quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

LOCOMOTIVAS - CAPÍTULO III - PARTE I


Margarida vivia dias felizes. O filho estava parando em casa. Levava-a com Celeste ao cinema, jogava buraco, dormia cedo. Enfim, tudo corria como deveria ser sempre: longe daquelas garotas que viviam atrás dele. A pior de todas era a tal de Patrícia. Renata não conseguia dominar Netinho, mas a outra era capaz de tirá-lo do sério. Bastava ligar que o bobinho já ia atrás dela como um cãozinho amestrado. Não tinha criado um filho para cair assim tão facilmente nas mãos da primeira que aparecesse.
Celeste atravessava um período cheio de contradições. De um lado estava contente por ter Netinho mais tempo ali por perto. Ele conversava bastante com ela, trocava idéias, chorava as mágoas. E isso lhe dava um enorme prazer, porque era a única forma de intimidade que podia desfrutar com ele. O que será que sentia por Netinho? Não era apenas atração física. Isso, aliás, nem passava por sua cabeça. O que valia para ela era esse tipo de intimidade, era sentir que o rapaz confiava nela e lhe contava todos os segredos de sua alma. Amiga, irmã, conselheira, psicanalista, confidente... era muito bom saber que era tudo isso ao mesmo tempo para Netinho. Valia muito mais do que se fosse apenas a namorada.
Por isso tudo, Celeste não ficou nem um pouco triste quando Netinho lhe deu a notícia de que tinha reatado o namoro com Renata. Celeste não se sentia em competição com as outras moças. Ela sabia que não passavam de aventuras, de passatempos que ele um dia superaria. O mais importante para ela, no entanto, era entendê-lo, ficar a seu lado e dar-lhe todo o apoio de que precisasse.
Margarida, por sua vez, ficou arrasada. Percebeu que o período de trégua terminara. Agora começaria a guerra outra vez. Ela era contra esse mundo de mulheres tentando agarrar o filho. Estava ali para defendê-lo. Mas quem defenderia Netinho de Margarida?

Sérgio não sabia mais o que fazer com a filha. Ela se recusava a levar a sério os estudos. Havia desistido de fazer faculdade. Também não se dedicava aos cursos de línguas e piano que ele tanto tentou obrigá-la a seguir. Mas o pior de tudo eram os rapazes com quem se relacionava. Não confiava na habilidade de Mirtes para controlá-la. Desconfiava de que Patrícia saía quase toda noite, sabe-se lá com quem, às escondidas. Se ela se entendesse com Marco Aurélio, seria maravilhoso. Não apenas estariam terminadas suas angústias de pai, como também ficariam solucionados seus problemas como empresário. A indústria ia de mal a pior e justamente Marco Aurélio era um de seus maiores credores.
Para complicar ainda mais o quadro, aparecera esse filho da Kiki Blanche.
Seria uma vingança? Uma forma de obrigá-lo a saldar uma dívida do passado? Não, não tinha sentido. Só podia ser uma coincidência. Uma horrível e indesejável coincidência. Jamais permitiria que sua filha se relacionasse com o filho de uma vedete do teatro rebolado. Preferia que ela namorasse com aquele outro garoto. Aquele que a tinha salvo do afogamento. Apesar de humilde, era um mal menor. Quem sabe assim ela se esquecesse do filho da Kiki Blanche. E, nesse meio tempo, seria possível arrastar Marco Aurélio e fazer com que Patrícia o conhecesse.
- Patrícia, minha filha... você tem visto aquele rapaz que a salvou?
- Não, papai - respondeu amedrontada.
- Pois você tem a permissão para recebê-lo em nossa casa...
- É mesmo, papai? - Patrícia nem acreditava na súbita mudança do pai.
Mas não perdeu nem um segundo em tentar entendê-lo. Sua primeira providência foi ligar para Netinho e contar-lhe a novidade.

