quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

LOCOMOTIVAS - CAPÍTULO I - PARTE II


Muita coisa mudou na vida de Fábio desde que viu Milena pela primeira vez, na porta da escola de Lia. Ela não era uma mulher como as outras. Não representava papéis, não fingia ser mais do que era. E o que era já bastava para que ele se apaixonasse... Fábio não sentia nada parecido havia muitos anos... Depois do suicídio de sua mulher, o amor se tornara um mal a ser evitado, um perigo para sua vida e para a vida de sua filha. Ele não queria outra mulher e Lia não queria outra mãe. Estava tudo perfeito. Uma combinação ideal, que não deveria ser alterada. A casa continuava em ordem, desde que sua irmã Sílvia assumira o lugar da cunhada nos afazeres domésticos. Nenhum homem poderia querer uma vida melhor: uma irmã solteira para cuidar da casa, da roupa e da filha, e a liberdade de poder sair com todas as mulheres do mundo.
Mas agora era diferente. Havia Milena. E ela iria mudar essa vida estável...
Mesmo a hipótese de uma mínima alteração causava pavor a Fábio, porque toda mudança implica novas emoções. Mas as emoções estavam fora de seus planos. Sua vida seguia como seu trabalho de advogado: tudo conforme a lei, de acordo com as regras. E as exceções sempre apresentavam perigo.
Ele estava relendo um processo em sua sala, quando a secretária o chamou pelo telefone:
- Dr. Fábio, é a Sandra no direto. O senhor atende?
Ele pensou por alguns segundos. Sandra... ah! era aquela morena com quem ele passara o carnaval na praia. Noites inesquecíveis, mas não estava mais interessado. Sandra era o tipo de mulher que um homem só agüenta quando está em ritmo de carnaval. Durante o resto do ano, era impossível suportar alguém que não o deixava sossegado nem por dez minutos sem pedir um beijo ou arrastá-lo para a cama.
- Diga que eu viajei, Jussara. E que só volto no ano 2000...
Jussara mal podia acreditar. Nos sete anos que trabalhava com ele, era a primeira vez que dispensava uma garota desse jeito.
Fábio deu uma volta pela sala, olhou pela janela. O que estaria acontecendo com ele? Não conseguia deixar de pensar em Milena. Fora uma pena que ele não a tivesse encontrado no colégio naquela manhã... E que irmãzinha mais insolente aquela... Como era mesmo seu nome? Ah, sim, Fernanda... Nem parecia ser da mesma família... É mesmo... que tolo! E nem eram mesmo... Lia dissera algema coisa durante o jantar sobre o fato de Regina, Fernanda e outros dois irmãos terem sido adotados... Milena era a única filha legítima. Mas poderia ter ensinado um pouco mais de educação à irmã!
O telefone tocou novamente. Fábio atendeu.
- Jussara, se for a Sandra outra vez, diga que eu peguei um foguete e fui pra Vênus! Não, Vênus não! Diga que fui pro inferno!
- Dr. Fábio... tem uma garota aqui querendo falar com o senhor... ela disse que se chama Milena. O senhor atende?
Fábio abriu um sorriso, sentiu uma leve onda de calor.
- Claro! Faça-a entrar!
Jussara abriu a porta. Fábio estava em sua mesa, fingindo que trabalhava.
Assim que levantou os olhos, sentiu frustração e raiva ao ver que quem estava ali era Fernanda...
- Obrigado, Jussara... pode ir.
Fernanda puxou uma cadeira e sentou-se a sua frente.
- Já sei... você está com raiva porque eu disse que era a Milena... Mas se eu dissesse que era a Fernanda, você nem me receberia.
- Exatamente! Como não vou recebê-la agora. Faça a gentileza de sair de minha sala. Estou muito ocupado.
- Se fosse minha irmã, você a receberia, mesmo estando ocupado...
- Fernanda, por favor, compreenda. Você parece ser uma garota inteligente e já deve ter percebido que eu tenho idade para ser seu pai. Só que eu tenho uma filha e não estou interessado em adotar outra...
- Nem eu preciso... Já fui adotada pela Kiki Blanche, minha mamãe! E nunca senti falta de um pai. Eu só queria mesmo era conquistar você, que, apesar de ser mais velho que eu, é meu número exato...
- Fernanda, por favor. Eu sou um homem sério, responsável, e não quero perder meu tempo com pirralhas como você. Mulheres é o que não falta. E se eu gostasse de criança, trabalharia num berçário. Boa tarde.
Fernanda não sentia a menor vontade de sair dali. E sabia que Fábio jamais a trataria com raiva ou violência. Afinal, ela era irmã de Milena, e isso era muito significativo para Fábio.
- Me diga só uma coisinha, que eu vou embora: o que é que a Milena tem que eu não tenho?
- Boa pergunta! Eu vou adorar respondê-la. Preste atenção, garota: sua irmã tem tudo o que você não tem, e que todo homem admira numa mulher: meiguice, discrição, sensatez e, principalmente, delicadeza! Você parece um trovão, uma ventania, uma... uma locomotiva a mil por hora!
- E sou mesmo! E digo mais: eu quero que a Milena se dane! Eu sou muito melhor que ela e provarei isso a você! Eu vou conquistar você com as minhas armas...
Fernanda levantou-se, foi até a porta.
- Eu só vou insistir porque tenho certeza de que quando você me conhecer melhor vai acabar gostando de mim... às vezes, uma locomotiva pode levar um homem ao paraíso, e de maneira muito mais rápida, segura e eficiente ... Boa tarde. Lembranças a Lia! - e saiu, de nariz empinado.
Fábio chamou a secretária no interfone, sorrindo com um jeito maroto...
No fundo, Fernanda não passava de uma menina... mas uma menina atrevida e muito, muito bonita...
- Jussara, me diga uma coisa: como foi que essa menina conseguiu o endereço do escritório?
- Bem, dr. Fábio... eu perguntei a mesma coisa e ela me disse que sua filha é que deu o endereço pra ela...
- Então ligue para a minha casa... eu quero perguntar a minha filha o telefone da casa dessa Fernanda... que é o mesmo da Regininha... e o mesmo de Milena...

