O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
LONGE
DA PÁTRIA E LONGE DO AMOR
O
navio "Saint Pierre" saiu do porto de Nova Orleans, rumando para
Liverpool, onde finalizaria sua viagem. O mar estava calmo. Os raios de sol se
espelhavam nas águas plácidas, que pareciam um imenso manto azul perfeitamente
imóvel, que se estendia a perder de vista.
Todos
os viajantes se encontravam no convés, gozando o saudável ar do mar. O navio,
navegando a todo o vapor, deixava atrás de si um sulco profundo de espuma.
Entre os passageiros do convés da segunda classe, um pouco desambientada no
meio de tantas pessoas de várias nacionalidades, estava Maria "Flor de
Amor". O ar do mar despenteava seus cabelos louros, proporcionando-lhe,
porém, um imenso relaxamento, quase alívio.
O
grande passo estava dado e a jovem partira e já se achava longe de sua terra,
daquele que amara e pelo qual tanto sofrera. Que importava, agora, chegar a um
país estranho, sem uma recomendação, ao sabor da aventura? A Inglaterra!
Encontraria ainda a maldade dos homens que, infelizmente, já conhecera na sua
pátria? Acostumar-se-ia aos hábitos de um povo que não era o seu? A pobre Maria
"Flor de Amor" já se sentia submetida voluntariamente a uma dura
prova! A jovem ergueu o rosto, deixando-o ser acariciado pelo vento. Podiam vir
os obstáculos, a adversidade - pensava - a luta lhe faria bem e a ajudaria a
esquecer a sua grande dor. Uma lágrima caiu, ao pensar em tudo por que passara
e ela, num gesto mecânico, ergueu a mão para enxugá-la. Logo após, uma voz
cálida e tranquila fez-se ouvir ao seu lado:
-
Não fique triste! A impressão que se tem ao ver desaparecer o último pedaço da
terra em que se nasceu é realmente desagradável... Mas o oceano não é tão mau e
áspero como parece, afinal. Garanto-lhe que podemos confiar nele sem temor!
Maria
"Flor de Amor", um tanto curiosa, voltou-se para quem falara. E
avistou assim, diante de si, um homem alto, forte, de rosto bronzeado pelo sol
e cujos cabelos grisalhos, cortados muito curtos, davam um ar de saúde e força.
Maria "Flor de Amor" imaginou que fosse um compatriota, pelo modo
como falara seu idioma e isso, naquele momento, comoveu-a. O indivíduo não
devia ser um passageiro, mas um componente da tripulação, pois estava
uniformizado e usava divisas no braço.
-
Como pôde adivinhar a minha nacionalidade? - perguntou Maria "Flor de
Amor" com curiosidade.
-
É uma questão de hábito. - respondeu o outro modestamente - depois de navegar
durante muitos anos adquire-se, por assim dizer, um olho clínico!
-
Mas o senhor fala o meu idioma com perfeição!
-
Se bem, que tenha sido obrigado, após tanto cruzar os mares, a aprender vários
idiomas, confesso que esta é a minha língua natal! Mas, sabe? Comecei a viajar
quando menino, depois vieram as guerras... E agora, nem me recordo sequer como
é feita a pequena aldeia da Louisiana em que nasci! Espero que me perdoe...
-
Mas é claro que sim!
O
oficial inclinou-se cortesmente.
-
Permita-me apresentar-me. Meu nome é Pedro Vaillant e, como deve ter visto pelo
meu uniforme, sou oficial a bordo neste navio.
Maria
"Flor de Amor" estendeu a mãozinha branca e fina, que o outro tomou
delicadamente na sua grande e forte.
-
Eu sou Maria Aubert - disse ela - e estou contente por ter-me dirigido a
palavra, já que não conheço ninguém a bordo deste navio... E isso me intimida
muito, confesso.
O
rosto simpático de Pedro Vaillant se abriu novamente em um sorriso que pareceu
rejuvenescê-lo.
