O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Segunda parte - Capítulo
XXVII
UMA
LETRA DE CÂMBIO
Bem
vestido, cabelos pintados e com um cavanhaque que alterava totalmente a
habitual expressão de seu rosto, Afonso Houdin apresentou-se na casa bancária
Jernessy para receber os cem mil francos da baronesinha Denise.
O
diretor do estabelecimento o recebeu prontamente em sua mesa de trabalho.
Foram-lhe
pagos os cem mil francos, sem dificuldade alguma, em notas de diversos valores,
cujos pacotes o bandido guardou numa pasta. Depois saiu do estabelecimento,
atravessou a Praça Richelieu e, uma vez mais, serviu-se da charrete e do
cavalo, resolvido a regressar à cidadezinha de Saint-Germain.
No
chalé onde estava hospedado ocultaria o dinheiro, que não tardaria em gastar,
persuadido que estava de que Denise não tinha outra solução, senão a de
dobrar-se às suas exigências.
A
estrada estava deserta, Afonso avançava na sua charrete, sem recear perigo
algum, quando, de repente, o ruído de um tropel de cavaleiros chegou até ele.
Eram cinco ou seis, todos armados com espingardas. Caçadores furtivos? Não
faltavam naquela região. Sem dúvida, indivíduos que, como ele, viviam à margem
da lei, no entanto, caçador furtivo não é bandido, portanto, Afonso Houdin não
tinha porque alarmar-se. Um dos cavaleiros aproximou-se da charrete e após
cumprimentar Afonso, perguntou-lhe:
-
Senhor, poderia informar-nos se nesta estrada existe um ramal que conduz à
aldeia de Bellegard?
Afonso
ia responder, mas alguém que estava por trás dele não lhe deu tempo. Com a
culatra da sua espingarda descarregou um tão forte golpe na cabeça do bandido,
que este perdeu instantaneamente os sentidos.
Após
aquele golpe, outro mais recebeu o inerte chantagista, aplicados por aqueles
homens com verdadeira sanha.
Depois
foi atirado da charrete para o pó da estrada e dado por morto. Tendo apanhado
tanto, golpeado impiedosamente com as culatras das espingardas, devia estar com
os ossos fraturados e as diversas hemorragias só podiam significar que a hora
da expiação de seus crimes tinha soado para ele.
Um
dos agressores do bandido tomou o comando das rédeas do cavalo da charrete,
onde continuava a pasta do dinheiro da letra de câmbio, que, mais tarde, foi
repartido alegremente entre aqueles profissionais do crime.
Quem
foi o autor intelectual daquele assalto? Ubaldo Duroi, que tinha por hábito
valer-se de capangas e malfeitores, permanecendo ele distante do lugar onde se
perpetravam seus crimes.
Com
todo o aspecto de cadáver, mas ainda não defunto, Afonso Houdin permanecia
exangue na estrada, quando, de improviso, passou à sua frente uma berlinda.
O
ocupante do luxuoso veículo ordenou ao cocheiro que detivesse a carruagem e
descesse da boleia. Também o dono da berlinda saltou dela e aproximou-se do
agredido.
-
Ainda está vivo... Provavelmente por pouco tempo. Vamos levá-lo até o hospital
de acidentados - disse aquele cavalheiro, um antigo conhecido nosso, o conde
Fernando, exatamente.
O
conde havia reconhecido, apesar de estar seu rosto um tanto desfigurado pelos
golpes brutais recebidos, alguém para ele verdadeiramente odioso: o delinquente
Afonso Houdin. Mas com toda aquela sua generosidade e espírito cristão que o
caracterizavam, em vez de entregá-lo à polícia, levou-o em sua carruagem até o
hospital.
Uma
freira veio receber o ferido recém-chegado. Estupor e o mais doloroso dos
assombros se fizeram visíveis no rosto daquela religiosa consagrada a aliviar o
sofrimento dos enfermos.
-
Afonso! Meu irmão... de quem tanto tempo levava sem ter notícias.
-
É seu irmão?! - perguntou o conde Fernando, visivelmente emocionado.
-
O jogo, a licenciosidade e as más companhias o afastaram da vida honesta, do
trabalho honrado. Que Deus Nosso Senhor tenha piedade dele - concluiu a freira,
dando um acento de prece às suas palavras.
-
Eu tenho por costume pagar o mal com o bem - explicou o conde. - Vi-o,
gravemente ferido, jogado na estrada como um farrapo humano. Irmã, peço-lhe que
o ponha num quarto confortável. Os gastos correm por minha conta. Sou o conde
Fernando de Chanteloup.
