quarta-feira, 13 de março de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 29 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA


O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL

Capítulo XXIX
DENISE E SEU NOVO PAI

Após escutar que o conde Fernando e o barão Luís Paulo sabiam que ela era uma impostora, a falsa filha do nobre, Denise, saiu apressadamente do palácio, usando a berlinda de seu marido. Deu ao cocheiro o endereço de Ubaldo, o detetive particular, sentindo-se mal à ideia de ser beijocada pelo seu novo e verdadeiro pai, por quem tinha um certo asco.
- Minha menina querida! - exclamou Duroi quando a teve ao alcance de seus braços, abraçando-a e beijando-a repetidamente. - Que contente estou de ter uma filha tão linda como você! Filhinha extremada! Veio visitar seu paizinho para matar saudades!
- Não, pai. Estou aqui porque acontecimentos graves assim o exigem - replicou Denise, cortando o afetuoso palavreado do detetive. E acrescentou: - Tive a oportunidade de escutar, sem ser vista, uma conversação mantida pelo conde Fernando com meu marido.
- Sim? E de que falavam eles? Você soube despertar minha curiosidade.
Denise olhou severamente para seu autêntico pai, dando-lhe a compreender que o assunto era muito mais grave do que ele pensava...
- O conde Fernando disse a Luís Paulo que o patife do Afonso, moribundo no hospital onde foi internado depois de ser vítima de uns assaltantes...
- Mas... Eles não mataram a Afonso? - interrompeu Ubaldo, com a máxima estranheza.
- Foi você, pai, quem organizou esse assalto?
- Sim, filhinha. Eu prometi a mim mesmo presenteá-la com o cadáver desse malandro.
- Acho que eles o deixaram por morto, - falou Denise - mas Afonso ainda ficou com vida o bastante para que, suspeitando que o assalto fosse obra minha, em vingança, confessar ao capelão do hospital que eu não sou filha do conde Fernando, e sim uma impostora; e que a sua verdadeira filha é Maria "Flor de Amor". Depois de saber isto, antes que o meu marido ou o conde me expulsasse a pontapés, saí do palácio onde vivia como uma princesa, como sai um cachorro quando é atirado no olho da rua!
- Esses idiotas de que eu me servi - respondeu Ubaldo - pensaram que Afonso estava morto e por isso não lhe deram um tiro na cabeça. Mas acho que nem tudo está perdido. Os nobres, os grã-finos detestam os escândalos. E ainda poderemos tirar uma boa quantia deles, para que você não dê com a língua nos dentes... Isso seria a título de indenização.
- A indenização eu mesma cobrei - rebateu Denise, olhando desdenhosamente para seu pai - Não sou tão tapada para não saber o que fazer numa circunstância como essa. Carreguei todas as joias e uma polpuda soma em dinheiro que havia no cofre.
- Bravo! - interrompeu Ubaldo, com entusiasmo. - Essa é a prova mais definitiva de que você é real e verdadeiramente minha filha! Eu faria isso mesmo num caso semelhante. Assim, você traz consigo nessa maleta as joias e a "grana" com que se auto-indenizou? Pode dá-la a mim, eu tenho cofre e aqui estará bem segura.
- Prefiro conservá-la comigo mesma - respondeu friamente Denise.
E acrescentou:
- Agora sei o que preciso fazer. Desaparecer! Para isso, faz-me falta um passaporte com nome falso. Sei que você pode consegui-lo rapidamente para mim. Este é o motivo principal de minha visita, fique sabendo.
- Conheço realmente quem pode falsificar um passaporte para você com a máxima perfeição. Mas, antes de pensar em distanciar-se de mim, em ir para longe de Nova Orleans - disse o detetive - é preciso que me deixe uma declaração escrita e assinada por você, fazendo saber que, se aceitou fingir ser a filha do conde Fernando, o fez por instigação da marquesa Renata, sua mãe, que a obrigou, depois de empregar violência e castigos, a representar essa infame comédia, que, pela sua própria vontade, você nunca teria representado.
- Qual a finalidade desse documento? - perguntou Denise, olhando fixamente para o seu pai.
