quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

LOCOMOTIVAS - CAPÍTULO II - PARTE I


Celeste era mais do que uma amiga para Margarida e Netinho. Funcionava como confidente da mãe e do filho, ao mesmo tempo. Tinha ouvidos para as queixas de um e de outro, jamais negando uma palavra de apoio ou estímulo a qualquer dos dois. Identificava-se com Margarida porque ambas padeciam da mesma solidão: durante anos, ela concentrara toda a sua energia para cuidar dos pais velhos e doentes, enquanto Margarida vivia e sempre vivera em função do filho. Assim, as duas mulheres se viam afastadas de qualquer vida social. Há anos não conheciam o amor dos homens e se refugiavam ambas numa mesa de buraco ou diante da televisão. Às vezes saíam para ir ao cinema. E então, mais uma vez, trocavam a vida afetiva que não possuíam pelas aventuras e os romances das personagens dos filmes.
Margarida se abstinha do amor dos homens por opção. Desde que o marido morrera, jurara viver sozinha para sempre, apenas cuidando do filho. Celeste, porém, encontrava-se nessa mesma situação por força das circunstâncias. De família humilde, vira-se obrigada a dedicar tempo integral aos pais. Seu único irmão era um aventureiro e, a essas alturas, devia estar vendendo pastéis em Hong Kong ou trabalhando no garimpo de diamantes na África do Sul. Agora, não sabia o que fazer ainda com o apartamento, grande demais para ela, nem com o tempo livre que passara a ter. Também não sabia o que fazer com sua beleza de balzaquiana conservada e com sua necessidade de amar, cada vez mais intensa.
Havia Netinho, tímido e bonito, o tempo todo agarrado na saia da mãe, embora já começando a se revoltar contra essa situação. A mãe controlava-o demais e, quando o rapaz se aborrecia, queixava-se a Celeste, que morava ali ao lado. Ela era capaz de entender sua angústia de jovem à procura de felicidade. Ouvia-o e o aconselhava em suas dificuldades com as garotas - coisa que jamais a mãe poderia fazer.
"Netinho se casar? Nunca! Só se passar por cima do meu cadáver!"
Foi o que um dia ela ouviu Margarida confessar. Aquela era uma relação algo doentia. A mãe segurava o filho de maneira egoísta, só pensando em eliminar a própria solidão. Acreditava que ele ainda precisava dela como se fosse um bebê de colo. Ou, melhor, fazia força para acreditar nisso. Era a única justificativa que havia encontrado para explicar o mal que estava fazendo a ele. Netinho tornara-se um moço inseguro, sem iniciativa, incapaz de decidir qualquer coisa por conta própria. Ainda assim era uma pessoa maravilhosa.
Netinho era uma criança crescida que, a qualquer momento, ia se afirmar como homem. Tinha bons sentimentos, era trabalhador, honesto, saudável e... sobretudo... muito atraente. Seu olhar triste às vezes deixava Celeste tonta. Toda vez que pensamentos desse tipo chegavam, ela os afastava rapidamente. Afinal, Celeste era uma espécie de "segunda mãe" para Netinho. Não podia estragar a confiança que ele sentia ao conversar com ela. Quando ele brigava com Margarida, ou sofria por qualquer motivo, corria a desabafar com ela. Isso estava acontecendo naquela noite.
Netinho chegara um pouco mais tarde em casa e tivera de enfrentar o interrogatório de costume. Depois de aturar todos os problemas do dia, ainda teve de lidar com o ciúme doentio da mãe. Disse que fora jogar sinuca com Cássio, mas ela não acreditou, obrigando-o a confessar que estivera com Patrícia. Margarida não a suportava. Netinho sentia por Patrícia uma atração física muito forte. Por isso, ela funcionava como prova viva de que ele já era homem, o que era a morte para sua mãe. Eles discutiram, Margarida foi dormir e Netinho resolveu conversar com Celeste. Não podia confiar em Patrícia, que continuava saindo com Paulo, e também não era capaz de se afastar de Renata.
Não agüentava mais morar com a mãe, mas não tinha coragem de viver sozinho. Depois do desabafo, acabou adormecendo na frente de Celeste, ali mesmo no sofá da sala, fazendo-a pensar: "Ele ainda não sabe, mas precisa encontrar uma alma gêmea. Alguém que fique a seu lado... assim como eu..."