A
freira expressou sua gratidão ao fidalgo e chamou os enfermeiros e um médico
para que, na sala de curativos, prestassem os primeiros cuidados a Afonso, a
seu irmão, por quem tantas lágrimas vertera desde que soubera de sua criminosa
vida.
O
diagnóstico do médico foi terminante: não havia salvação para Afonso Houdin.
Dificilmente, ele conseguiria ver a luz do novo dia.
Irmã
Lourdes, esse era o nome da religiosa, pediu a seu moribundo irmão que,
arrependido, confessasse seus pecados ao sacerdote, que era capelão do
hospital.
Após
beijar a mão da freira, Afonso concordou. Minutos depois, o delinquente se
confessava ao capelão.
E
para provar que seu arrependimento era sincero, Afonso confiou ao sacerdote um
grande, um importantíssimo segredo, que ele unicamente poderia revelar ao conde
Fernando, ao homem generoso que lhe havia pago com o bem todo o mal que dele
tinha recebido, deste pecador agora contrito.
O
sacerdote prometeu solenemente ao moribundo que sua última vontade seria
atendida.
O
padre Crisóstomo, apenas saiu do hospital, acomodou-se num coche que o levou
até as portas da suntuosa mansão em que morava o conde Fernando.
O
nobre acolheu cordialmente ao sacerdote, longe de imaginar que ele era portador
do segredo que acabara de ser-lhe confiado por um moribundo para ser
transmitido ao fidalgo.
-
O que o traz aqui - quis saber Fernando - meu caro reverendo?
-
Afonso Houdin, arrependido de seus crimes, na hora da morte quis que o senhor
tomasse conhecimento de algo terrível e muito triste, que vai dilacerar seu
coração. Saiba o senhor, conde Fernando, que Denise, a jovem baronesa, não é
sua filha.
-
Denise não é minha filha?! - replicou estupefato, com doloroso assombro, o
nobre.- Não será mais uma mentira desse meliante?
-
Não, senhor conde. Até os mais vis deixam de mentir quando estão para
comparecer diante do tribunal de Deus. Denise foi a consequência de um pecado
de amor da marquesa Renata, mais tarde, essa aristocrata, em combinação com o
doutor Démon, fez com que Denise ocupasse o lugar de Maria "Flor de
Amor", que é a verdadeira e única filha do Sr. Conde Chanteloup.
-
Maria "Flor de Amor", a linda mocinha que eu forcei a sair de meu
palácio para sempre, querendo que não perturbasse a felicidade amorosa de
Denise, minha falsa filha! - Comentou com imensa amargura o conde, concluindo:
- que ironias tão cruéis têm às vezes o destino!
Assim
que o sacerdote saiu do palácio, o conde Fernando montou num brioso cavalo e o
fez galopar pela estrada que conduzia ao sombrio prédio em que tinha a sua
clínica o doutor Démon. O conde Fernando trazia consigo uma pistola de dois
canos carregada e um punhal florentino. Bastava o mais leve corte ou ferida
daquela lâmina envenenada para produzir uma morte fulminante.
O
nobre foi acolhido no manicômio como um hóspede ilustre. Démon veio em seguida
e seu encontro com aquele falso sorriso que combinava tão bem com o seu prenome
de Judas.
Fernando
Chanteloup não deixava transparecer o ódio e a ira que o devoravam. Com
múltiplas mesuras, o médico maldito conduziu o conde até o seu gabinete.
-
Feche a porta - disse o conde, em tom imperioso. Démon obedeceu como um
autômato.
-
Estou aqui à procura da confirmação de uma verdade, ouviu doutor Démon? Se me
mentir, uma destas armas, que estou colocando sobre sua escrivaninha, o mandará
para o inferno, onde há tanto tempo o senhor está sendo esperado.
Um
suor de agonia começou a umedecer a pele do médico canalha, que não se atrevia
a falar, nem a olhar para o conde, persuadido de que o fidalgo estava
impaciente por matá-lo como a um cão raivoso.
-
Você foi cúmplice da marquesa Renata, quando esta substituiu minha filha
verdadeira por Denise, a filha clandestina dessa malvada criatura?
-
Sim - respondeu Démon, olhando para as armas que estavam ao alcance da mão do
conde. - Ela me disse que...
-
Não invente desculpas. E agora responda: Maria "Flor de Amor",
nascida neste manicômio, é filha de Marta Aubert e, portanto, minha filha?