-
Mas eu temo que tenha encontrado um indivíduo não muito adequado para fazer-lhe
companhia! Veja, sou um daqueles ursos marinhos da velha guarda, que só descem
à terra em casos excepcionais e que só se sentem bem na ponte de comando. Creio
que se precisasse ficar muito tempo no porto, acabaria sofrendo de mal de
terra!
O
antigo oficial riu da sua pilhéria e apertou novamente a mão de Maria
"Flor de Amor", desta vez um pouco mais forte do que o normal. A moça
fez uma careta e não pôde deixar de dizer:
-
Que mão forte!
Pedro
Vaillant, mortificado, largou-a imediatamente.
-
Desculpe-me, por favor! Não estou acostumado a apertar mãos tão delicadas e a
fazer cumprimentos! Acho que este é um dos motivos pelos quais nunca serei
capitão, sabe? Machuquei-a?
-
Oh, não foi nada! Não precisa desculpar-se.
Mais
tranquilo, o velho colosso exclamou:
-
Sabe de uma coisa? É a moça mais linda que eu já vi! E olhe que tenho girado
pelo mundo!
Maria
"Flor de Amor" corou e abaixou os olhos.
-
O senhor disse que não sabia fazer elogios...
-
Mas isto não é um elogio, é a pura verdade e eu posso fazê-lo, porque poderia
ser seu pai. Então, vai para a Inglaterra?
-
Vou, sim...
-
Não fala com muito entusiasmo, pelo que vejo! No entanto, é um país lindo,
interessante, histórico.
Maria
"Flor de Amor" se agitou um tanto encabulada e encarou o oficial. Seu
olhar límpido e puro, de eterna criança, inspirou-lhe confiança.
-
É que... Não conheço ninguém naquele país - confessou.
-
Mas como?! Vai assim para lá, ao sabor da aventura?
-
Exatamente...
-
Bem, então me permita dizer-lhe que não terá uma vida muito fácil! Não o digo
para desencorajá-la, veja bem!
-
Que está querendo dizer? - perguntou Maria "Flor de Amor" assustada.
-
Oh, nada de mal! - apressou-se a tranquilizá-la o oficial. - Só queria que
soubesse que na Inglaterra existem cavalheiros muito galantes, que apreciam
muito as moças bonitas. Terá que defender-se do assédio de milhares de
admiradores, só isso!
Maria
"Flor de Amor" deu de ombros levemente, a fim de dissimular a sua
inquietação.
-
Agradeço-lhe pelo aviso - disse ela - mas podemos evitar certos perigos,
contanto que não os procuremos de propósito!
-
Aprecio o seu bom-senso! - exclamou jovialmente Vaillant. - Isso merece um
prêmio. Permite que lhe ofereça algo para beber no bar? Oh, não se preocupe,
não será nada especial nem dispendioso: não sou um homem rico!
Um
pouco mais tarde, estendendo a Maria "Flor de Amor" um copo grande de
suco de laranja, diante do balcão brilhante do bar, o bondoso Vaillant
exclamava com sua voz de barítono:
-
À nossa amizade, senhorita Maria Aubert! Desejo-lhe uma ótima travessia!
Ainda
não acabara de falar, quando uma voz alegre ressoou as suas costas:
-
Que é isso, Vaillant, já está bebendo a esta hora?Oh, suco de laranja! Vai indo
bem, pelo que vejo!
-
Pronto, já começam as apresentações! - disse o velho lobo do mar, olhando para
o jovem oficial que falara e cujo rosto se iluminava por uma fileira de dentes
alvíssimos descobertos por um sorriso. - Senhorita Maria, por mais que pareça
estranho, devido à evidente diferença de idade que existe entre nós,
apresento-lhe o meu superior: o tenente Júlio Mosier. Tem a vantagem de ser
formado em engenharia, o que não é pouco, garanto. E é francês.
O
recém-chegado fez continência.
-
Já tive o prazer de vê-la entre os passageiros - disse ele - se bem que não me
tenha notado, naturalmente. Confesso que daquele momento em diante eu me senti
completamente tranquilo, com uma beldade a bordo, disse para mim mesmo: nada de
mal pode acontecer!