Fábio estava infeliz, mas pelo menos tinha a consciência tranqüila. Fez o que era possível para convencer Milena da idiotice que estava fazendo, de deixá-lo para a irmã. Fez o possível também para convencer Fernanda de que aquela sua paixão por ele terminaria antes que ela pudesse imaginar.
Mas nenhuma das duas parecia entender sua lógica. Uma coisa tinham em comum: a teimosia. E, no entanto, nem ao menos eram irmãs legítimas... Aborrecido com os caprichos das duas, resolveu voltar aos velhos tempos e sair um pouco com suas antigas namoradas. Bastou discar alguns números e já estava pronto para mais uma noitada fútil e inconseqüente, mas que ao menos não o enlouqueceria como Milena estava conseguindo fazer. Fábio saiu com uma antiga namorada, chamada Carla Lambrini, mulher madura, bonita e milionária, que, se não era muito inteligente e culta, também não lhe trazia problemas.
Fernanda estava sozinha em seu quarto, remexendo roupas e arrumando gavetas, e aproveitou para remexer também em sua vida. Foi até o telefone e ligou para Fábio. Quem atendeu foi Sílvia, a irmã dele, que torcia por Milena e, portanto, contra Fernanda. Respondeu-lhe com educação e frieza, fazendo questão de dizer que Fábio tinha saído com uma mulher e talvez só voltasse na manhã seguinte. Fernanda desligou o telefone sem dizer "boa noite" ou "muito obrigada". Se soubesse onde Fábio estava com sua namorada, iria até lá e mataria os dois; ou melhor, só ela, já que para Fábio reservaria um castigo especial. Deitou-se na cama e não sentiu vontade de chorar. Apenas ódio. Odio de tudo e de todos. E não queria sentir esse ódio sozinha, queria partilhá-lo com mais alguém; e assim foi até o quarto de Milena. Bateu à porta, ouviu a voz da irmã dando permissão para entrar; entrou, sentou-se na cama dela e ficou calada.
- Que foi, Fernanda? Não consegue dormir?
- Não. E nem quero. Estou morrendo, borbulhando, explodindo de tanto ódio! Ah, se eu pudesse encontrar aqueles dois agora...
- Dois? De quem você está falando, Fernanda?
- Eu acabei de telefonar para o Fábio, e a irmã dele me disse que ele saiu com uma mulher e que provavelmente só vai voltar amanhã.
Milena engoliu em seco para não deixar transparecer nenhum sentimento de ciúme ou de raiva diante da irmã.
- Bem, Fernanda. Fábio é viúvo, e é adulto. Ele tem o direito de sair com quem quiser. E de passar a noite fora sem ter que dar maiores explicações.
- Mas, se ele está querendo uma mulher pra ficar com ele, por que não me convidou no lugar dela?
Milena sentiu o peito gelar. Seria possível que Fernanda e Fábio já tivessem chegado a essa intimidade? Não... não era possível! Ele não teria coragem de fazer isso com uma menina de dezoito anos, e ainda mais sendo sua filha... Isso teria de ser muito bem esclarecido!
_ Fernanda, não está querendo me dizer que você e ele já chegaram a esse ponto...
Femanda entendeu aquilo como se fosse uma demonstração de ciúme da irmã e resolveu mentir só pra medir o que ela sentia por ele.
- Ih, Milena, como você é antiquada! É claro que eu não contaria uma coisa dessas pra Kiki; afinal ela é mãe, sabe como é... mas como você é minha irmã não tem problema nenhum em contar...
Milena mordia os lábios para se conter. Não podia nem imaginar o que viria depois...             .
- Bem, um dia eu encontrei o Fábio por acaso, e nós saímos; ele disse que eu estava muito bonita, e acho que ele não resistiu. Passamos a tarde juntos e fizemos amor... foi maravilhoso, Milena! Espero que você não vá ficar com ciúme, eu só estou lhe contando o que aconteceu... Bem, acho que vou dormir. De repente fiquei com sono.
Fernanda levantou-se, sabendo que provocara alguma coisa em Milena. Mal sabia ela que não era a irmã quem estava sofrendo por Fábio; mas sua própria mãe, angustiada diante da revelação de que sua filha já não era mais uma menina, mas uma mulher...
Na manhã seguinte, Milena telefonou para o escritório de Fábio. Assim que a secretária anunciou seu nome, Fábio correu a atendê-la. Mas do outro lado da linha encontrou uma voz séria e fria perguntando sobre Fernanda.
Fábio negou toda a história inventada por Fernanda, jurando a ela que nada disso tinha acontecido e que, certamente, não viria a acontecer. Não era de Fernanda que ele gostava, e sim dela. Milena ficou tranqüilizada com as palavras dele. Sabia que, apesar de tudo, era um homem sério e íntegro e que não mentiria a ela sobre assunto dessa seriedade. Fábio, no entanto, não entendia por que Milena ficara tão atordoada com a história de Fernanda. Se a preocupação fosse por causa de ciúme, ele até ficaria lisonjeado. Mas o tom de voz dela indicava uma cobrança séria, como uma mãe quando descobre que a filha já não é virgem...
Terminado o telefonema, Fábio resolveu falar com Fernanda pessoalmente, e de uma vez por todas acabar com esse martírio de ter uma criança teimosa atrapalhando sua vida.