Joana estava feliz com as mudanças na rotina do bar. No começo, sentira um pouco de raiva ao saber que teria mais uma pessoa em sua casa, mas acabou se acostumando com a idéia. Ter um rapaz morando com eles poderia ser bem divertido... e uma ótima oportunidade para imaginar como seria a vida com um filho homem... o filho que não tivera e que, provavelmente, não teria mais. Além disso, o rapaz poderia solucionar seu principal problema: tirar Gracinha do bar, daquele trabalho indecente de servir pinga para bêbados...
No dia em que Machadinho chegou de Portugal, toda a família de Vítor e Joana ficou surpresa. A verdade era muito diferente do que cada um havia fantasiado. Joana imaginava um menino de doze anos chegando com a mala na mão e vestindo o uniforme do colégio. Chico Rico e dona Marcelina temiam receber em casa um jovem galanteador, que viesse seduzir a única neta e acabar com a intimidade da casa. Vítor estava certo de que o rapaz chegaria de forma humilde, suplicando um pedaço de pão e um gole de água fresca. E as meninas, Lurdinha e Gracinha, riam só em pensar na imagem caricata de um português de longos bigodes, andando pela casa com seus tamancos.
Foi uma surpresa geral, quando Vítor abriu a porta e encontrou Machado, um jovem alto, de profundos olhos azuis, vestindo um terno muito elegante para seus vinte e poucos anos e quente demais para o calor do Rio de Janeiro... Em poucos dias de convivência com Machado, tudo estava mudado. Gracinha e Lurdinha não riam nem de seu sotaque carregado, e acompanhavam seus movimentos como um caçador observa sua presa.
Chico Rico encontrou nele alguém que o respeitasse como homem mais velho, e Marcelina se encantou com seu ar de cavalheiro, que ainda a percebia como sendo uma mulher. Joana via em Machado um possível marido para Gracinha, enquanto Vítor cobiçava o dinheiro do rapaz e pensava em explorar sua vontade de triunfar no Brasil... Ele seria a única solução para a falência daquele bar, que nem ao menos tinha um nome...
Poucos dias depois de sua chegada, Machado já abria e fechava sua cama de armar no salão do bar com a destreza de um técnico. Seus domínios já haviam chegado até a cozinha, onde até então reinavam Joana e Marcelina. Depois do primeiro bacalhau à portuguesa, preparado pelas mãos experientes do rapaz, a família inteira já se rendia a seus encantos. Principalmente Gracinha, que descobria naquele jovem português o seu primeiro amor...