-
Que foi que eu lhe disse? - falou Vaillant, sorrindo para Maria "Flor de
Amor". - Ele é francês, o que é sinônimo de galanteria! Não posso
impedi-lo de cortejar a senhorita, Tenente, mas prometa que vai comportar-se
bem, ela está sob a minha proteção!
-
E isto para mim significa que ela é absolutamente sagrada! - disse o rapaz,
sorrindo. Depois acrescentou, dirigindo-se a Maria: - Aceita, pelo menos, meu
convite para visitar o navio? Garanto-lhe que é um ótimo e interessante
passatempo.
-
O senhor é muito gentil! - aceitou logo Maria "Flor de Amor", que se
sentia mais consolada, ao pensar que encontrara dois oficiais honestos. - Acho
que depois terei menos medo deste navio tão grande!
Maria
"Flor de Amor", sob a direção de Mosier e de Vaillant, não se fartava
de admirar os grandes salões mobiliados com luxo, principalmente os da primeira
classe, reluzentes de espelhos e de cristais preciosos. A segunda classe também
era acolhedora e elegante.
Depois
de visitar o navio inteiro, desde as salas de máquinas até as cozinhas, Maria
"Flor de Amor" pediu ao jovem tenente que a levasse ao convés de
terceira classe, onde se achavam os viajantes mais pobres. De repente, enquanto
caminhava junto à amurada, a moça sentiu alguém tocar em seu braço e voltou-se
instantaneamente, imitada pelos seus dois acompanhantes.
Quem
lhe tocara era um homem de uns trinta anos de aspecto quase normal até a
cintura. Tinha duas pernas
miseravelmente raquíticas, sobre as quais se sustentava a custo. Apesar da
idade, o desconhecido era quase totalmente calvo e as suas feições, com um
grande nariz aquilino, tinham algo estranho e impressionante.
-
Senhorita - disse o homem abrindo uma maleta muito usada que levava sob o braço
- quer comprar alguma coisa? Veja, tenho colares, medalhinhas, anéis, tudo de
prata, mas lindo. Que me diz?
Maria
"Flor de Amor", espantada com a aparência do estranho indivíduo,
permaneceu muda e indecisa... Por sua vez, Vaillant se dirigiu severamente ao
vendedor e lhe disse:
-
Não sabe que é proibido vender enquanto o navio está em alto-mar?
-
Não sei o porquê - protestou o homenzinho - paguei minha passagem como todos os
outros. Que mal existe em tentar recuperar algo com um negócio honesto?
-
Como se chama? - perguntou Júlio Mosier, tirando um caderninho do bolso.
-
Isaac Gerlich, senhor oficial! - respondeu assustado. - Mas asseguro-lhe que
não estou fazendo nada de mal! Minha mercadoria está toda aqui, como pode ver!
-
Sabe que eu poderia apreendê-la?
Isaac
apertou a maleta amorosamente contra o peito.
-
Não, por favor! É tudo que possuo!
Apiedada,
Maria "Flor de Amor" interveio:
-Seja
gentil, tenente, perdoe por esta vez. É evidente que ele não sabia que estava
contrariando o regulamento de bordo, caso contrário não se arriscaria a
oferecer sua mercadoria diante de dois oficiais. Não lhe parece?
A
observação fora feita com tanta graça e bom-senso que Mosier não teve a coragem
de replicar e, recolocando o caderninho no bolso, resmungou:
-
Está bem, está bem... - por esta vez passa. Mas está avisado e tome cuidado
para que isso não se repita!
O
viajante, feliz por livrar-se daquela confusão, não sabendo como demonstrar sua
gratidão à graciosa jovem que tomara a sua defesa, tirou da maleta um belo
colar de prata, artisticamente trabalhado e estendeu-o a Maria "Flor de
Amor", dizendo:
-
Tenha a bondade de aceitar isto como uma lembrança minha, senhorita!
A
jovem se retraiu, mas como o outro insistisse, tirou uma cédula da bolsa e,
segurando o colarzinho, colocou-a na mão do indivíduo.
