcegada faminta principia a riscar de vôos estrouvinhados o ar cada vez
mais escuro da noitinha, a “saparia” pula dos esconderijos, assobia o silvo de
guerra – Saci-pererê! – e cai a fundo nas molecagens costumadas.
As primeiras vítimas são os cavalos. O
saci corre aos pastos, laça com um cipó o animal escolhido – e nunca errou
laçada! – trança-lhe a crina para armar com ela um estribo e dum salto monta-o
à sua moda. O cavalo toma-se de pânico, e deita a corcovear pelo campo afora
enquanto o perneta lhe finca os dentes numa veia do pescoço e chupa
gostosamente o sangue. Pela manhã o pobre animal aparece varado, murcho dos
vazios, cabeça pendida e suado como se o afrouxasse uma caminheira de dez léguas
beiçais.
O sertanejo premune-o contra esses
malefícios pendurando-lhe ao pescoço um rosário de capim ou um bentinho. É água
na fervura.
Farto, ou impossibilitado daquela
equitação vanpírica, o saci procura o homem para atenazá-lo.
Se encontra na estrada algum viajante
tresnoitado, ai dele! Desfere-lhe de improviso um assobio ao a ouvido
escarrancha-se-lhe à garupa – e é uma tragédia inteira o resto da jornada. Não
raro o mísero perde os estribos e cai sem sentidos à beira do barranco.
Outras vezes diverte-se o saci a
pregar-lhe peças menores: desafivela um lóro, desmancha o freio, escorrega o
pelego, derruba-lhe o chapéu e faz mil outras picuinhas brejeiras.
O saci tem horror à água. Um depoente no
inquérito demonológico do “Estadinho” narra o seguinte caso típico. Havia um
caboclo morador numa ilha fluvial onde nunca entrara saci, porque as águas
circunvolventes defendiam a feliz mansão. Certa vez, porém, o caboclo foi ao
“continente” de canoa, como de hábito, e lá se demorou até à noite. De volta
notou que a canoa vinha pesadíssima e foi com enormes dificuldades que
conseguiu alcançar o abicadouro da margem oposta. Estava a ‘maginar no estranho
caso – um travessio que fora fácil de dia e virara osso de noite – quando, ao
firmar o varejão em terra firme, viu saltar da embarcação um saci às
gargalhadas. O malvado aproveitara o incidente do travessio a deshoras para
localizar-se na ilha, onde, desde então, nunca mais houve sossego entre os
animais nem paz entre os homens.
Nos casebres da roça há sempre uma pequena
cruz pendurada às portas. É o meio de livrar a vivenda do hospede não
convidado. Mesmo assim ele ronda a moradia, arma peças a quem se aventura a
sair para o terreiro, espalha a farinha dos monjolos, remexe o ninho das
poedeiras, gora os ovos, judia das aves.
Se a casa não é defendida, é lá dentro
que ele opera. Estraga objetos, esconde a massa do pão posta a crescer,
esparrama a cinza dos fogões apagados em cata de algum pinhão ou batata
esquecidos. Se encontra brasas, malabariza com elas e ri-se perdidamente quando
consegue passar uma pelo furo das mãos. Porque, além do mais, tem as mãos
furadas, o raio do moleque…
As porteiras, como as casas, são
vacinadas contra o saci. Rara é a que não traz uma cruz escavada no macarrão.
Sem isto o saci divertir-se-ia fazendo-a ringir toda a noite ou abrindo-a
inopinadamente diante do transeunte que a defronta, com grande escândalo e
pavor deste, pois adivinharia logo o autor da amabilidade e o repeliria com
esconjuros.
Os cães apavoram-se quando percebem um
saci no terreiro, e uivam retransidos.
Refere um depoente o caso da Dona
Evarista. Morava esta excelente senhora numa casinha de barro, já velha e
buraquenta, em lugar bastante infestado. Certa noite ouviu a cachorrada
prorromper em uivos lamentosos. Assustada, pulou da cama, enfiou a saia e,
tonta de sono, foi à cozinha, cuja porta abria para o quintal. E lá estarreceu
de assombro: um saci arreganhado erguia-se de pé na soleira da porta,
dizendo-lhe com diabólica pacholice: Boa noite, dona Evarista! A veha perdeu a
fala e desabou na terra-batida, só voltando a si pela manhã. Desde então nunca
mais lhe saiu das ventas um certo cheirinho a enxofre…
Se fossem só essas aparições…
Mas o saci inventa mil coisas para
azoinar a humanidade. Furta o piruá da pipóca deixado na peneira, entorna
vasilhas d’água, enreda a linha dos novelos, desfaz os crochês, esconde os
roletes de fumo.
Quando um objeto desaparece, dedal ou
tesourinha, é inútil campeá-lo pela casa inteira. Para reavê-lo basta dar três
nós numa palha colhida num rodamoinho e pô-la sob o pé da mesa. O saci,
amarrado e imprensado, visibilizará incontinente o objeto em questão para que o
libertem do suplício.
Rodamoinho… A ciência explica este
fenômeno mecanicamente, pelo choque de ventos contrários e não sei mais que.
Lérias! É o saci que os arma. Dá-lhe, em dias ventosos, a veneta de turbilhonar
sobre si próprio como um pião. Brincadeira pura. A deslocação do ar produzida
pelo giroscópio de uma perna só é que faz o remoinho, onde a poeira, as folhas
secas e as palhinhas dançam em torno dele um corrupio infrene. Há mais coisa no
céu e na terra do que sonha a tua ciência, Ganot!
Nessas ocasiões é fácil apanhá-lo. Um
rosário de capim, bem manejado, laça-o infalivelmente. Também há o processo da
peneira: é lançá-la, emborcada, sobre o núcleo central do rodamoinho. Exige-se,
porém, que a peneira tenha cruzeta…
A figuração do saci sofre muitas
variantes. Cada qual o vê a seu modo. Existem, todavia, traços comuns em
relação aos quais as opiniões são unânimes: uma perna só, olhos de fogo,
carapuça vermelha, ar brejeiro, andar pinoteante, cheiro a enxofre, aspecto de
meninote. Uns têm-no visto de camisola de baeta, outros de calção curto; a
maioria o vê nu.
Quanto ao caráter, há concordância em
lhe atribuir um espírito mais inclinado à brejeirice do que à malvadez. Vem daí
o misto de medo e simpatia que os meninos peraltas revelam pelo saci. É um
deles – mais forte, mais travesso, mais diabólico; mas é sempre um deles o
moleque endemoniado capaz de diabruras como as sonha a “saparia”.
A curiosidade despertada pelo inquérito
do “Estadinho” denota como está generalizada entre nós a crendice. Raro é o
brasileiro que não traz na memória a recordação da quadra saudosa em que “via
sacis” e os tinha sempre presentes na imaginação exaltada. Convidados agora
para falar sobre o duendezinho, todos impregnam seus depoimentos da nota
pessoal das coisas vividas na infância. Referem-se a ele como a um velho
conhecido que a vida, a idade e o discernimento fizeram perder de vista, mas
não esquecer…
E – dubitativos uns, cépticos outros,
afirmativos muitos – a conclusão de todos é a mesma: o Saci existe!…
- Como o Putois, de Anatole France?
Que importa? Existe. Deus e o Diabo
ensinaram-lhe essa maneira subjetiva de existir…
Amei ler! Muito bom!
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