Os encontros entre Netinho e Pátrícia podiam ser considerados como verdadeiros milagres. De um lado, o pai de Patrícia proibia terminantemente o encontro entre os dois. Do outro, havia Margarida, a mãe de Netinho, que, sem exceções, odiava qualquer mulher capaz de roubar o filhinho querido de suas garras. Mesmo assim, eles continuavam a se ver.
Outro empecilho dificultava ainda mais a relação entre Netinho e Patrícia.
Os dois estavam flertando com dois dos filhos de Kiki Blanche: Patrícia mantinha um namoro inconseqüente com Paulo, para as horas vagas, quando Netinho faltasse aos encontros por estar com Renata, a irmã de Paulo.
Vencidos todos esses obstáculos, ainda restava um problema: como sair de casa e encontrar seu par?
Netinho costumava ludibriar a mãe, dizendo que ia jogar sinuca com o amigo Cássio. Com esta desculpa, estava liberado para sair e voltar tarde para casa.
Patrícia pulava a janela durante a noite, enquanto os pais dormiam. E, como um fantasma, corria pelo jardim ao encontro de Netinho, que a esperava no portão. Assim os dois podiam passear de mãos dadas, ou apenas dançar numa boate, ou tomar um sorvete duplo de chocolate.
Foi num desses encontros que Patrícia descobriu uma forma oficial de rever Netinho, e tentar introduzi-lo em sua casa. Planejou uma festa para seu aniversário, com todos os detalhes. Netinho iria como namorado de Renata, o que não era de todo uma mentira. Paulo iria como irmão de Renata e, talvez, pudesse até levar a outra irmã, Fernanda.
Faltavam apenas alguns detalhes, como inventar um sobrenome falso para os filhos de Kiki Blanche. Se o pai soubesse que eles eram filhos de uma vedete do teatro de revista, jamais permitiria que pisassem novamente em sua casa.
Estava tudo certo e preparado. Nada poderia sair errado. Agora, era só uma questão de esperar o dia da festa e aturar as intermináveis lições de piano.

Em todos os anos de sua vida, com toda sua carreira como atriz e sua experiência como mulher, Kiki Blanche jamais tinha ouvido tamanho absurdo. Não era possível que uma coisa dessas estivesse acontecendo. Numa manhã, Milena lhe havia confessado estar interessada num homem chamado Fábio; dias depois, sua outra filha, Fernanda, entrou em seu quarto e lhe confessou exatamente a mesma coisa. Não poderia estar acontecendo um absurdo desses...
Pela primeira vez em muitos anos, Kiki via Milena pensar no amor, um sentimento há muito proibido para ela. E justamente a irmã tinha de se apaixonar pelo mesmo homem... Por que, meu Deus? Por que Fernanda e Milena? Se ao menos fosse Renata no lugar de Fernanda, ela ainda poderia encarar a rivalidade com muita brincadeira, mas não com Fernanda...
Além disso, Fábio era um homem com mais de quarenta anos, não poderia jamais se apaixonar por uma menina de dezoito anos de idade, que mal sabe o que quer da própria vida. Ele era perfeito para Milena, isso sim. Um homem maduro, sensato, estabilizado, e viúvo. Pronto para se casar novamente e criar a filha. Mas conhecendo Mileria tão bem, Kiki sabia que ela jamais aceitaria competir com Fernanda... Alguma coisa de muito terrível poderia acontecer por causa desse capricho. Já seria terrível se duas irmãs de sangue se apaixonassem pelo mesmo homem. Neste caso, então, seria uma tragédia!
Ao que tudo indicava, mais uma vez a paixão, a competição e o medo marcariam a família de Kiki Blanche. Desta vez, era realmente uma pena que tudo isso não fosse apenas mais uma peça de teatro. Que Deus ao menos a ajudasse para que tivesse um final feliz. Seria terrível se ela, depois de tantos anos, fosse obrigada a assistir a uma de suas filhas perdendo o homem amado para outra mulher, como tinha acontecido com ela própria e o pai de Milena...