- A finalidade é eximir você o máximo possível de qualquer culpa. E acho que, depois de como se comportou com você a marquesa Renata, não poderá importuná-la e acusá-la, ainda mais quando a acusação é, no presente caso, a pura verdade.
- Sim! A marquesa Renata nunca me amou, explorou-me em tudo o que pôde, não conservo dela nem a mais leve lembrança grata. Sim, não tenho inconveniente em redigir essa declaração, será como um presente que vou fazer a você, meu pai, que não tardará em tirar um bom dinheiro com o que eu agora vou escrever.
- Oh, minha querida... Sempre pensando mal... Acha que um pai pode ser interesseiro?
- Tratando-se de você, sim. Não me faço ilusões com minha mãe, tampouco posso fazê-las a respeito de meu genitor.
Desta vez, o detetive achou melhor não replicar. Levantou-se de sua cadeira, oferecendo-a a Denise para que se sentasse a escrever, dando-lhe papel e pena em seguida.
A que foi baronesinha e agora era apenas uma fugitiva do lar doméstico escreveu gostosamente aquela acusação contra a marquesa Renata, a mulher que soube dar à luz uma criatura, mas não soube ou não quis ser mãe dela. Ubaldo leu aquele papel com toda atenção. Estava perfeito!
Denise apresentava a marquesa com a mais negra das luzes. Má mãe, vigarista, farsante, ladra... Como rugiria Renata quando tivesse aquele papel acusador diante dos olhos, escrito pela própria filha!...
- Ótimo! Você serviria para promotora, minha querida - ponderou Duroi - pois sabe acusar como o mais rígido dos magistrados.
Dobrou o papel e o guardou no cofre.
- Essa declaração vale muito mais que um cheque! - Observou sarcástica, Denise. - O senhor, meu pai, saberá tirar proveito da mesma.
- Prometo - repôs o detetive - que o dinheiro que esse papel me der será repartido com você.
- Onde estarei eu quando você o tiver convertido em dinheiro? Estou com urgência de sair de Nova Orleans.
- Então, vamos agora mesmo até a casa do falsificador, meu amigo. Ele atenderá você com maestria e rapidez. É um ás nesse ofício.
Minutos depois, na carruagem que trouxe Denise até o escritório do detetive, pai e filha se dirigiram para a casa do habilíssimo falsificador. Félix Duncan, antigo professor de caligrafia e desenho, a quem a paixão do jogo desencaminhou, convertendo-o num fora da lei, acolheu afetuosamente ao velho amigo Ubaldo Duroi e à moça que o acompanhava. O detetive particular disse a Duncan:
- A jovem que me acompanha é minha filha e está precisando de passaporte.
- Para que país, senhorita? - perguntou Duncan, inclinando-se cortesmente e beijando a mão de Denise.
- Tenciono residir em Paris, mas gostaria que meu passaporte servisse para toda Europa.
- Tenha a bondade de sentar-se - convidou-a Duncan - é questão de dez minutos - acrescentou o falsificador.
Naquela época, não existiam fotografias para documentos, nem se conhecia o sistema de identificação pelas impressões digitais. Apenas a assinatura dos que sabiam escrever aparecia nos passaportes como elemento identificador. Por isso, um documento como aquele que Denise queria obter podia ser falsificado em poucos minutos, sobretudo quando o falsificador era tão hábil como Duncan.
- Seu nome, por favor?
Ubaldo adiantou-se, não dando a sua filha tempo de falar:
- Denise Duroi. É um nome bonito e o que corresponde usar, por ser ela minha filha.
- Mas, papai, esse nome não consta no meu registro de nascimento - objetou Denise.
- Mais adiante, esse nosso problema também será resolvido - prometeu o detetive.
O passaporte da ex-baronesinha era um primor de falsificação. Com ele pôde embarcar sem dificuldade para a França. Denise iria a Paris, queria ser cantora, uma deusa dos cabarés. Conseguiria? Após acompanhar sua filha até o porto e despedir-se dela, prometendo não tardar em reunir-se a ela em Paris, Ubaldo Duroi foi ao encontro dos seus asseclas, aqueles que por ordem sua assaltaram Afonso Houdin, roubando-o e deixando-o por morto.
Eram quatro sujeitos calejados na delinquência. Ubaldo os encarou com a máxima severidade.
