O
conto que reproduzimos abaixo é da autoria de Artur Azevedo.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=259&sid=281.
Boa
leitura!
A FILHA DO PATRÃO
A Arthur de Mendonça
I
O
Comendador Ferreira esteve quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo pela
escada abaixo com um pontapé bem aplicado. Pois não! um biltre, um farroupilha,
um pobre diabo sem eira nem beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe
a menina em casamento! Era o que faltava! que ele tivesse durante tantos anos a
ajuntar dinheiro para encher os bolsos a um valdevinos daquela espécie, dando-lhe
a filha ainda por cima, a filha, que
era
a rapariga mais bonita e mais bem educada de toda a rua de S. Clemente! Boas!
O
Comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um “Não,
meu caro senhor”, capaz de desanimar o namorado mais decidido ao emprego de
todas as astúcias do coração.
O
pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxão de
orelhas e o pontapé, que felizmente não passaram de tímido projeto.
Na
rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões:
-
Pois há de ser minha, custe o que custar! - Voltou-se, e viu numa janela
Adosinda, a filha do Comendador, que desesperadamente lhe fazia com
a
cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do polegar, que
muito claramente queria dizer:
-
Babau! - e, como eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no
Derby-Club. Era domingo e havia corridas.
O
Comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e
surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela não apanhou
o puxão de orelhas destinado ao moço, seria faltar à verdade que devo aos
pacientes leitores, apanhou-a, coitadinha e naturalmente, a julgar pelo grito
estrídulo que deu, exagerou a dor física produzida por aquela grosseira
manifestação de cólera paterna.
Seguiu-se
um diálogo terrível:
-
Quem é aquele pelintra?
-
Chama-se Borges.
-
De onde o conhece você?
-
Do Clube Guanabarense... daquela noite em que papai me levou...
-
Ele em que se emprega? que faz ele?...
-
Faz versos.
-
E você não tem vergonha de gostar de um homem que faz versos?
-
Não tenho culpa; culpado é o meu coração.
-
Este vagabundo algum dia lhe escreveu?
-
Escreveu-me uma carta.
-
Quem lha trouxe?
-
Ninguém. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela.
-
Que lhe dizia ele nesta carta?
-
Nada que me ofendesse; queria a minha autorização para pedir-me em casamento.
-
Onde está ela?
-
Ela quem?
-
A carta.
Adosinda,
sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O Comendador abriu-a, leu-a, e
guardou-a no bolso.
Depois
continuou:
-
Você respondeu a isso?
A
moça gaguejou.
-
Não minta!
-
Respondi, sim senhor.
-
Em que termos?
-
Respondi que sim, que me pedisse.
-
Pois olhe: proíbo-lhe, percebe? pro-í-bo-lhe que de hoje em diante dê trela a
esse peralvilho! Se me constar que ele anda a rondar-me a casa, ou que se
corresponde com você, mando desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o
cozinheiro do Comendador Ferreira), e a você, minha sirigaita... a você... Não
lhe diga nada!...
II
Três
dias depois desse diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia do seu Borges, e
o rapto foi auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um
dinheiro ganho nas corridas do Derby. Até hoje ignora o Comendador que o seu
fiel cozinheiro contribuísse para tão lastimoso incidente.
O
pai ficou possesso, mão não fez escândalo, não foi à polícia, não disse nada
nem mesmo aos amigos íntimos; não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer
o seu profundo desgosto.
E
teve razão, porque, passados quatro dias, Adosinda e o Borges, vinham, à noite,
ajoelhar-se aos seus pés e pedir-lhe a benção, como nos dramalhões
sentimentais.
III
Para
que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o Comendador
Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de
tempo; mas infelizmente as coisas não se passaram assim, e a moral, como vão
ver, foi sacrificada ao egoísmo.
Com
a resolução de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o
Comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha,
vociferando:
-
Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça
saltar os miolos!...
A
esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor à
pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis.
O
pai foi fechar a porta, guardou o revólver, e, aproximando-se de Adosinda, que,
encostada ao piano, tremia, como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um
carinho que nunca manifestara em ocasiões menos inoportunas.
A
moça estava assombrada; esperava pelo menos a maldição paterna; era, desde
pequenina, órfã de mãe, e habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e
aquele abraço encheram-na de confusão e pasmo.
O
Comendador foi o primeiro a falar:
-
Vês? disse ele, apontando para a porta: vês? O homem por quem abandonaste teu
pai é um covarde, um miserável, que foge diante de um cano de um revólver! Não
é um homem!...
-
Isso ele é, murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas
lhe desfaziam a palidez do rosto.
O
pai sentou-se no sofá, chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos
seus joelhos, e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que esquecesse do
homem que a raptara, um trocatintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada
mais; pintou-lhe um futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai que a
desprezaria se semelhante casamento se realizasse, desse pai que tinha
exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhosos dos pais.
No
fim da catequese, a moça parecia convencida de que nos braços de Borges não
encontraria realmente toda a felicidade possível; mas...
-
Mas agora... é tarde, balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas
de ainda há pouco.
-
Não; não é tarde, disse o Comendador; conheces o Manoel, o meu primeiro
caixeiro do armazém?
-
Conheço: é um enjoado.
-
Qual, enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um homem de conta, peso
e medida! Não descobriu a pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um
tino para o negócio, uma perspicácia que o levará longe, hás de ver!
E
durante um quarto de hora o Comendador Ferreira gabou as excelências do seu
caixeiro Manoel.
Adosinda
ficou convencida.
A
conferência terminou por estas palavras:
-
Falo-lhe?
-
Fale, papai.
IV
No
dia seguinte o Comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:
-
Seu Manoel, estou muito contente com os seus serviços.
-
Oh! patrão!
-
Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.
-
Oh! patrão!
-
Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado na minha casa:
dou-lhe cinco por cento além do ordenado.
-
Oh! patrão! isso não faz um pai ao filho!...
-
Ainda não é tudo. Quero que você se case com a minha filha. Doto-a com
cinqüenta contos.
O
pobre diabo sentiu-se engasgado pela comoção: não pode articular uma palavra.
-
Mas eu sou um homem sério, continuou o patrão; a minha lealdade obriga-me a
confessar-lhe que minha filha... não é virgem.
O
noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras,
ajustou os lábios em bico, e, respondeu com um sorriso resignado e humilde:
-
Oh! patrão! ainda mesmo que fosse, não fazia mal.
Fonte:
http://www.cyvjosealencar.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/26/700/16/arquivos/File/Livros/Artur%20Azevedo/Contos%20Fora%20de%20Moda.pdf.
Gostei desse conto, mas no final fiquei com pena de Adosina e de Manoel, e o casamento arranjado! Muito gostoso de ler!
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