Margarida e Celeste assistiam à televisão, depois da tradicional partida de buraco. Netinho entrou na sala sem camisa, descalço e suando de raiva.
- Assim não dá, mãe! Eu não tenho nada pra vestir.
- Mas também não é por isso que você vai ficar sem camisa na frente da Celeste, menino! Vá pôr uma camiseta, pelo menos!
- Mas, Margarida... ele não está nu. Está apenas sem camisa. E, depois, eu sou sua vizinha: há anos... praticamente vi o Netinho crescer e, além do mais, nós estamos no Rio de Janeiro, onde todo mundo vai à praia, Margarida!
Netinho cruzou os braços e esperou o fim da discussão entre as duas.
- Será que agora eu posso perguntar o que é que vou vestir?
- Meu filho, antes de mais nada, eu vou lhe fazer minha pergunta: onde é que você pensa que vai e por que está querendo uma roupa tão especial?
Celeste levantou-se, pegou o baralho e dirigiu-se até a porta.
- Bom... eu já vou indo. Não estou a fim de me intrometer...
- Não, Celeste! Fique aí e dê uma força pra convencer minha mãe de que eu estou sem roupa pra sair.          
- Pois eu acho que suas roupas estão ótimas, Netinho. Além do mais, filho, se você sai com essas roupas todos os dias pra trabalhar no banco, por que não pode usar as mesmas roupas pra sair com o Cássio?
- Taí, mãe! Chegamos à essência da discussão. Eu não vou sair com o Cássio. Eu vou a uma festa de aniversário...
- Está vendo, Celeste? Ele vai numa festa e nem me convida...

- Tenha paciência, Margarida... você não vai querer que seu filho de 28 anos leve você numa festinha de aniversário...
- Mãe, por favor, me arrume uma camisa que eu preciso sair.
- Pra isso eu sirvo... pra lavar, passar, cozinhar. Mas pra você me levar na festa eu não sirvo, não é, Netinho? É sempre assim...
Netinho foi até Celeste, segurou-a pelo braço e pediu sua ajuda:
- Celeste, será que você não tem nenhuma camisa de seu pai?
- Não, Netinho... eu dei todas as roupas de papai e mamãe para um orfanato, no mesmo dia em que eles morreram...
- Desculpe, Celeste... eu... tinha esquecido...
- Não foi nada, Netinho. Eu compreendo - ela respondeu, tocando-lhe o rosto com carinho.
- Viu só, Netinho? Além de me fazer sofrer, você ainda magoa a minha melhor amiga...

A festa de Patrícia não foi exatamente o que ela planejara. Muito menos o que seus pais tinham imaginado. No começo, tudo correu conforme o previsto: nada de bebidas alcoólicas, só música romântica, sem muito barulho, convidados que teriam de passar pelo mordomo. Depois da primeira meia hora da festa, os pais se recolheram para a biblioteca, onde uma festinha particular e paralela, reunindo os pais dos convidados de Patrícia, acontecia sem muita animação.
Foi este o erro crucial de Sérgio. A partir daí, tudo aconteceu. Patrícia trocou o disco na vitrola e, em questão de segundos todos estavam dançando rock em cima do tapete persa. O jardim - área terminantemente proibida por Sérgio Mello, senhor de tudo aquilo - foi invadido por casais de namorados, garotas solitárias e rapazes em busca de aventuras. Fernanda foi a primeira a se jogar na piscina. Com sua tradicional malícia, fingiu estar se afogando, um trauma bastante conhecido na casa. Bastou o primeiro grito de socorro, para que metade dos convidados se atirasse na água com a intenção de salvá-la e de refrescar um pouco o corpo suado pela dança.
Em questão de horas, a festa, de comportada, se transformou numa orgia total, só comparável às melhores do Império Romano. Mirtes ainda achou uma moça dormindo debaixo do sofá no dia, seguinte, enquanto Sérgio tentava chamar um táxi para um rapaz que foi encontrado atrás das cortinas da sala.
Para Patrícia, o saldo da festa fora absolutamente positivo. Conseguira desmoralizar a autoridade do pai. E ao mesmo tempo provara a si mesma que poderia conquistar Netinho, tirando-o de Renata. Com um pouco de experiência e usando sua beleza invejável, Patrícia, por cinco vezes, arrastara Netinho até o fundo do jardim, cobrindo-o de beijos, tempo suficiente para que Paulo a procurasse por toda a casa e terminasse por desistir e tomar um outro drinque.