- O que foi que eu ordenei a vocês quanto a Afonso Houdin? - perguntou, franzindo o cenho.
- Que o roubássemos e o liquidássemos - disse Hans, um alemão de aspecto colossal.
- Certo. E vocês por que não mataram esse malandro? - replicou Ubaldo.
- Pareceu-nos desnecessário o tiro de misericórdia... Apanhou tanto, que nem que tivesse sete vidas poderia sobreviver.
- Pois sobreviveu o suficiente para poder confessar-se e acusar a quem não devia. É incrível homens tão experimentados no crime como vocês cometerem um erro tão grosseiro!
- O senhor tem razão. Na verdade, nada nos custava meter uma bala na cabeça daquele salafrário de Afonso Houdin - disse o Perneta, um dos quatro bandidos ali reunidos.
- Bem, desta vez passa - afirmou Ubaldo - Da próxima, acabará a liberdade para vocês, voltarão para o presídio, aos trabalhos forçados...
- Senhor Duroi, pode ficar tranquilo. O que lamentavelmente aconteceu não tornará a repetir-se - prometeu com toda solenidade "Mão de veludo", ladrão e assassino, foragido da Ilha do Diabo.
- Aceito suas desculpas e vou encarregar-lhes um trabalho muito mais fácil. Trata-se apenas de que vocês agarrem a uma cartomante, cujo endereço lhes darei.
- Como deverá ela morrer? A golpes de faca? Estrangulada? - perguntou Hans, com a maior indiferença, como rotina de seu criminoso ofício.
- Não! - protestou Duroi, com veemência - Nada de matar essa mulher, eu a quero viva!
- Não precisa ser espancada tampouco? - quis saber o Perneta.
- Não. Agarrem-na apenas e a levem até a antiga casa do Surdo, na estrada velha de Saint-Germain. Ficarei lá esperando que vocês me tragam essa maldita mulher, que tem uma longa conta a saldar comigo.
A casa do Surdo era uma velha e arruinada morada, isolada numa paragem totalmente desabitada, que Duroi adquirira por pouco dinheiro e que era utilizada para seus negócios escusos.
Hans e o Perneta apareceram sorrateiros no novo consultório de cartomancia e feitiçaria que a marquesa Renata abrira num subúrbio de Nova Orleans, lugar onde ninguém a conhecia e onde podia impunemente usar mais um nome falso. Agora ela se chamava Marlene Garnier.
- Ubaldo não pode imaginar que eu, a marquesa Renata, que sempre tanto amou o luxo e o conforto, se resigne a ganhar o pão de cada dia neste bairro de miseráveis - assim refletia ela.
Mas a pérfida mulher se enganava. Ubaldo Duroi, sabedor por Rosane de que fora a marquesa Renata quem denunciou ao barão Luís Paulo os amores de Denise com Afonso, provocando assim a ruína da jovem e estragando os ambiciosos planos do detetive, jurou que castigaria com a máxima crueldade àquela desnaturada mãe, que fora capaz de destruir a magnífica situação de que Denise gozava, morando em um suntuoso palácio e nadando em milhões.
Um dos confidentes contou-lhe que, no mais pobre dos subúrbios da rica cidade de Nova Orleans, tinha-se instalado uma feiticeira que sabia ler o destino de seus clientes nas unhas das mãos e nas cartas do baralho. E que o nome dela era Marlene Garnier.
- Marlene? Nome falso, sem dúvida - observou o detetive. - Descreva seu tipo e sinais particulares.
As descrições que o alcaguete fez coincidiam com as características da marquesa Renata, inclusive uma pinta que a malvada tinha sobre o lábio superior.
- É ela! Renata! - exclamou triunfalmente Ubaldo - Essa jararaca vai padecer todas as penas do inferno agora!
Hans e Perneta apareceram no local em que a marquesa fazia-se passar por vidente, fingindo ser consulentes. Foram recebidos pelo hindu, que continuava a serviço da marquesa. As consultas deviam ser pagas adiantadamente. O Perneta tirou do bolso algumas notas que pôs na mão do hindu. No momento em que este as contava, duas mãos poderosas o agarraram pelo pescoço e o apertaram impiedosamente, até perceber o parrudo Hans, que o asiático estava morto.
Procurando não fazer ruído, o colosso alemão depositou o corpo inanimado do hindu numa das poltronas da saleta.
Em seguida, os dois meliantes penetraram no gabinete de consultas, onde Renata tinha colocado uma coruja, uma serpente empalhada e uma caveira, coisas que impressionavam profundamente aos seus ingênuos clientes. Vendo aqueles dois homens, cujo aspecto nada tinha de tranquilizador, Renata teve o pressentimento de que algo de mal iria acontecer. Pôs-se de pé precipitadamente e tratou de fugir pela porta dos fundos. Hans, que era tão ágil quanto vigoroso, deu um salto de ginasta e crispou suas mãos de assassino nos braços da marquesa com tanta força que lhe arrancou um grito de dor.
A esse grito, seguiu-se outro angustiante:
- Jordi!
Ela ainda não sabia que seu fiel criado hindu estava morto. Foi-lhe impossível gritar mais, porque nesse instante o Perneta a amordaçou, enquanto que Hans a mantinha imobilizada e cobrira-lhe o rosto com um manto, para evitar que ela pudesse ser vista amordaçada. A marquesa foi levada até uma carruagem que estava esperando diante da porta da casa. A uma mulher que perguntou ao "Perneta" se aquela senhora estava doente, o bandido deu-lhe resposta afirmativa.
Um momento depois a berlinda, puxada por dois briosos cavalos, saía daquele mísero subúrbio, dirigindo-se para a casa do Surdo, onde, ardendo de impaciência, Ubaldo Duroi aguardava Renata, a mulher que tanto amara em outro tempo e a quem dedicava agora o mais rancoroso ódio.
Quando a marquesa foi introduzida na sala onde o detetive a aguardava, o terror a convulsionou.
- Amarrem os pés e as mãos dessa fera com aspecto humano e não lhe tirem a mordaça.  Prendam-na bem a uma dessas cadeiras e fiquem aí fora esperando as minhas ordens!
Hans e Perneta fizeram o determinado e depois saíram da sala, ficando perto da porta, para quando Ubaldo precisasse deles novamente.
Uma luz satânica de triunfo e de desforra brilhava agora nos olhos cinza de Ubaldo.
- Chegou a hora de seu castigo, Renata. Você arruinou a vida e o bem-estar de nossa filha. Mãe sem entranhas! Mulher perversa! Você nunca sentiu em seu coração de lama nem amor nem piedade... Você arruinou Marta Aubert. Arrancou-a dos braços do homem que tanto a amava, do conde Fernando, para jogá-la numa cela sombria do pavoroso manicômio do doutor Démon. Pois bem... Chegou a sua hora de pagar. Vai ter a sorte de Marta, muito pior, como você poderá ver com seus próprios olhos. Ah, o fim de sua vida infame será tão lento como cruel. Estou lhe reservando a mais pavorosa das surpresas. Comece a tremer, Renata, se é que o permitem as cordas que a aprisionam.
A marquesa tinha cravado seus olhos, que expressavam angústia e desespero no detetive, naquele homem que tanto a amara e que agora se tornara seu carrasco inexorável. Ubaldo colocou diante dos olhos da marquesa o papel em que Denise, a filha, a considerava a mais desnaturada e perversa das mães. Tua filha te amaldiçoa - acrescentou ele.
- Agora você vai ser levada para o manicômio. E para o manicômio dos pobres, dos desvalidos, dos sem proteção! Vai saber, por si mesma, o que Marta Aubert sofreu por culpa de você numa clínica de loucos! E você vai sofrer muito mais do que ela, porque o hospício que a espera é pior que o inferno!...
Chamados pelo detetive, Hans e Perneta transportaram a marquesa Renata até a berlinda, que ficou esperando diante da porta da casa. Ubaldo subiu à carruagem e sentou-se ao lado da marquesa que, solidamente amarrada e ainda amordaçada, permanecia imóvel como um corpo sem vida.
Se a boca de Renata permanecia fechada pela mordaça, seus ouvidos podiam perceber até os ruídos mais leves. Assim é que sentindo suores de agonia, a marquesa escutava as palavras sarcásticas e ameaçadoras de Ubaldo. Agora este dizia-lhe:
- Vamos levá-la ao sombrio e temido manicômio de São Roque. Aí a ambiciosa marquesa, a mãe sem coração, sem necessidade de morrer, vai sentir-se no pior dos infernos.
O manicômio de São Roque era um velho e triste edifício de pedra granítica com janelas protegidas por grossas grades de enferrujado ferro. Quem ali era internado, dificilmente, tornava a sair, não fosse dentro de um caixão e com rumo ao cemitério.
Quando Renata, pela janela da berlinda, chegou a ver a massa cinzenta da tétrica casa dos mortos vivos, uma aguda sensação de terror paralisou-lhe o correr do sangue nas veias. Os olhos da amordaçada mulher, fixos em Ubaldo, lançavam faíscas de ódio como querendo fulminá-lo. O detetive, bem seguro de seu poder, a correspondia com respectivas gargalhadas. O malandro que servia de cocheiro perguntou ao detetive:
- Deverei deter a carruagem diante da porta principal do manicômio?
- Não! - respondeu Ubaldo - Você parará a berlinda diante da porta dos fundos, reservada para os empregados do asilo.
E assim foi. Quando a berlinda parou no lugar combinado, o único a descer foi Duroi. Fez soar a campainha e um momento depois a porta lhe era aberta por um porteiro alto e forte como um carvalho.
- Quero falar com o Sr. Duperier - Faça favor de dizer-lhe que o detetive Duroi deseja falar-lhe.
Após uns instantes de espera, Ubaldo foi introduzido no gabinete do subdiretor do asilo, o senhor Duperier, que recebeu a Duroi com um afetuoso apertão de mãos.
- Meu caro - disse o detetive - a "doente" da qual eu lhe falei veio comigo. Está aí fora esperando a sua internação. Continua o amigo disposto a recebê-la neste asilo?
- Pois não! Eu quando prometo é para cumprir. Estou às ordens - foi a resposta do subdiretor.
- Caro amigo - disse o detetive a Duperier - estou aqui por um duplo motivo.
- Duplo motivo? - Não compreendo... - falou o subdiretor do hospício, olhando fixamente Ubaldo - Explique-se.
- Muito simples. Trata-se de fazermos nós dois um bonito negócio e de prestar um serviço importante a uma das mais poderosas famílias de Nova Orleans - esclareceu Ubaldo Duroi.
- Os negócios precisam apenas ser bons, não bonitos, observou o subdiretor, sabendo que o detetive era um tratante e desconfiava dele.
- Quando falei de bonito, quis dizer bom. Trata-se de internar neste manicômio uma nefanda mulher, que tem tanto de louca como de perversa. E achei que, contando com você, o melhor lugar para fechá-la perpetuamente é este manicômio, cujo nome basta para inspirar pavor aos cidadãos pacatos.
- Aqui quem entra sem ser louco, acaba ficando em quinze dias de estadia - afirmou orgulhosamente Duperier.
- Sei disso. A sinistra fama do hospício de São Roque é merecida - disse Ubaldo. - Portanto, é o lugar ideal para internar uma bruxa, uma verdadeira feiticeira que conseguiu infernar a vida de uma das mais respeitáveis famílias da nossa capital. Imagine você! Essa infame mulher, mediante artes demoníacas, fez ficar leprosa a uma bela moça da alta roda... - mentiu Duroi - E a família, com razão, quer vingar essa afronta, castigar a malvada...
- Bem que merece exemplar castigo - aprovou Duperier.
- Em parte alguma, essa megera poderá expiar suas culpas com um castigo tão duro como entre estas paredes. Neste hospício viverá como no próprio inferno. E me diga uma coisa, Ubaldo, quanto pagará essa honrada família pela internação?
- Trinta mil francos. São generosos, não lhe parece? - disse o detetive.
- Nem tanto! - Por menos de cinquenta mil francos essa mulher não ingressa neste hospício.
- Cinquenta mil francos? Você está exagerando, meu caro Duperier.
- Nem um centavo a menos. A responsabilidade é grande. Considere que se trata de tirar para sempre essa mulher do convívio social. Ou aceita ou você procura outro manicômio, que não vai encontrar.
- Sendo assim, aceito esse preço tão alto, mas com uma condição: que essa mulher seja encerrada no pavilhão dos loucos leprosos - exigiu o detetive, com os olhos ardendo de ódio implacável.
- No pavilhão dos dementes leprosos? - replicou Duperier, todo admirado - Meu caro, esse local abominável é pior que o próprio inferno. Tenho dez anos aqui como subdiretor e ainda não me atrevi a visitá-lo. Acho que essa mulher não será morta pela lepra, mas sim pelos loucos desse pavilhão, que são verdadeiros endemoniados!
- Que morra - sentenciou Duroi - mas que sua morte seja atroz como atrozes têm sido seus crimes.
Dizendo aquilo, pagou em boas moedas de ouro, que trazia num saquinho, os cinquenta mil francos exigidos pelo subdiretor.
Momentos depois, a marquesa Renata fazia sua entrada, conduzida por dois asseclas do detetive. Ela tinha agora as pernas livre das cordas, mas conservava as mãos amarradas nas costas e a mordaça impedia-lhe de falar. Terror e ódio se alternavam nos seus olhos, enquanto que a noção do trágico destino que a aguardava apertava seu coração. Incapaz de se arrepender, só sabia amaldiçoar em pensamento, já que sua garganta não podia articular som algum. O subdiretor agitou uma campainha e dois fortes enfermeiros penetraram instantes depois no gabinete.
- Essa louca que acaba de me ser confiada em nome da segurança pública - disse o subdiretor a seus subordinados - é demente perigosa e deve ser internada no pavilhão onde permanecem isolados aqueles que, além de loucos, vivem devorados pela horrível e contagiosa doença que é a lepra.
Apenas ouviu estas últimas palavras, a marquesa Renata fez uma tentativa de fuga tão desesperada quanto inútil. Os dois hercúleos enfermeiros se apoderaram dela e a empurraram em direção à porta. Seu destino estava selado!
- Agora você vai pagar todo o mal que fez a sua filha! Mãe perversa! Vai sofrer o mais atroz de todos os castigos! - disse-lhe Ubaldo, encarando-a pela última vez.
Pouco depois, a grande porta de ferro do leprosário do hospício se abria para dar passagem àquela que foi marquesa e que agora iria transformar-se num mísero farrapo humano.
Os loucos acudiram em tropel para receber a recém-chegada.
E quando observaram suas boas roupas e seu ar de mulher da alta roda, um sentimento de ódio despertou naqueles maltrapilhos.
- É uma grã-fina! - começaram a gritar, dançando em torno dela - O luxo a enlouqueceu! Ela não é leprosa! Mas não tardará em sê-lo, estando em nossa companhia!
Eram estas e outras frases em que prorrompiam os dementes exaltados, pela presença daquela colega tão diferente.
Tiraram-lhe as cordas que ainda imobilizavam seus braços, para melhor poder arrebatar-lhe as roupas que tanto invejaram as mulheres dementes, que apenas vestiam desgarrados farrapos. E também lhe tiraram a mordaça, curiosos por saber dela quem ela era, de onde vinha e como se chamava.
- Eu não estou louca! - gritou Renata, apenas ficou livre da mordaça. - É um crime o que estão fazendo comigo!
- Nenhum de nós é louco - replicou-lhe um demente de sinistro aspecto. - Atreva-se a repetir a palavra "louco", e eu mesmo a estrangulo!
Entretanto, no gabinete do subdiretor, conversavam Duperier e Ubaldo Duroi.
O detetive disse ao seu cúmplice e amigo:
- Essa vigarista, cujo nome é Ivonne Delapierre, tem delírio de grandeza e às vezes dá por chamar-se de marquesa Renata, mais exatamente. Mas de marquesa ela tem o que eu tenho de bispo. Trapaceira, cartomante, valia-se da magia negra para praticar o mal. Por fim, graças a mim e graças a você, terá ela neste hospício a sorte que merece.

2 comentários:

  1. Estou gostando muito desses últimos capítulos. Finalmente, as coisas começam a se resolver... Muito bom!

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  2. Já não era sem tempo, né? Mesmo assim penso que o desfecho está sendo surpreendente.

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