-
Sim - gemeu Démon, tremendo de pavor.
-
Foi você quem fez enlouquecer Marta, a criatura que eu adorava, depois que ela
foi vítima de uma infame intriga da marquesa Renata?
-
Sim, também isso. - balbuciou Démon. - Mas eu quero alegar em minha defesa
que...
-
Já disse antes que não aceito desculpas nojentas! Doutor Démon, chegou a hora
de que suas infelizes vítimas sejam vingadas. Em nome delas eu o condeno à
morte.
-
Piedade! - clamou Démon, caindo de joelhos. - Eu prometo que de agora em diante
serei outro homem.
-
As jararacas não podem deixar de ser jararacas - replicou o conde Fernando. -
Você é um inimigo da humanidade. Escolha! Estoure os miolos com essa pistola ou
afunde no seu corpo miserável esse punhal, cujo veneno é de efeito fulminante.
-
Eu não quero morrer - gemeu Démon, vertendo lágrimas de crocodilo.
-
Sei que você não quer morrer, mas eu quero livrar o mundo de uma de suas piores
feras!
Dizendo
isto, o conde Fernando puxou o cordão da campainha que servia para chamar os
funcionários do manicômio.
Uma
luz de esperança brilhou nos olhos do infame Démon. Se o conde chamava um de
seus criados, seria com a finalidade de que avisasse a polícia para denunciá-lo
como criminoso? Se fosse assim, ele, Démon, conseguiria salvar-se da morte,
pelo menos da morte imediata.
Abriu-se
a porta do gabinete e apareceu um enfermeiro de alta estatura e compleição
atlética.
-
Fui eu quem chamou - disse o conde ao recém-chegado. Gosta de diamantes? -
mostrando um magnífico, incrustado num grosso anel de ouro.
-
É legítimo? - perguntou o enfermeiro.
-
O conde de Chanteloup nunca usou joias falsas. Vale duzentos mil francos.
Gostaria de tê-lo?
-
Que devo fazer para merecê-lo?
-
Apenas persuadir seu patrão a escolher uma dessas duas armas para pôr fim a sua
miserável vida.
-
Só isso? - replicou o enfermeiro, que tinha bem vivos na memória antigos
rancores originados por frequentes injustiças de Démon. - Se o senhor conde
quiser, eu agora mesmo o estrangulo. Minhas mãos são como tenazes e aos poucos
lhe irei dando a morte, para que esse patife assim pague uma pequena parte de
suas maldades.
-
Morrer nas mãos de Cristóvão, não! - proferiu Démon. - Se devo morrer, que
minha morte ao menos seja instantânea.
Sua
mão tremia quando agarrou o punhal. Pôs a ponta contra seu peito e bastou o
pouco que apertou contra sua carne para que o violento veneno lhe desse aquela
morte rápida desejada, pois como todo perfeito canalha, Démon era um covarde.
O
conde Fernando estendeu o anel com o resplandecente diamante para o enfermeiro.
-
Não devo aceitar, senhor, pois não fui eu quem deu a morte ao doutor Judas
Démon.
-
Sua intervenção foi decisiva - insistiu o conde. - Diante do risco de ser
estrangulado por você, Démon se resolveu a morrer por suas próprias mãos.
O
enfermeiro viria a ser a testemunha do "suicídio" do infame doutor
Démon, cuja memória será amaldiçoada por toda a eternidade. Momentos depois, o
conde Fernando saía do manicômio. Montado em seu cavalo, dirigiu-se a trote
largo em direção ao palácio do barão Luís Paulo de Rastignac.
O
jovem nobre estava na sua casa e foi ao encontro do conde, apenas escutou
ressoar os cascos do cavalo nas pedras do pátio de entrada.
Em
seguida, ele leu no rosto do conde Fernando que algo importante motivava aquela
inesperada visita.
-
Preciso falar-lhe reservadamente agora mesmo - disse o fidalgo.
Como
resposta, Luís Paulo levou-o até uma confortável saleta, que era o aposento
preferido pelo barão naquela suntuosa mansão. As portas estavam cobertas por
espessos cortinados, onde estavam bordados os escudos de nobreza dos Rastignac.
-
Acabo de saber uma verdade terrível, que por um dever de consciência lhe passo
a comunicar. Denise, sua esposa, não é minha filha. É uma usurpadora! Uma
impostora!
Nesse
momento, de modo apenas perceptível, moveu-se a cortina de uma das portas da
saleta. Alguém estava escondido escutando a conversa dos dois fidalgos.