O primeiro encontro entre Fábio e Milena aconteceu no dia em que ele lhe mandou um presente. Era uma camisola vermelha e muito sensual. Quando o entregador deu o pacote a Milena, com o cartão de Fábio, ela sentiu, pela primeira vez, a emoção de ser cortejada. Para ela, aquele presente embrulhado era a confirmação de que ele também sentia alguma coisa por ela. Milena abriu o pacote e encontrou a camisola mais linda que já vira em sua vida. Foi até seu quarto e olhou-se no espelho, com a camisola diante do corpo. Então, era assim que ele a via, como uma princesa, como uma estrela de cinema, vestida de vermelho, cheia de cor e de vida? Ou, talvez, o presente fosse um convite sutil e silencioso a uma noite de amor, rubra e incandescente, da cor da paixão que sentia  por Fábio... Enquanto Milena sonhava diante do espelho, Fernanda entrou no quarto, com seu jeitinho gracioso de menina-moça.
Assim que Fernanda viu a irmã segurando a camisola contra o corpo, sentiu raiva. Seu faro feminino lhe dizia que aquele presente tinha sido enviado por homem... e se era para Milena, esse homem só poderia ser... Fábio. Fernanda sentiu vontade de rasgar a camisola, de atirá-la pela janela, de arrancá­la da irmã, da mesma forma que gostaria de arrancar Fábio do seu coração. Entretanto, Fernanda sabia como ferir a irmã, e resolveu atacar, pelo lado mais covarde... Controlou a raiva, aproximou-se dela e puxou conversa:
- Que linda camisola, Milena... Você comprou?
- Não. Ganhei. Foi presente de Fábio.
- Puxa... Como é que ele já sabia até seu número?
- Não sei, Fernanda. Eu só tenho falado com ele pelo telefone.
- Mas... é uma pena que ele tenha escolhido este presente pra você...
Milena não entendeu a intenção do comentário e quis esclarecer tudo:
- Escute aqui, Fernanda. Eu não entendi muito bem o que você disse. Por que foi "uma pena" receber este presente? Porque a camisola é pra mim e não pra você, Fernanda?
- Não. Porque você já está muito velha, feia e passada pra usar uma camisola provocante como essa... Certamente o Fábio quis fazer uma gozação com sua cara... Você não achou que o presente era sério, achou? - e dizendo isso, virou-se e saiu.
As palavras da irmã feriram Milena como um punhal. Fernanda havia conseguido magoá-la.
Seria possível que ela estivesse certa? Fábio lhe mandara o presente apenas para lhe ferir? Não... não poderia ser. Afinal, ela não era tão velha assim. É claro, para Fernanda, uma menina de dezoito anos, qualquer mulher de 34 já era uma velha... pelo menos, velha o bastante para ser sua mãe...
Milena deitou-se na cama. Pensou em Fábio, em Fernanda, em sua vida e no que deveria fazer para conquistar o direito de amar, sem precisar sofrer ou fazer Fernanda sofrer. Era uma opção muito difícil de enfrentar. Como poderia amar Fábio livremente, se Fernanda, a quem vira crescer, estava apaixonada por ele, talvez amando pela primeira vez? Milena não queria competir com ela... perder Fábio seria doloroso, mas tirar de Fernanda seu primeiro amor seria talvez muito pior...             \
Seus pensamentos foram interrompidos quando Adelaide entrou no quarto:
- Milena, telefone pra você. É o dr. Fábio.
O nome de Fábio fez Milena saltar da cama.
- Obrigada, Adelaide. Eu atendo aqui - e levantou o gancho do telefone, com o coração disparado, quase sem fala.
- A... alô! Sou eu, Milena.
- Que bom ouvir você, Milena... Eu estou morrendo de saudade.
- Eu também, Fábio. Olhe, eu gostei muito do presente. É linda... é a camisola mais linda que já tive.
- Sozinha ela não vale nada, Milena. A camisola só terá vida quando você estiver dentro dela... Uma visão que ainda terei o prazer de ver...
Milena sentiu um leve rubor de paixão subindo-lhe ao rosto.
- Claro... qualquer dia desses...
- Milena, eu liguei pra convidá-la pra jantar comigo esta noite. Você aceita?
- Claro. Você pode passar aqui às... 9 da noite?
- Se eu pudesse, passaria agora e ficaria com você... Mas está certo, às 9 em ponto estarei aí.
- Um beijo, Milena. Até à noite.
- Tchau, Fábio... - e deslizou o telefone por seu rosto, imaginando que a mão dele estivesse ali, tocando sua pele.

No ônibus que a levava todos os dias para o trabalho, Gracinha sentia uma sensação diferente. Não sabia ainda o que era, mas tinha certeza de que alguma coisa nova estava acontecendo com ela. Era uma força que lhe dava vontade de sorrir e cantar. Nunca tivera nenhum sentimento positivo enquanto viajava naquele maldito ônibus. Todo dia era a mesma coisa: uma multidão de pessoas amargas e apressadas se apertando, cheias de suor e angústia. Mas, naquele dia, nem as curvas fechadas que o motorista fazia só para irritar os passageiros eram capazes de lhe roubar o bom humor.
A seu lado, Lurdinha ruminava o mal-estar de sempre. Além daquele operário que teimava em se jogar por cima dela em cada curva do ônibus, havia aquela velha de guarda-chuva e mala quase sentada em seu colo. Pior que tudo, porém, era a cara de felicidade de Gracinha. E Lurdinha pensava: "Vai ver que sonhou com o português e acordou nas nuvens. Também, pudera... O homem é lindo mesmo! Nunca vi alguém assim tão bem feito de rosto e, ao mesmo tempo, calmo, suave... que nem os príncipes de um conto de fadas... Mas talvez não seja para o meu bico. E se ele não for meu, também não vai ser da Gracinha. Isso eu garanto!"
Gracinha parecia nem sentir os empurrões e cotoveladas que faziam parte daquele pequeno inferno a que ela se submetia todos os dias. O ar devia estar mais perfumado e as luzes mais brilhantes naquela manhã. As pessoas estavam descontraídas e sorridentes e até as ruas de seu bairro pobre que via passar pela janela tinham uma aparência mais alegre. Os pensamentos de Gracinha voavam soltos: "Mamãe anda animadíssima com a reforma do bar e com as aulas de culinária portuguesa que está recebendo do Machadinho. Tomara que o plano deles dê certo e consigam transformar aquele boteco num restaurante freqüentado por gente bacana... Não gosto do cheiro de tinta, mas as paredes estão ficando muito bonitas. Não agüentava mais aquela imundície... Se o Machadinho não viesse de Portugal, aquilo ia ficar eternamente à beira da ruína. O papai sozinho nunca ia ter dinheiro nem idéia de modernizar o boteco e ia acabar na miséria".
Lurdinha tentava adivinhar o que a amiga estava pensando e tinha certeza de que, mesmo de olhos abertos, ela estava sonhando como Machadinho. Decidiu impedir que começasse um namoro entre eles. Olhou-a com inveja e começou a armar seus planos: "Se eu tivesse o corpo e a cara dela não ia ficar me matando como manicure, ouvindo conversa de madame o dia inteiro... Ia ser modelo, recepcionista, sei lá, qualquer coisa mais charmosa do que essa coisa de ficar cortando e pintando as unhas dos outros... Será que o português também acha ela bonita? Não tem importância. Ele vai ser meu, custe o que custar. Pra começar, deixa eu ver se ela está interessada nele... "
- Você não achou ele um nojo? - perguntou Lurdinha, como quem não quer nada.      .
- Ele quem?
- O português, ora! Sujeito metido a bacana... não tem a menor classe e ficou lá bancando o empresário, fazendo pose de ricaço...           .
- Eu não acho. Pra mim ele se mostrou muito humilde...
- É que você é inocente! Ele veio disposto a comprar vocês todos com aquela conversa de montar restaurante. Ouve o que eu estou dizendo!
- Que bobagem, Lurdinha! Você não viu como ele é educado. Até estudou em Coimbra...
- Conversa! Se ele fosse educado, se fosse bacana mesmo, não precisava sair da sua própria terra... Não é verdade?
- Não sei... Olha o nosso ponto aí!
Ao descer do ônibus, Gracinha não tinha o mesmo bom humor que sentia desde a hora em que acordara. Não queria nem pensar no que tinha acabado de ouvir, mas as palavras maldosas ainda ressoavam em sua cabeça e ela tentava se concentrar no ritual diário que marcava todo o início de um dia de trabalho: "Tintas, esmaltes, lixa, alicate, acetona, pronto! Tudo em ordem. Tomara que o dia passe logo. Nunca tive vontade de voltar logo pra casa. Mas hoje eu sei que vou ver o Machadinho...

Quando o carro de Fábio a deixou na porta de casa naquela manhã, Milena se imaginava num balão que descia à terra.. A noite de amor que terminava naquele momento só podia ser urna antecipação do paraíso. Nunca se encontrara assim tão divinamente envolvida com um homem. E o mais delicioso é que ele demonstrava sentir a mesma coisa. Era a comunicação total, o amor perfeito, que ela pensava ser apenas um nome de flor. As palavras eram desnecessárias, porque os gestos, o olhar, as mãos diziam tudo. Sabia que nunca mais iria se afastar daquele homem. Ele tinha chegado para ficar em sua vida para sempre. O beijo de despedida não teve o sentido de uma interrupção, porque, mesmo sozinha no elevador que subia para seu apartamento, ainda podia sentir os lábios de Fábio tocando os seus.
De repente sentiu vontade de chegar logo em casa e contar a todos que a felicidade tinha chegado de uma vez por todas. Como uma criança que chega em casa com o boletim cheio de boas notas, ela não via a hora de partilhar sua alegria com aquelas pessoas que sempre a acompanharam nos momentos m que se via amargurada e perdida. Como era bom se sentir uma mulher inteira! Que prazer deixar fluir os sentimentos e não ter de reprimi-los...
Ninguém na sala... Deviam estar tomando café. Antes de passar para a copa, porém, Milena hesitou. Come se um muro invisível lhe interrompesse o caminho. Alguma vibração indefinível fez com que o sorriso em sua boca murchasse instantaneamente. Um sopro gelado começou a varrer o calor de sua alma, mas ela nem ligou. Sem registrar o mau pressentimento que a assaltava, respirou fundo e caminhou em direção à mesa. Lá estava Fernanda, que passava manteiga no pão; sem olhar para a irmã que chegava.
- Tudo bem, Fernanda?
A irmã mordeu a fatia de pão sem voltar o rosto, como se não tivesse ouvi­do nada. Milena disfarçou o mal-estar pegando uma xícara para encher de café.
- Estou falando contigo, menina!
Era difícil manter a calma quando Fernanda adotava essa estratégia. Apesar de conhecer todos os seus truques, Milena sabia que ia acabar ficando nervosa. Já tinha enfrentado Fernanda tantas vezes que sabia exatamente quando briga era inevitável. Mesmo assim não conseguiu ficar quieta.
- Que foi que eu te fiz, hein?
- Passou a noite com o homem da minha vida! Só isso!
Milena não acreditava no que ouvia. Os caprichos da irmã não eram novidade. Sua eterna mania de competir com ela, a vontade de imitá-la em tudo eram coisas que até a deixavam secretamente orgulhosa. Mas essa fixação em Fábio a transtornava. Jamais poderia disputar o amor de um homem com alguém como Fernanda. Justamente ela que, bem lá no fundo, era quem Milena mais desejava agradar naquela casa. Como seria bom se, naquela manhã, ela pudesse partilhar toda a sua alegria com Fernanda.
- Conta pra mim. Como foi a noite, hein, Milena?
- Não é da tua conta!
- Como não! Eu estou apaixonada por esse homem. Você não percebeu?
- Deixe de brincadeira, Fernanda...
- Nunca falei tão sério em toda a minha vida!
Agora Milena sentia raiva. Não entendia como tinha ajudado a criar uma menina tão mimada e às vezes tão maldosa quanto Fernanda era capaz de ser. A vontade era de dar-lhe uma bofetada, mas somente pôde murmurar entre dentes:
- Isso é ridículo...
- Você que é ridícula! Com essa idade e só agora arranja um homem...
- Olhe a língua, Fernanda!
- Ninguém pode me proibir de amar alguém.
- Você só quer é competir comigo! Pára de brincar com coisa séria!
- E você pare de me tratar como se eu fosse criança! Sabe de uma coisa, Milena, eu te odeio!
E saiu correndo, deixando a irmã mais velha absolutamente atordoada. Meia hora mais tarde, quando Adelaide entrou na copa para tomar café, viu Milena sentada, olhando, fixamente para a parede...

Kiki tentava encontrar as palavras mais precisas para aconselhar Milena. Ela sempre fora tão insegura, tão reprimida, mas agora parecia ter encontrado o complemento capaz de dar um sentido à vida de toda mulher. Justamente quan­do o amor de um homem se aproximava da vida dela, acontecia essa crise com a irmã. Só poderia ser mais um capricho, mais uma demonstração de infantilidade. Mesmo assim, ela sabia que Milena seria capaz de se prejudicar por causa de Fernanda.
- Esquece isso... Vai trabalhar, vai. Parece que você nunca viu a Fernanda aprontar coisas desse tipo!
Quando a filha saiu do escritório, Kiki respirou aliviada. Sabia que o trabalho sempre fora a melhor terapia para Milena, a única distração de sua vida. Esses pensamentos cinzentos foram interrompidos pela entrada intempestiva de Paulo, que invadiu o escritório como um furacão.
- Minha querida! - gritou, sufocando Kiki com um abraço.

Antes que Kiki pudesse perguntar qual o motivo de tanta animação, Paulo foi contando tudo, falando sem parar, com um entusiasmo nunca visto. Se ele usasse um décimo dessa energia nos estudos, Kiki seria a mãe mais feliz do mundo. Mas parecia que o interesse de Paulo era um só:
- Patrícia - exclamou ele, como se pensasse em voz alta.
- E ela é bonita? - perguntou a mãe, aproveitando a deixa.
- A garota mais bonita que eu já vi na vida! É uma deusa!
- Não exagere...
- Quando você conhecer, vai ver que não é exagero.
O garoto limpou a garganta e assumiu uma postura solene, pronunciando palavras, sílaba por sílaba: - Mamãe... acho que agora é pra valer... Eu estou apaixonado!
Kiki segurou o riso e respondeu com um tom igualmente sisudo:
- Então, quem sabe seja o momento de você começar a pensar seriamente no seu futuro e passar a levar a faculdade a sério!
- Eu estou falando de amor e a senhora vem me falar de estudo?
- Está bem... Ela é sua colega de faculdade?
- Não... eu a conheci na piscina da casa dela.
- Piscina... então é uma moça rica?
- Acho que sim... o único defeito dela são os pais... A mãe é uma chata e o pai vive no pé dela, não dá um mínimo de liberdade pra garota.
- É pena... eu por acaso conheço os pais dela?
- A mãe se chama Mirtes e o pai parece que é Sérgio... Sérgio Mello... é isso.
Sérgio Mello... O nome ressoava em seu cérebro, impedindo-a de pensar.
- A senhora o conhece?
- Nunca ouvi falar!
Era mentira. A simples menção daquele nome a fez viajar para o passado, como num passe de mágica. Mas a presença do filho adotivo devolveu-a ao presente. De uma hora para outra, sua vida se transformava numa farsa de teatro, muito mais complicada e dramática do que as peças que tinha interpretado na juventude.

CENA DA NOVELA


2 comentários:

  1. JE, eu já ia dormir e lembrei que hoje é dia de Locomotivas, não resisti: vim ler! Que legal, parece que estou revendo a novela! Lembro de cada um dos personagens: Fernanda, que menina irritante, e Milena protegia-a tanto que logo a gente começava a achar que tinha alguma coisa estranha na história, e tinha, rsrsrs. Netinho e a mãe também tinham umas cenas muito boas, assim como Patrícia e os pais, e a vilã Lurdinha, uma cobra! Foi uma grande novela, estou adorando lembrar! Bjs.

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  2. JE, acho que vi esta novela, me lembro do nome, mas não lembro da história, mas tenho desanimo de ler coisas muito grande, acho que depois vou lêr aos poucos....bjos.

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