quinta-feira, 30 de maio de 2013

SESSÃO LEITURA - A FILHA DO PATRÃO - ARTUR AZEVEDO

O conto que reproduzimos abaixo é da autoria de Artur Azevedo.
Para maiores informações sobre o autor, favor consultar: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=259&sid=281.
Boa leitura!

A FILHA DO PATRÃO

A Arthur de Mendonça

I

O Comendador Ferreira esteve quase a agarrá-lo pelas orelhas e atirá-lo pela escada abaixo com um pontapé bem aplicado. Pois não! um biltre, um farroupilha, um pobre diabo sem eira nem beira, nem ramo de figueira, atrever-se a pedir-lhe a menina em casamento! Era o que faltava! que ele tivesse durante tantos anos a ajuntar dinheiro para encher os bolsos a um valdevinos daquela espécie, dando-lhe a filha ainda por cima, a filha, que
era a rapariga mais bonita e mais bem educada de toda a rua de S. Clemente! Boas!
O Comendador Ferreira limitou-se a dar-lhe uma resposta seca e decisiva, um “Não, meu caro senhor”, capaz de desanimar o namorado mais decidido ao emprego de todas as astúcias do coração.
O pobre rapaz saiu atordoado, como se realmente houvesse apanhado o puxão de orelhas e o pontapé, que felizmente não passaram de tímido projeto.
Na rua, sentindo-se ao ar livre, cobrou ânimo e disse aos seus botões:
- Pois há de ser minha, custe o que custar! - Voltou-se, e viu numa janela Adosinda, a filha do Comendador, que desesperadamente lhe fazia com
a cabeça sinais interrogativos. Ele estalou nos dentes a unha do polegar, que muito claramente queria dizer:
- Babau! - e, como eram apenas onze horas, foi dali direitinho espairecer no Derby-Club. Era domingo e havia corridas.
O Comendador Ferreira, mal o rapaz desceu a escada, foi para o quarto da filha, e surpreendeu-a a fazer os tais sinais interrogativos. Dizer que ela não apanhou o puxão de orelhas destinado ao moço, seria faltar à verdade que devo aos pacientes leitores, apanhou-a, coitadinha e naturalmente, a julgar pelo grito estrídulo que deu, exagerou a dor física produzida por aquela grosseira manifestação de cólera paterna.
Seguiu-se um diálogo terrível:
- Quem é aquele pelintra?
- Chama-se Borges.
- De onde o conhece você?
- Do Clube Guanabarense... daquela noite em que papai me levou...
- Ele em que se emprega? que faz ele?...
- Faz versos.
- E você não tem vergonha de gostar de um homem que faz versos?
- Não tenho culpa; culpado é o meu coração.
- Este vagabundo algum dia lhe escreveu?
- Escreveu-me uma carta.
- Quem lha trouxe?
- Ninguém. Ele mesmo atirou-a com uma pedra, por esta janela.
- Que lhe dizia ele nesta carta?
- Nada que me ofendesse; queria a minha autorização para pedir-me em casamento.
- Onde está ela?
- Ela quem?
- A carta.
Adosinda, sem dizer uma palavra, tirou a carta do seio. O Comendador abriu-a, leu-a, e guardou-a no bolso.
Depois continuou:
- Você respondeu a isso?
A moça gaguejou.
- Não minta!
- Respondi, sim senhor.
- Em que termos?
- Respondi que sim, que me pedisse.
- Pois olhe: proíbo-lhe, percebe? pro-í-bo-lhe que de hoje em diante dê trela a esse peralvilho! Se me constar que ele anda a rondar-me a casa, ou que se corresponde com você, mando desancar-lhe os ossos pelo Benvindo (Benvindo era o cozinheiro do Comendador Ferreira), e a você, minha sirigaita... a você... Não lhe diga nada!...

II

Três dias depois desse diálogo, Adosinda fugiu de casa em companhia do seu Borges, e o rapto foi auxiliado pelo próprio Benvindo, com quem o namorado dividiu um dinheiro ganho nas corridas do Derby. Até hoje ignora o Comendador que o seu fiel cozinheiro contribuísse para tão lastimoso incidente.
O pai ficou possesso, mão não fez escândalo, não foi à polícia, não disse nada nem mesmo aos amigos íntimos; não se queixou, não desabafou, não deixou transparecer o seu profundo desgosto.
E teve razão, porque, passados quatro dias, Adosinda e o Borges, vinham, à noite, ajoelhar-se aos seus pés e pedir-lhe a benção, como nos dramalhões sentimentais.

III

Para que o conto acabasse a contento da maioria dos meus leitores, o Comendador Ferreira deveria perdoar aos dois namorados, e tratar de casá-los sem perda de tempo; mas infelizmente as coisas não se passaram assim, e a moral, como vão ver, foi sacrificada ao egoísmo.
Com a resolução de quem longamente se preparara para o que desse e viesse, o Comendador tirou do bolso um revólver e apontou-o contra o raptor de sua filha, vociferando:
- Seu biltre, ponha-se imediatamente no olho da rua, se não quer que lhe faça saltar os miolos!...
A esse argumento intempestivo e concludente, o namorado, que tinha muito amor à pele, fugiu como se o arrebatassem asas invisíveis.
O pai foi fechar a porta, guardou o revólver, e, aproximando-se de Adosinda, que, encostada ao piano, tremia, como varas verdes, abraçou-a, beijou-a com um carinho que nunca manifestara em ocasiões menos inoportunas.
A moça estava assombrada; esperava pelo menos a maldição paterna; era, desde pequenina, órfã de mãe, e habituara-se às brutalidades do pai; aquele beijo e aquele abraço encheram-na de confusão e pasmo.
O Comendador foi o primeiro a falar:
- Vês? disse ele, apontando para a porta: vês? O homem por quem abandonaste teu pai é um covarde, um miserável, que foge diante de um cano de um revólver! Não é um homem!...
- Isso ele é, murmurou Adosinda baixando os olhos, ao mesmo tempo que duas rosas lhe desfaziam a palidez do rosto.
O pai sentou-se no sofá, chamou a filha para perto de si, fê-la sentar-se nos seus joelhos, e, num tom de voz meigo e untuoso, pediu-lhe que esquecesse do homem que a raptara, um trocatintas, um leguelhé que lhe queria o dote, e nada mais; pintou-lhe um futuro de vicissitudes e misérias, longe do pai que a desprezaria se semelhante casamento se realizasse, desse pai que tinha exterioridades de bruto, mas no fundo era o melhor, o mais carinhosos dos pais.
No fim da catequese, a moça parecia convencida de que nos braços de Borges não encontraria realmente toda a felicidade possível; mas...
- Mas agora... é tarde, balbuciou ela; e voltaram-lhe à face as purpurinas rosas de ainda há pouco.
- Não; não é tarde, disse o Comendador; conheces o Manoel, o meu primeiro caixeiro do armazém?
- Conheço: é um enjoado.
- Qual, enjoado! É um rapaz de muito futuro no comércio, um homem de conta, peso e medida! Não descobriu a pólvora, não faz versos, não é janota, mas tem um tino para o negócio, uma perspicácia que o levará longe, hás de ver!
E durante um quarto de hora o Comendador Ferreira gabou as excelências do seu caixeiro Manoel.
Adosinda ficou convencida.
A conferência terminou por estas palavras:
- Falo-lhe?
- Fale, papai.

IV

No dia seguinte o Comendador chamou o caixeiro ao escritório, e disse-lhe:
- Seu Manoel, estou muito contente com os seus serviços.
- Oh! patrão!
- Você é um empregado zeloso, ativo e morigerado; é o modelo dos empregados.
- Oh! patrão!
- Não sou ingrato. Do dia primeiro em diante você é interessado na minha casa: dou-lhe cinco por cento além do ordenado.
- Oh! patrão! isso não faz um pai ao filho!...
- Ainda não é tudo. Quero que você se case com a minha filha. Doto-a com cinqüenta contos.
O pobre diabo sentiu-se engasgado pela comoção: não pode articular uma palavra.
- Mas eu sou um homem sério, continuou o patrão; a minha lealdade obriga-me a confessar-lhe que minha filha... não é virgem.
O noivo espalmou as mãos, inclinou a cabeça para a esquerda, baixou as pálpebras, ajustou os lábios em bico, e, respondeu com um sorriso resignado e humilde:
- Oh! patrão! ainda mesmo que fosse, não fazia mal.

Fonte: http://www.cyvjosealencar.seed.pr.gov.br/redeescola/escolas/26/700/16/arquivos/File/Livros/Artur%20Azevedo/Contos%20Fora%20de%20Moda.pdf.

Um comentário:

  1. Gostei desse conto, mas no final fiquei com pena de Adosina e de Manoel, e o casamento arranjado! Muito gostoso de ler!

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