Sem saber, Milena e Fábio pensavam um no outro naquela noite. Cada um em seu quarto, eles meditavam sobre tudo o que tinham vivido e sobre o que restava ainda para viver. O frio da madrugada propiciava a reflexão, coisa que nenhum dos dois costumava fazer. Tanto um quanto outro se afogava no trabalho como uma forma de fugir ao tédio e à solidão. Viviam numa correria constante, como se gostassem de colecionar problemas para resolver. O resultado é que, tanto o escritório de advocacia dirigido por Fábio quanto o Instituto de Beleza Kiki Blanche não paravam de prosperar.
Mas nas noites em que a solidão doía mais, o salão de beleza e o Fórum estavam fechados. Nessas ocasiões, Fábio costumava consultar seu caderninho de telefones e escalar uma das suas inúmeras amiguinhas. Já Milena se enfiava num sofá, com um livro e um maço de cigarros. No fim da noite, ambos tinham sido consumidos e o sono vencia a melancolia. Quanto a ele, o desagradável era levar a moça para casa. Terminado o programa, já não havia mais nada a dizer e o resultado era um percurso geralmente constrangedor, em que as conversas ficavam restritas a monossílabos. Naquele caderninho havia centenas de garotas catalogadas. Mulheres de todas as idades, cores e tamanhos. Todas atraentes, mas nenhuma capaz de prender-lhe a atenção por inteiro. Nenhuma tinha condições de satisfazer todas as suas necessidades de afeto, carinho e companheirismo.
Em noites como aquela, Fábio não tinha coragem de abrir o caderninho e ficava em casa, em companhia de seus livros, revistas e garrafas de bebida. Mas dessa vez não conseguia ler, porque só pensava em Milena. Não havia dúvida: era ela a mulher que chegou para colocar ordem em sua vida. Só ela poderia preencher tudo, como mulher, companheira, amiga, namorada. Enfim, a pessoa que viera para compartilhar com ele os seus dias. O som de suas vozes combinava. A química de suas mãos, quando se tocavam, produzia um suave e agradável choquezinho elétrico. Só havia uma palavra para definir o que estava acontecendo com eles: amor.
Amor era um sentimento que Milena desconhecia. Portanto, era difícil para ela pensar com clareza sobre o que estava sentindo agora. A verdade é que Fábio não lhe saía mais da cabeça. O que ele fizera para enfeitiçá-la dessa forma? Nada em especial. Ele era um homem bonito, é claro. Mas ela nunca dera importância à aparência física, pois jamais se dedicara a cuidar de sua própria imagem. Do que ela gostava mais nele? A exuberante cabeleira grisalha? Os gestos e a voz elegantíssimos? O brilho dos olhos e a força das mãos?' Não poderia responder. Desconfiava de que fosse alguma coisa mais profunda. Uma qualidade invisível a olho nu. Como se ela tivesse entrado em contato íntimo com as profundezas mais recônditas daquele homem. Como se ela tivesse visto sua alma e percebido sua nobreza. Um porto seguro e definitivo, onde sua alma de mulher solitária poderia finalmente ancorar.
Quando o sono chegou, as imagens do homem amado não se dissolveram. Ao contrário, tornaram-se mais vivas e ganharam cores. Em sonho, Fábio e Milena se amavam novamente, num encontro que parecia eterno. Nele, ela via o futuro ao lado de seu amor, vivendo juntos, montando uma casa, criando filhos, envelhecendo sempre ao lado um do outro, de mãos dadas.
De manhã, ao acordar, Milena percebeu que dormira demais. Todos já tinham saído e ela estava sozinha em casa. Antes de tomar café, entrou mecanicamente no quarto de Fernanda. Estava decidida a ignorar as brincadeiras de mau gosto da irmã. Não perderia o amor de Fábio por nada desse mundo. Ainda mais por causa de um capricho de adolescente. Sobre a cama, encontrou um caderno. Todas, absolutamente todas as páginas estavam preenchidas com o nome Fábio. Poemas, declarações de amor e rascunhos de cartas, tudo ali escrito atestava o que Fernanda sentia por ele. Milena teve um choque. Por causa do que acabara de ler, ou sentindo as vibrações que a jovem deixara naquele quarto, o fato é que Milena percebeu tudo naquele instante: Fernanda estava realmente apaixonada por ele. O que fazer agora? Jamais poderia viver em paz com Fábio, sabendo que sua irmã a odiaria por isso. Com o coração em frangalhos, naquela mesma hora, Milena tomou uma decisão.