-Deixe-me
recompensá-lo, pelo menos em parte, pelo seu belo presente, senhor Gerlich!
Isaac
olhou espantado para a cédula.
-
Mas, o colar vale muito menos do que isso, senhorita!
-
Não é verdade. Você o ofereceu com o coração e, aos meus olhos, isto aumenta e
muito o seu valor!
O
pobre homem, ao ouvir aquelas palavras tão bondosas, ficou tão confuso que não soube
mais o que dizer. Em seguida, como Maria "Flor de Amor" e os dois
oficiais se afastassem, exclamou de um fôlego:
-
Deus a abençoe, bela jovem! Tenho certeza de que a Inglaterra a receberá como
merece e lhe dará todos os seus dons! De qualquer forma, se precisar de Isaac
Gerlich, não se esqueça: estarei sempre à sua disposição! Se estiver em Londres
e precisar de mim, não hesite: estarei trabalhando com o negociante Grene, Laur
Street, 221, lembre-se!
Para
não desgostá-lo, tanta era a sua vontade de ser útil, Maria "Flor de
Amor" garantiu-lhe que em caso de necessidade, faria o que ele lhe dizia.
A
visita à terceira classe entristeceu um pouco Maria "Flor de Amor"
que, na sua bondade, desejaria que todos gozassem do luxo e dos privilégios
reservados às pessoas mais abastadas e em condições de pagar passagens mais
caras.
Ao
mesmo tempo, não podia deixar de agradecer a Luís Paulo, por lhe ter dado,
embora de modo tão brutal, aquela quantia, que ela prometia a si mesma
restituir o mais depressa possível. Suas possibilidades financeiras haviam-lhe
permitido viajar com bastante comodidade.
Enquanto
Maria "Flor de Amor" e os dois oficiais se aproximavam da escadinha
que os levaria novamente para o convés da segunda classe, os olhos da moça caíram
sobre uma jovem senhora, de estranha beleza, que estava sentada junto ao
parapeito do navio, com a cabeça apoiada na palma da mão e com expressão de
grande sofrimento.
Trajava
um vestido azul-marinho, de corte elegante, mas que devia ter sido muito usado,
já que estava descosido em alguns lugares e bastante desbotado.
Maria
contemplou a moça longamente e depois, voltando-se para o tenente Mosier, que
seguira a direção de seu olhar, perguntou:
-
Conhece aquela moça?
-
Confesso que gostaria de conhecer! - afirmou imediatamente o galante oficial...
- Mas não se esqueça de que há mais de trezentos passageiros no navio e eu não
posso conhecer todos. Em todo caso, parece-me que a notei na hora da partida...
-
Ela viaja sozinha?
-
Bem, se me recordo, não tinha ninguém a acompanhá-la.
Pedro
Vaillant, que também observara a passageira, comentou:
-
Não creio que se sinta muito bem...
-
É mesmo? - perguntou Maria "Flor de Amor", sempre piedosa e logo
preocupada.
-
Mas trata-se de pouca coisa - explicou o oficial com um sorriso - o mal de mar
é muito frequente a bordo de um navio.
-
Mas, se ela desmaiar?
-
Oh, não há perigo! Dentro de um dia ou dois, ela se acostuma e não pensará mais
nisso.
-
Não se pode fazer nada para curá-la?
-
Não há muito tratamento para isso - respondeu o tenente Mosier - e o mais
habitual é deitar-se na cama e esperar que passe. Em todo caso, creio que ela
prefere ficar ao ar livre: os beliches da terceira classe são pouco
confortáveis.
Aquelas
explicações não tranquilizaram a Maria "Flor de Amor", a qual, depois
de pedir licença aos dois oficiais, aproximou-se da passageira que, procurando
evidentemente um pouco de alívio para o distúrbio que a atormentava,
levantara-se e, agarrando-se ao parapeito com uma das mãos, respirava o ar
salgado a plenos pulmões. Maria "Flor de Amor" foi a primeira a
falar, dizendo:
-
Desculpe-me se lhe dirijo a palavra, embora não tenha o prazer de conhecê-la,
mas tenho a impressão de que não se sente bem... Ou estou enganada?