-
Mas... Como é possível! - bradou o barão Luís Paulo, pondo-se violentamente de
pé. - O senhor disse que a mulher com quem eu casei não é sua filha?... Mas não
será isso invenção malvada de alguém que não nos quer bem?!
-
Não é invenção, não, meu caro. O doutor Démon confessou seu crime. Ele foi o
cúmplice da marquesa Renata. Minha filha verdadeira nunca foi Denise. É aquela
menina, pobre de mim, que mandei para fora de meu palácio! É Maria "Flor
de Amor"!
-
Maria ''Flor de Amor"? - exclamou Luís Paulo, como se estivesse
eletrizado. - Maria... O amor de minha vida, a mulher inesquecível que, sempre,
sempre permaneceu no meu coração! Aquela que deveria ser minha esposa!
O
barão levou as mãos à cabeça, oprimindo-a nervosamente, enquanto duas lágrimas
brotavam de seus olhos.
-
Não se desespere, meu filho! - aconselhou o conde Fernando, dando um abraço
afetuoso no seu genro. -Após o impacto dessa notícia incrível, uma nova realidade
aparece em nossas vidas. Eu vou ter o amor de uma filha que leva o meu sangue
nas veias, você vai deixar de ter por esposa uma farsante. Reflita e veja que
seu casamento com Denise vai ficar nulo, sem efeito porque ela casou com você
fazendo-se passar por outra pessoa. Livre dela,você pode voltar os olhos para
Maria "Flor de Amor".
-
Ela me amará ainda? - pergunta-se todo perplexo o barão Luís Paulo - Ou
decepcionada, ter-me-á expulsado de seu coração?
-
Você sabe onde poderemos encontrar Maria "Flor de Amor"? - perguntou
o conde Fernando.
-
Eu não. A última vez que a vi foi no hotel Gardênia Azul. Quando a ofendi
gravemente, ciumento, desesperado, pensando loucamente que um anjo como ela
pudesse ser a amante daquele bandido - disse Luís Paulo sentindo vivo remorso.
-
Meu coração de pai me dá a explicação da estranha conduta de Maria "Flor
de Amor". Você, sentindo-se um marido ultrajado, estava disposto a matar
Afonso. E ela, para impedir que você arruinasse sua vida, assassinando esse
canalha, tomou para si a culpa de Denise e conseguiu que você não disparasse
contra o bandido - explicou o conde Fernando.
-
Sim. Assim foi, sem dúvida - confirmou Luís Paulo, profundamente comovido - Só
ela, que é um anjo, pode observar nessa situação crítica uma conduta tão
abnegada.
-
Agora temos de achar o paradeiro de Maria "Flor de Amor" - disse o
conde Fernando. - Quanto a Denise, essa indigna criatura deve sair para sempre
deste palácio. Pela minha parte, de agora em diante estarão cerradas para ela
as portas de minha casa. Não quero voltar a vê-la. Detesto-a, por culpa dela
muito tem sofrido aquela que é minha verdadeira filha.
-
Darei uma quantia polpuda a Denise - resolveu o barão - E a convidarei a morar
bem distante de mim. E pedirei ao meu advogado para que providencie com a maior
rapidez a anulação de meu casamento com essa impostora.
Vou
agora mesmo encontrar-me com ela, que deve estar em seus aposentos.
-
Está bem, Luís Paulo. Diga-lhe de minha parte que esqueça totalmente que eu
existo no mundo, fico aqui, entretanto, esperando o seu retorno - respondeu
Fernando Chanteloup.
O
barão passou para os aposentos privativos de Denise. A moça não estava. Mas no
mármore de uma console a filha da marquesa Renata tinha deixado um bilhete:
“Casualmente,
escutei o que você e o conde Fernando falavam. É verdade que me fiz passar por
outra mulher, mas foi por amor, porque eu o amo e o amarei sempre. Você é e
será o único e verdadeiro amor de minha vida. Como uma lembrança sua, levo
comigo as joias presenteadas por você e também algum dinheiro que retirei do
cofre. Adeus, meu querido. Que outra saiba dar a você a felicidade que eu não
consegui dar, Denise”.
Numa
bolsa de viagem, a filha da marquesa Renata levou consigo joias no valor de
alguns milhares de francos e também um polpudo pacote de notas graúdas, o
suficiente para não morrer de fome até cento e cinquenta anos de vida!
Nenhum comentário:
Postar um comentário