Era uma hora da manhã. No bar de Vítor, todos estavam sentados esperando pelos fregueses que não apareceram. Era a noite de inauguração do restaurante. As paredes e as mesas recém-pintadas, toalhas e talheres novos, um cardápio de suculentas comidas típicas portuguesas, chope geladíssimo e até um novo nome: "Tia Joana". Tanto trabalho para nada. Joana tinha vontade de chorar. Vítor continha o impulso de berrar todos os palavrões que conhecia. Marcelina e Chico Rico não sabiam o que dizer, mas dariam tudo para consolar a filha e a neta.
Machadinho, porém, permanecia tranqüilo. Tinha confiança na qualidade do estabelecimento que acabara de montar. Acreditava no sucesso do restaurante e sabia que às vezes a freguesia leva algum tempo para se formar. Sentia­se grato pela confiança que aquela família depositara em suas idéias e não temia pelas economias que trouxera de Portugal. Era dinheiro bem empregado. Mas se o destino quisesse contrariar seus projetos, também não tinha importância: o coração de Machadinho estava cheio de força positiva naquele dia, pois tinha conhecido a mulher mais interessante que já vira em toda a sua vida.
À tarde, fora buscar Gracinha e Lurdinha no instituto. Com isso, além de agradar as moças que moravam em seu novo lar, ia conhecendo um pouco mais da cidade. Apesar de o idioma ser o mesmo, era difícil se acostumar com o Brasil. O clima tão quente e as pessoas tão agitadas... Não conseguia entender ainda o Rio de Janeiro, que, ao mesmo tempo, era metrópole e cidade de veraneio. Como o comércio e a indústria podiam funcionar, se as praias estavam cheias daquele jeito, até no meio da semana?
Ele estava esperando as moças saírem do instituto, quando viu entrar a mulher que o deixou fascinado. Era pequena, mas tinha longos cabelos negros. Os olhos eram lindos, ainda que ligeiramente estrábicos. E o corpo parecia com o de uma menina que começava a se transformar em mulher. Antes de entrar, a moça cruzou com alguém que saía e a cumprimentou. Assim Machadinho ficou sabendo seu nome: Fernanda...
- Você reparou no jeito como ele olhou a Fernanda? - Lurdinha perguntou à amiga, firme em sua campanha para desmoralizar Machadinho.
- A Fernanda? Quando? - disse Gracinha, com ingenuidade.
- Você é cega mesmo! Foi quando a gente estava saindo do instituto. Ela, tava lá fora batendo papo com uma amiga. E o Machado não desgrudava o olho dela. Estava quase babando...
- Será? Ele não me parece um cara mulherengo...
- Esses são os que mais enganam... Se ele vier pra cima de mim eu não vou deixar barato, não! Armo um escândalo que você vai ver só...
- Agora, eu só estou preocupada com essa inauguração fracassada... Mamãe deve estar na maior fossa, coitada. Eu vou até o bar, dar uma força pra ela. Vamos?
Enquanto cruzava o corredor que separava a casa do bar, Gracinha pensava no que acabara de ouvir. Seria possível que seu coração tivesse se enganado? E seguia pensando: "Ele não pode ser uma pessoa má. Com aqueles olhos, com aquela maneira suave de agir e falar... Mas quem sabe a Lurdinha tem razão. Eu sou uma boba mesmo. Me derreto à toa e depois fico chorando pelos cantos. Desta vez eu não vou deixar que isso aconteça... Olha só a mamãe, como está deprimida, meu Deus!"
- Não se preocupe, mãe... a gente vai dar um jeito...
- Que jeito, minha filha? - perguntou Joana, desconsolada. - Como é a gente vai fazer pra divulgar o restaurante? Ninguém sabe que a gente fez essa reforma.
- Tenho uma idéia - disse Machadinho. - A gente manda imprimir cartões de visita com nosso endereço e um resumo do cardápio. Depois, é só distribuir entre pessoas que possam vir a ser nossos fregueses.
- Acho que a gente pode distribuir para a clientela lá do salão -lembrou Gracinha. - A dona Kiki não vai deixar de ajudar a gente. Tenho certeza disso!

Milena entrou no escritório de Kiki, sentindo que aquele era o pior dia de sua vida. Olhou as fotos da mãe na parede, as velhas recordações do teatro de revista, sentindo inveja. Inveja da coragem de Kiki de enfrentar o público, o palco e até mesmo a desilusão. Respirou fundo e começou a falar:
- Mamãe, eu... tomei uma decisão muito importante. É sobre o Fábio.
Kiki examinava um livro-caixa, sem se dar conta do que estaria para ser revelado naquele exato instante.
- Mamãe! Eu estou falando com você!
A ex-vedete fechou o livro e a olhou nos olhos:
- Está bem, filha. Eu sou toda ouvidos. O que foi que você decidiu? Que vai se casar com ele? Por mim, eu aprovo... - e sorriu docemente.
Milena segurou o choro, sentindo um nó na garganta.
- Não, mamãe. Eu... vou desistir do Fábio. Vou deixá-lo livre para Fernanda.
Kiki levantou-se num salto e segurou Milena pelos ombros.
- Você ficou louca, filha! Você ama esse homem, ele ama você!
- Não pense que eu não estou sofrendo, mamãe... só eu sei o que Fábio significa pra mim... eu nunca amei ninguém assim. Mas também não posso fazer Fernanda sofrer... Fábio é seu primeiro amor... de verdade.
Kiki já podia prever o que viria adiante... Milena era muito teimosa; depois de tomar uma decisão, raramente voltava atrás. Mesmo assim, resolveu tentar convencê-la do grande erro que estava cometendo.
- Milena, minha filha. Ouça-me bem. Um dia, eu abri mão da minha carreira, do sucesso, da fama, por causa de um homem. E o homem me deixou. E eu fiquei sem nada, Milena. Sem o teatro, sem ele, sem forças. Mas não me arrependo do que fiz. Porque eu o amava, e era só o que me importava.
Você não pode desistir de Fábio por causa de uma criancice de sua irmã, que não vai durar mais que dois meses. Não faça isso, Milena... ele ama você.
- E Fernanda ama Fábio, mamãe... de verdade. Se fosse a Renata, eu nem ligaria... mas não com a Femanda, mamãe. Eu não posso disputar um homem que, por acaso, é o primeiro amor da minha própria filha...
E, abraçadas, Kiki e Milena choraram; um choro que somente elas poderiam compreender...

Quando Fábio desligou o telefone, pensou que estava encerrando ali, com aquele gesto, não apenas uma conversa, mas todas as esperanças de sua vida. Ele não podia compreender o que estava ocorrendo. Não fazia nenhum sentido! Horas atrás ele tivera a melhor noite de sua vida, talvez o único momento de amor verdadeiro e sincero desde que se tornara um adulto. E no entanto, agora, tudo estava terminado...
As palavras de Milena ressoavam em sua cabeça, impedindo que pudesse pensar: "Eu não o amo mais, Fábio... não sinto nada... foi bom enquanto durou, mas... não é bem isso que eu quero... " Não era possível que aquilo estivesse realmente acontecendo.
Uma mulher pode enganar, fingir, mentir, fazer o diabo. Mas não quando chora nos braços de um homem, e lhe confessa amor eterno depois de uma noite como aquela...
Ou seria possível que todas as mulheres do mundo fossem igualmente loucas? Não. Definitivamente, Milena era uma pessoa lúcida, sincera. Fábio não poderia tentar comparar Milena a sua mulher, que se suicidara com uma filha ainda pequena para criar, tentando vingar-se por coisas que ele lhe tinha feito. Então, como explicar aquele telefonema?
A cabeça de Fábio parecia prestes a explodir. De repente, surgiu Fernanda em sua cabeça. Era isso... Fernanda. Só poderia ser... Milena devia ter desistido dele por causa da irmã. Mas se fosse assim tudo ficaria ainda mais absurdo! Desde que o mundo é mundo, as irmãs brigam, competem, disputam e lutam acirradamente por seus objetivos. Como explicar então que Milena abrira mão de tudo para deixá-lo livre para a irmã?
Quanto mais tentava entender, mais os pensamentos lhe traíam. Simplesmente, não era possível compreender. Quanto mais aceitar essa decisão...
Fábio reclinou-se na poltrona do escritório, acendeu um cigarro e, em seguida, o apagou. Debruçou-se lentamente sobre a mesa, sentindo apenas um leve torpor de cansaço. E, assim, encolhido e com a cabeça sobre as mãos, pela primeira vez depois de tantos anos, chorou. Todas as lágrimas que jamais conseguira derramar em toda a sua vida.

Netinho deixou Patrícia em casa, tornando todo o cuidado para não ser visto nem mesmo pelo mordomo. Voltou pelo caminho mais longo, tentando demorar o máximo possível para chegar. Sua mãe certamente o estaria esperando para mais um sermão. Pouco antes de sua casa, parou o carro e olhou o mar, seu velho companheiro desde a infância. Netinho sempre se admirava m a imensidão do mar. Para ele, aquele oceano representava sua própria vida. Durante o dia, com o movimento da praia e o calor do sol, tudo lhe parecia claro, fácil de compreender. Sabia que era bom funcionário no banco, honesto, e que gostava de Patrícia. À noite, toda essa paisagem se modificava, como o mar. A escuridão e o som das ondas quebrando nas pedras lhe causavam medo. Não sabia distinguir os movimentos da água, não podia ver o horizonte nem a praia. Exatamente o que sentia quando estava diante de sua mãe, aliás, da juíza de todos os seus atos, seus pensamentos, suas palavras. Bastava que ela lhe chamasse a atenção uma vez, para que abandonasse as próprias idéias e opiniões e acatasse as imposições de Margarida.
Foi olhando o mar que decidiu conversar com Celeste, sua única amiga. Talvez por causa da grande diferença de idade, Netinho sentia-se mais seguro para conversar com ela. No fundo, tinha certeza de que ela o compreenderia e não o faria sentir-se ridículo.
Pouco tempo depois, ele estava diante da porta de Celeste, tocando a campainha, e torcendo para que ela viesse logo atender.
A porta se abriu.
- Oi, Netinho! Que surpresa! Entre...
Netinho sentou-se confortavelmente no sofá e começou a conversar um pouco com Celeste, um pouco consigo mesmo.
- Sabe, Celeste, hoje me aconteceu uma coisa muito esquisita.
- O que foi, Netinho? Sua mãe lhe pediu em casamento?
Netinho não sorriu e continuou exatamente de onde havia parado:
- A Patrícia me pediu em casamento, sem nenhuma cerimônia. Assim, chegou e disse: "Netinho, eu quero me casar com você". Você acha isso normal, Celeste?
- Depende, Netinho. Se ela o ama de verdade, parece muito normal. Mas, pelo que você já me contou sobre essa menina, ela pode estar apenas querendo você para sair da tirania dos pais... pense bem nisso...
- Você pode estar certa, Celeste. Como sempre!

Sérgio levantou-se da mesa de jantar e foi para a sala. Mirtes o seguiu e sentaram-se lado a lado. Ela pensou durante muito tempo antes de lhe dirigir a primeira palavra. Desde o casamento, os dois conversavam muito pouco.
Mesmo porque Sérgio não dava ouvidos a Mirtes. As palavras dela, para ele, eram totalmente dispensáveis. Não existia nada no mundo que Mirtes pudesse dizer que Sérgio não soubesse melhor.
Depois de alguns minutos, ela tomou coragem e iniciou mais um diálogo sem sucesso:
- Sérgio, eu acho que você tratou muito mal aquele rapaz.
Ao ouvir a voz de Mirtes, Sérgio já demonstrou profundo desprezo e respondeu, sem ao menos olhá-la:
- Você sabe que eu não quero que ninguém se intrometa nas minhas atitudes e decisões dentro desta casa, Mirtes. Ele não vai mais, entrar aqui e ponto final.
Mirtes demorou alguns minutos para se recuperar e tentou outra vez, procurando colocar a questão de outro modo:
- Mas, Sérgio, você não pode proibir Patrícia de ver esse rapaz, só porque a mãe dele foi uma vedete do teatro de revista... não é justo.
Sérgio sentiu um calor subindo-lhe às faces, uma manifestação muito comum de sua constante raiva pela mulher.
- Desde quando você decide se o que eu faço é justo? E digo mais: vou trazer o Marco Aurélio aqui na semana que vem para conhecer Patrícia, E vou tomar todas as providências para que desse encontro saia um bom casamento. Não quero mais ouvir uma palavra sobre esse rapaz.
Mirtes levantou-se e foi para seu quarto, talvez chorar ou bordar, ou apenas rever mais uma vez o velho álbum de fotografias de sua juventude.
Na sala, Sérgio tentava ler um jornal, passando e repassando as mesmas linhas dezenas de vezes. Não conseguia se concentrar. Os negócios iam muito mal, piorando a cada dia. Não queria nem mesmo pensar na possibilidade de falir completamente, mas sabia que isso estava para acontecer a qualquer mo­mento. Jamais diria nada a Mirtes, é claro; afinal, se nunca dividira esse assunto com ela quando tudo ia bem, não havia sentido em lhe dizer agora que estava próximo da bancarrota. Mas quem sabe se Marco Aurélio não seria a solução? Afinal, ele era jovem, milionário e na idade certa para se casar com Patrícia. No que dependesse dele, Marco Aurélio seria seu genro, até contra
a vontade da filha.

Mesmo depois da tentativa frustrada de convencer Milena a voltar atrás em sua decisão, Kiki ainda acreditava que deveria fazer alguma coisa para impedir que ela se separasse de Fábio. Não seria difícil enfrentar Fernanda. Kiki sabia que não seria uma tarefa agradável, mas estava certa de que poderia evitar um mal muito maior no futuro. Era ridículo imaginar Fernanda e Fábio juntos. Primeiro, porque ele tinha mais que o dobro da idade dela. Se bem que isso não fosse um motivo muito forte para argumentar com a filha. O motivo principal era um só: Fábio estava apaixonado por Milena, não por Fernanda. E esse seria o seu grande trunfo na discussão com ela. Era isso, Kiki diria a Fernanda que já estava na hora de parar com aquela brincadeira ridícula de querer tirar Fábio de Milena. Pensando nisso, Kiki abriu a porta do quarto da jovem e entrou. Regininha estava lá, brincando com suas bonecas, todas elas representando um importante papel em seu teatro imaginário.
- Regininha, por favor, vá brincar lá na sala. Eu quero falar a sós com sua irmã.
Regina pegou as bonecas, as roupinhas e caminhou para a porta.
- Ah... como é duro ser criança... não pode isso, não pode aquilo... não pode nem ficar no próprio quarto.... - e fechou a porta, para que Kiki ficasse à vontade.
Fernanda, deitada em sua cama, abraçada ao travesseiro, olhava Kiki com certa curiosidade:
- O que foi, mamãe? Você vai me contratar como manicure para o instituto Kiki Blanche? Ou será que você quer que eu ocupe o cargo de gerente que você deu a Milena?
- Não, Fernanda. Eu vim pedir um favor a você. É sobre Milena.
Pressentindo o que aconteceria, Fernanda tentou mudar rapidamente de assunto, uma estratégia que sempre usava quando se sentia pressionada.
- Ah, mamãe, eu quero fazer as unhas amanhã, e depois, quem sabe, uma boa massagem, uma sauna... quer ir comigo, Kikizinha?
- Fernanda, eu não vou a sauna nenhuma. Preste atenção no que eu vou lhe dizer: pare de infernizar a vida de sua irmã com essa maldita mania de competição! Esse teatro todo que você está fazendo, fingindo gostar do Fábio, vai acabar ferindo Milena e ela não merece!
Fernanda sentou-se mais perto de Kiki e enfrentou-a com coragem:
- Mamãe, você ainda não percebeu que eu não sou mais criança. Mas eu compreendo. Para os pais, os filhos são sempre bebezinhos. Eu estou apaixonada pelo Fábio, entende? Eu amo o Fábio. E não vou desistir dele enquanto tiver forças. Agora ele não gosta de mim, mas, com o tempo, eu tenho certeza de que vou conseguir conquistá-lo.
- Você não está me entendendo, Fernanda. Eu estou lhe dizendo pra esquecer esse capricho idiota. Você vai fazer a Milena sofrer, e não é justo que isso conteça! Ela adora você, Fernanda, e é capaz de fazer qualquer coisa para ajudá-la, até mesmo deixar o Fábio livre...
- Ótimo! Perfeito! A melhor notícia que eu tive até hoje! Felizmente a idiota da Milena teve uma boa idéia. Vai deixar o Fábio pra mim. Vai ver, ela se olhou no espelho e concluiu que já está feia e velha demais pra ficar brincando de namoradinha com o Fábio...
Kiki levantou-se, parou diante de Fernanda, que estava sentada na cama, e começou a sentir o sangue ferver:
- Fernanda, eu não admito que você fale assim de Milena!
Fernanda levantou-se também e parou diante da mãe, a poucos centímetros dela, quase encostando o rosto ao de Kiki.
- E por que eu não posso falar mal da minha querida irmãzinha? Porque é sua única filha legítima e eu sou sua filha adotiva, que foi abandonada na porta de uma igreja? Pois, se você prefere a Milena, é só me deixar no mesmo lugar onde você me achou!
Kiki nem teve tempo de pensar no que fez. Quando deu por si, Fernanda já estava caída na cama, tal a violência com que sua mão atingira o rosto dela. Nunca, em toda a sua vida, Kiki encostara um dedo num filho. Ainda um pouco atordoada, saiu do quarto e foi procurar Adelaide.



Por mais que tentasse, Gracinha não conseguia pegar no sono. De um lado, sentia-se inquieta, queria ter alguém com quem conversar e falar de suas angústias. De outro, pensava em Machadinho e na decepção que deveria estar tendo por causa do fracasso da inauguração. Talvez, a melhor maneira de resolver os dois problemas fosse uma só: levantar-se e ir até Machadinho, só para trocar duas palavras, mesmo que fossem apenas "boa noite". Gracinha tentava criar coragem para sair da cama, àquela hora da madrugada, sem acordar Lurdinha, que dormia tranqüilamente a seu lado. Puxou as cobertas com do e saiu do quarto pé ante pé.
Ao chegar perto do salão do bar, já podia sentir a respiração de Machadinho, que parecia estar acordado. Lentamente caminhou até perto dele e o chamou:
- Machadinho?
Ele abriu os olhos e sorriu.
- Olá, Gracinha. Não consegues dormir?
- Não, eu... estava com sede. Só vim pegar um pouco de água.
Imediatamente, Machadinho se levantou da cama, calçou os chinelos e foi até a geladeira buscar água para Gracinha. Voltou logo, entregando-lhe o copo.
- Tome. A água está fresca.
Gracinha bebeu toda a água, mesmo sabendo que não tinha muita sede, e devolveu o copo a Machadinho. Ao pegá-lo, ele tocou sua mão. Gracinha sentiu o coração acelerado e percebeu o calor da mão firme de Machadinho.
Ela sabia o que estava para acontecer e se deixou conduzir suavemente quando Machado se desvencilhou do copo, segurando seu rosto com as duas mãos. Gracinha fechou os olhos e deixou que acontecesse, na realidade, o beijo que durante tantas noites acontecera em seus sonhos...
Ao abrir os olhos outra vez, Gracinha ainda pôde ver os dentes muito brancos de Machado, a lhe sorrir com ternura e malícia. Ela se apressou para fora do bar e, com o coração transbordando de felicidade, subiu para seu quarto. Sabia que não conseguiria dormir, mas, agora, seria por uma boa razão.


Um comentário:

  1. Que legal! Como é bom recordar essa novela, e agora sabendo o que cada personagem pensa, (o que assistindo a novela, nem sempre se sabia), ficou bom demais! Estou adorando!

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