A
outra estendeu a mão e respondeu, sorrindo fracamente:
-
Meu nome é Clara Villiers e garanto-lhe que não se engana, realmente. Sinto-me
um tanto... Aturdida. Talvez seja em consequência da navegação e do calor
também...
Maria
"Flor de Amor" deu seu nome, por sua vez, e acrescentou ingenuamente:
-
Um oficial me disse ainda há pouco que o melhor tratamento para o mal de mar é
deitar-se na cama e esperar que passe.
Mas
Clara balançou subitamente a cabeça adornada de belos cabelos escuros.
-
Acho que não me será possível adotar esse tratamento! Estou numa cabina com
várias outras moças e faz um calor terrível! Prefiro continuar com o mal de
mar... Por outro lado, conversar com a senhorita já me aliviou bastante!
Maria
"Flor de Amor" sorriu docemente.
-
Fico encantada em saber que minha companhia lhe faz bem, mas se estiver com
vontade de ficar só, pode dizer, que eu me retiro imediatamente!
-
Acho que isso não vai acontecer! Sinto-me tão sozinha!
As
duas moças, irmanadas por aquela longa viagem que as obrigava a permanecerem
vários dias no mesmo navio, começaram assim a passear juntas, trocando
confidências sobre a vida passada.
Maria
"Flor de Amor", com a sua bondade e a sua gentileza, fora feita para
conquistar a simpatia alheia e Clara também. Ela revelou imediatamente possuir
ótimo caráter e ser sumamente cordial e franca, tanto que a certo ponto,
parando de repente, e passando um braço pelo de sua companheira, disse:
-
Querida Maria "Flor de Amor", já sinto um grande afeto por você, que
me inspira tanta simpatia e tenho a impressão de ter encontrado quase a irmã
que procurava há tanto tempo! Nunca me aconteceu conhecer uma pessoa que
tivesse tanta comunhão de ideias e de sentimentos comigo!
-
Também estou gostando muito de você - disse Maria "Flor de Amor", por
sua vez - e estou certa de que ficaremos muito amigas, se bem que eu, no
momento, não conheça quase nada, nem de você nem de seu passado. Quanto a mim,
vou diretamente para a Inglaterra, com a esperança de arranjar um emprego e,
sobretudo, aquela tranquilidade que não pude achar na minha pátria, por muitos
e dolorosos motivos!
-
Também me acho nas mesmas condições - admitiu logo Clara - embora não acredite
ser muito adaptada ao trabalho... Não é que me falte vontade, mas não possuo
muita habilidade...
-
Realmente - concordou Maria "Flor de Amor" – fiquei muito admirada
quando a vi no meio daquela multidão de cosmopolitas da terceira classe e que
não me parece muito adequada à sua condição social.
-
Infelizmente, eu só tinha o dinheiro suficiente para uma passagem de terceira
classe...
Maria
"Flor de Amor" refletiu um instante e depois disse com ar decidido:
-
Clara, tenho uma cabina pequena, onde há dois leitos que podemos muito bem
ocupar juntas. Fica na segunda classe - e como está bem arejada, isso aliviará
um pouco o seu enjoo. Que me diz de vir comigo?
-
Mas... Não vou incomodar?
-
Muito pelo contrário! Sinto-me tão só e não me parece verdade poder ter uma
companheira de viagem!
Clara
Villiers estava realmente confusa e comovida com aquele oferecimento tão
gentil.
-
Não faça cerimônias, insistiu Maria "Flor de Amor" - pode mandar
trazer agora mesmo as suas malas para a minha cabina!
Desta
vez, Clara corou violentamente e hesitou antes de responder:
-
Não sei como lhe agradecer, Maria "Flor de Amor". Se quiser, posso ir
imediatamente com você, porque, como bagagem, só tenho a bolsa com o
passaporte, os documentos necessários e a passagem.
-
Mas como? Não tem malas? Nada?
-
Não, não tenho mesmo nada...