O encontro com Fernanda foi marcado para a hora do almoço, num restaurante simples à beira da praia. Quando ela chegou, Fábio já estava lá.
- Desculpe a demora. Se eu soubesse que ia deixar você esperando, teria vindo mais cedo.
- Não tem importância, Fernanda.
- E então? Desistiu de tentar resistir e vai me pedir em casamento?
- Fernanda, pare de sonhar. Eu não amo você. Acho você uma garota maravilhosa, cheia de vida, mas estou apaixonado por sua irmã.
- Ouvi, mas acho que isso também vai passar logo. Ela não quer nem ouvir falar em seu nome.
- Por sua culpa! Se você não tivesse inventado essa história de se apaixonar por mim, ela não teria me dado o fora.
- Não tente me culpar, Fábio. Se ela amasse você de verdade, não teria tomado uma atitude dessas. Ou você já ouviu falar de uma irmã que abre mão do seu homem pra deixá-lo pra outra?
Fábio não tinha como argumentar. Realmente, ele nunca tinha tido notícias de uma outra situação absurda como essa. Decidiu retomar o diálogo com ela, sem tocar no nome de Milena.
- Olhe, Fernanda, eu quero lhe dizer uma coisa muito sincera. Não acredito que daria certo eu e você. Mesmo que resolvesse entrar nessa loucura e casar com você, o nosso relacionamento não duraria nem cinco anos. É uma questão de aritmética. Eu tenho 45 anos, e você, dezoito. Agora isso não parece tão trágico. Mas, daqui a quinze anos, a diferença será uma catástrofe. Imagine um velho de sessenta anos, passeando na praia com uma mulher de 33, linda e exuberante, no início de sua maturidade. Não tem sentido...
- Eu vou gostar de você mesmo quando tiver 120 anos!
- Você não tem mesmo jeito, Fernanda... - respondeu ele, rindo.
- E você vai me matar de tanta fome! Eu já estou até trocando você por um garçom com uma bandeja cheia de comida!
Fábio chamou o garçom e fez o pedido. Fernanda estava adorando a companhia dele. E resolveu pedir uma pequena ajuda numa velha questão.
- Fábio, eu preciso de você como advogado. Quero descobrir minha verdadeira mãe.
- Que bobagem, Fernanda! Você sabe que sua mãe é Kiki Blanche, aliás, uma mãe maravilhosa.
- Eu sei. É só uma questão de... curiosidade. Só pra ver se eu me pareço com ela. Você me ajuda?
- Vou pensar... mas acho que isso eu posso fazer por você.

Naquela tarde de verão, no Tia Joana, Vitor fazia as contas da receita da noite anterior e separava os cheques para depositar. Chico Rico cuidava do levantamento do que havia e do que estava faltando no estoque. Marcelina e Joana iam colocando as carnes no tempero e adiantando os pratos mais pedidos para a noite. Lurdinha e Gracinha acabavam de chegar do instituto e iam arrumando as mesas do salão. Quando Machadinho chegou, quase não foi reconhecido.
Estava vestido com. roupas novas e modernas, completamente diferentes das que ele trouxera de Portugal e que vinha então usando. Colocou vários embrulhos que carregava sobre a mesa e cumprimentou gentilmente a todos. Vítor não se conteve:             .
- Que foi que houve, rapaz? Vai trabalhar de modelo em desfile de modas?
- Suas roupas estão muito bonitas! - disse Joana.        .
- Me diga uma coisa - perguntou Chico Rico. - Você escolheu sozinho?
- Não, uma amiga me ajudou... a Fernanda!
Lurdinha não perdeu a oportunidade. Cutucou a amiga, sussurrando:
- Não falei pra você que ele está louco pela Fernanda?
- Ele não presta mesmo - concordou Gracinha, fingindo que nem tinha reparado na presença dele.
- Muito justo - comentou Chico Rico. - S6 mesmo uma moça pra dizer que é que está na moda e o que não está mais...
Lentamente, Machadinho se aproximou de Gracinha com um embrulhinho na mão.
- Gracinha, eu estive lá em Ipanema... tinha tanta loja bonita... Numa delas, eu vi essas bijuterias... Acho que você vai gostar...
Quase sem falar, ela abriu a caixa e teve de fazer força para esconder a emoção de ganhar um colar, brincos e pulseiras assim tão lindos.
Ao lado, Lurdinha se roia de inveja.
Por alguns minutos, Kiki deixou de se preocupar com essa confusão de Milena, Fábio e Fernanda. No fundo, sabia que a questão iria se resolver mais cedo ou mais tarde. O que a preocupava naquele dia era a situação em que Paulo se achava. O garoto não conseguia mais dormir nem se alimentar direito. Não ia mais à faculdade e passava dias inteiros trancado no quarto sem ver ninguém. Estava amargando males de amor por causa da filha de Sérgio, mas não havia meio de se abrir com a mãe. Hoje, porém, ela estava decidida a ter uma conversa séria com o filho. Foi até o quarto dele e parou na porta.
- Posso entrar, filho? Sou eu, Kiki
- Você não é a dona da casa? - gritou Paulo do outro lado da porta.
Pelo menos ele não tinha perdido inteiramente o bom humor.
- Ainda muito triste, meu filho?
- Estou aqui me segurando... você sabe...
- Quero que me conte tudo sobre vocês.
Meio a contragosto, Paulo contou a coisa toda em detalhes. Kiki ficou sabendo como estava vivendo Sérgio, a maneira como vivia com esposa e filha, e concluiu que ele se tomara um homem por demais amargo. E não pôde evitar uma certa dose de compaixão por aquele que tanto a fizera chorar há mais de trinta anos. Ficou sabendo como era o modo de ser de Patrícia e a desculpou por ter feito o filho sofrer. Era uma menina oprimida pela autoridade paterna e, portanto, incapaz de ter opiniões ou vontade próprias. Outra vítima, como seus pais. O mais grave era a notícia das dificuldades financeiras da empresa dirigida por ele. A falência parecia ser inevitável. E, nessas condições, a pressão aumentaria ainda mais. Provavelmente arranjaria um casamento de conveniência para a filha, como um dia o pai dele fizera com ele e Mirtes.
- Ela disse que o pai vive empurrando um tal de Marco Aurélio pra ela... é um milionário, sabe?
- Era o que eu temia... soluções desse tipo só aumentam os problemas.
- Mamãe, tive uma idéia...
Kiki ficou apreensiva. Podia adivinhar o que Paulo ia lhe pedir. Não saberia dizer não, ainda que isso lhe custasse muito caro.
- A senhora não conhece alguns diretores do Banco do Brasil?
- É verdade, conheço, mas não vejo como...
- Não conhece também banqueiros, financistas, gente de dinheiro?
- O que você quer que eu faça, meu filho?
- A senhora podia tentar ajudar o pai da Patrícia...
- Você acha que isso iria trazer bons resultados pra sua relação com ela?
- Não sei... acho que sim... pelo menos o velho dela ia ficar mais sossegado...
Kiki pediu um prazo para pensar, mas, ao olhar para o rosto agora mais alegre e animado do filho, decidiu-se:
- Está bem, vou falar com o Alcântara, do Banco do Brasil... com uma condição, Paulo...
- Manda bala!
- Qualquer que seja o resultado dessa minha tentativa, você não vai contar nada a Patrícia, nem para o pai dela. Entendeu?
- Ué... por quê?
- Tenho as minhas razões... Prometa que não vai comentar nunca, senão eu não faço nada!
- Está bem... você é que sabe... Eu te adoro, Kiki!
E Paulo pulou no pescoço da mãe, num abraço que a fez feliz de novo.

- Não estou entendendo nada, Lurdinha!
Gracinha acabara de ouvir a amiga lhe contar uma história enroladíssima que envolvia Femanda, Machadinho, a mãe de Fernanda, o namorado de dona Milena e uma cartomante. Era demais para ela.
- Explica tudo direitinho, tá?     .
Lurdinha contou que, um dia, tinha ouvido uma conversa entre Fernanda e o dr. Fábio, que era o namorado de Milena.
- Como foi que você ouviu?
- Pela extensão do telefone, lá no salão...
Gracinha, muito aos poucos, ia recebendo informações a respeito do verdadeiro caráter de Lurdinha. Mas ainda acreditava nela e a considerava uma grande amiga.
- A Fernanda conversou com o tal de Fábio sobre a verdadeira mãe dela - continuava Lurdinha.
- Mas ela não é filha da dona Kiki?
- Não! É adotada. E agora ela quer saber a identidade da verdadeira mãe. Aí eu pensei: é uma boa oportunidade de ajudar a fundir a cabeça dela, sabe? Um jeito de deixar ela bem doidinha.
- Mas por que, Lurdinha?
- Pra ela esquecer o Machadinho.
- Eu não acho que isso possa dar certo...
- Mesmo assim eu vou tentar...
Lurdinha sentia que Machadinho jamais seria seu. Não conseguiria conquistá-lo. Ainda mais agora que ele acabara de anunciar a novidade: ia se mudar da casa de Gracinha, pois estava montando um apartamento para morar sozinho. Assim, tudo ficaria ainda mais difícil. Só que ela não iria desistir logo no primeiro revés. Estava disposta a ir até o fim.

Um comentário:

  1. Que mãezona essa Kiki Blanche, sempre tentando resolver os problemas dos filhos! E Fernanda, uma verdadeira sarna, rsrsrs. Estou adorando! Bjs.

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