Maria
"Flor de Amor", ao ouvir isso, não pôde disfarçar o seu espanto.
Parecia-lhe muito estranho que uma moça tão jovem e bela tivesse deixado Nova
Orleans sem levar nada consigo!
Que
mistério envolveria a vida daquela moça, aparentemente de ótima família,
obrigada a viajar na terceira classe, entre pessoas que não pertenciam à sua
condição social? Clara, um pouco desgostosa, abaixava a cabeça, sem ousar
levantar os olhos.
Sua
atitude foi suficiente para que Maria "Flor de Amor", arrependida imediatamente
de ter revelado seu espanto, lhe dissesse:
-
Afinal de contas, não é tão mau assim viajar sem malas: fica-se com maior
liberdade! E eu, ao mesmo tempo, terei uma ótima oportunidade de provar-lhe o
quanto gosto de você, colocando tudo que possuo à sua disposição! Não é muito,
mas já que temos o mesmo manequim, creio que será o suficiente.
Dizendo
isto, a moça passou o braço pela cintura de sua nova amiga e a levou consigo
para a extremidade do convés, onde teriam que passar da terceira para a segunda
classe.
Ali,
porém, um obstáculo aparentemente intransponível se interpôs ao generoso e
hospitaleiro propósito de Maria "Flor de Amor".
Um
criado de bordo deteve as duas moças, pedindo-lhes que mostrassem as suas
passagens.
Quanto
a Maria "Florde Amor", estava tudo em ordem, mas quanto a Clara, não podia
passar para a segunda classe com sua passagem de terceira, mesmo como convidada
de uma passageira.
E
assim Clara, desanimada, ia despedir-se de sua amiga e retornar à sua cabina
cheia e quente, quando Maria "Flor de Amor" teve uma idéia e disse
decididamente ao criado de bordo:
-
Por favor, não poderia chamar o senhor Júlio Mosier? É o oficial deste navio.
-
Mas, realmente, acho que ele está de serviço agora...
-
Por favor!
O
tom da jovem era tão suplicante e humilde que o criado, embora balançando a
cabeça em sinal de desaprovação, murmurou:
-
Está bem... Espere um momento.
Pouco
depois, Júlio Mosier surgiu no convés e, avistando Maria "Flor de
Amor" que o esperava, sorriu lisonjeado, perguntando-lhe o que desejava e
declarando-se à sua inteira disposição.
-
Trata-se de um pequeno favor...
-
Se estiver nas minhas possibilidades, pode contar com ele!
-
Trata-se desta minha amiga, Clara Villiers. Tem uma passagem de terceira
classe, mas eu quero que ela passe para a segunda.
-
Mas não é possível, enquanto o navio está navegando... Além do mais, não há
mais um lugar vago.
-
Se for por isso, estou disposta a colocá-la na minha cabina!
O
oficial olhou em volta com ar pensativo.
-
Existe um regulamento, senhorita Maria...
-
Mas minha amiga está passando mal. Não pode continuar viajando na terceira
classe!
Júlio
Mosier olhou bem para o rosto de Clara Villiers e, como um francês sempre
disposto a render homenagens à beleza, inclinou-se obsequiosamente.
-
Temo que seja obrigado a capitular - decidiu-se - seria um crime separar as
duas moças mais lindas do navio! Bem, verei o que posso fazer. Mas penso que
será preciso pagar uma diferença...
-
Quanto a isso, não se preocupe! Eu pagarei tudo! – garantiu Maria "Flor de
Amor".
E
o caso estava resolvido.
Meia
hora depois, as duas moças, graças à intervenção de Júlio Mosier e a uma
quantia paga por Maria "Flor de Amor", entravam na cabina desta
última, felizes por poderem prosseguir juntas a longa viagem.
Na
hora do almoço, não querendo descer ao salão, fizeram levar a refeição na
cabina e, tranquilas, até mesmo felizes comeram e conversaram animadamente.
As
duas moças já se sentiam unidas por uma grande amizade, daquele tipo que liga
duas pessoas que sofreram golpes cruéis de um destino adverso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário