domingo, 3 de março de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 25 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Capítulo XXV

LONGE DA PÁTRIA E LONGE DO AMOR

O navio "Saint Pierre" saiu do porto de Nova Orleans, rumando para Liverpool, onde finalizaria sua viagem. O mar estava calmo. Os raios de sol se espelhavam nas águas plácidas, que pareciam um imenso manto azul perfeitamente imóvel, que se estendia a perder de vista.
Todos os viajantes se encontravam no convés, gozando o saudável ar do mar. O navio, navegando a todo o vapor, deixava atrás de si um sulco profundo de espuma. Entre os passageiros do convés da segunda classe, um pouco desambientada no meio de tantas pessoas de várias nacionalidades, estava Maria "Flor de Amor". O ar do mar despenteava seus cabelos louros, proporcionando-lhe, porém, um imenso relaxamento, quase alívio.
O grande passo estava dado e a jovem partira e já se achava longe de sua terra, daquele que amara e pelo qual tanto sofrera. Que importava, agora, chegar a um país estranho, sem uma recomendação, ao sabor da aventura? A Inglaterra! Encontraria ainda a maldade dos homens que, infelizmente, já conhecera na sua pátria? Acostumar-se-ia aos hábitos de um povo que não era o seu? A pobre Maria "Flor de Amor" já se sentia submetida voluntariamente a uma dura prova! A jovem ergueu o rosto, deixando-o ser acariciado pelo vento. Podiam vir os obstáculos, a adversidade - pensava - a luta lhe faria bem e a ajudaria a esquecer a sua grande dor. Uma lágrima caiu, ao pensar em tudo por que passara e ela, num gesto mecânico, ergueu a mão para enxugá-la. Logo após, uma voz cálida e tranquila fez-se ouvir ao seu lado:
- Não fique triste! A impressão que se tem ao ver desaparecer o último pedaço da terra em que se nasceu é realmente desagradável... Mas o oceano não é tão mau e áspero como parece, afinal. Garanto-lhe que podemos confiar nele sem temor!
Maria "Flor de Amor", um tanto curiosa, voltou-se para quem falara. E avistou assim, diante de si, um homem alto, forte, de rosto bronzeado pelo sol e cujos cabelos grisalhos, cortados muito curtos, davam um ar de saúde e força. Maria "Flor de Amor" imaginou que fosse um compatriota, pelo modo como falara seu idioma e isso, naquele momento, comoveu-a. O indivíduo não devia ser um passageiro, mas um componente da tripulação, pois estava uniformizado e usava divisas no braço.
- Como pôde adivinhar a minha nacionalidade? - perguntou Maria "Flor de Amor" com curiosidade.
- É uma questão de hábito. - respondeu o outro modestamente - depois de navegar durante muitos anos adquire-se, por assim dizer, um olho clínico!
- Mas o senhor fala o meu idioma com perfeição!
- Se bem, que tenha sido obrigado, após tanto cruzar os mares, a aprender vários idiomas, confesso que esta é a minha língua natal! Mas, sabe? Comecei a viajar quando menino, depois vieram as guerras... E agora, nem me recordo sequer como é feita a pequena aldeia da Louisiana em que nasci! Espero que me perdoe...
- Mas é claro que sim!
O oficial inclinou-se cortesmente.
- Permita-me apresentar-me. Meu nome é Pedro Vaillant e, como deve ter visto pelo meu uniforme, sou oficial a bordo neste navio.
Maria "Flor de Amor" estendeu a mãozinha branca e fina, que o outro tomou delicadamente na sua grande e forte.
- Eu sou Maria Aubert - disse ela - e estou contente por ter-me dirigido a palavra, já que não conheço ninguém a bordo deste navio... E isso me intimida muito, confesso.
O rosto simpático de Pedro Vaillant se abriu novamente em um sorriso que pareceu rejuvenescê-lo.
- Mas eu temo que tenha encontrado um indivíduo não muito adequado para fazer-lhe companhia! Veja, sou um daqueles ursos marinhos da velha guarda, que só descem à terra em casos excepcionais e que só se sentem bem na ponte de comando. Creio que se precisasse ficar muito tempo no porto, acabaria sofrendo de mal de terra!
O antigo oficial riu da sua pilhéria e apertou novamente a mão de Maria "Flor de Amor", desta vez um pouco mais forte do que o normal. A moça fez uma careta e não pôde deixar de dizer:
- Que mão forte!
Pedro Vaillant, mortificado, largou-a imediatamente.
- Desculpe-me, por favor! Não estou acostumado a apertar mãos tão delicadas e a fazer cumprimentos! Acho que este é um dos motivos pelos quais nunca serei capitão, sabe? Machuquei-a?
- Oh, não foi nada! Não precisa desculpar-se.
Mais tranquilo, o velho colosso exclamou:
- Sabe de uma coisa? É a moça mais linda que eu já vi! E olhe que tenho girado pelo mundo!
Maria "Flor de Amor" corou e abaixou os olhos.
- O senhor disse que não sabia fazer elogios...
- Mas isto não é um elogio, é a pura verdade e eu posso fazê-lo, porque poderia ser seu pai. Então, vai para a Inglaterra?
- Vou, sim...
- Não fala com muito entusiasmo, pelo que vejo! No entanto, é um país lindo, interessante, histórico.
Maria "Flor de Amor" se agitou um tanto encabulada e encarou o oficial. Seu olhar límpido e puro, de eterna criança, inspirou-lhe confiança.
- É que... Não conheço ninguém naquele país - confessou.
- Mas como?! Vai assim para lá, ao sabor da aventura?
- Exatamente...
- Bem, então me permita dizer-lhe que não terá uma vida muito fácil! Não o digo para desencorajá-la, veja bem!
- Que está querendo dizer? - perguntou Maria "Flor de Amor" assustada.
- Oh, nada de mal! - apressou-se a tranquilizá-la o oficial. - Só queria que soubesse que na Inglaterra existem cavalheiros muito galantes, que apreciam muito as moças bonitas. Terá que defender-se do assédio de milhares de admiradores, só isso!
Maria "Flor de Amor" deu de ombros levemente, a fim de dissimular a sua inquietação.
- Agradeço-lhe pelo aviso - disse ela - mas podemos evitar certos perigos, contanto que não os procuremos de propósito!
- Aprecio o seu bom-senso! - exclamou jovialmente Vaillant. - Isso merece um prêmio. Permite que lhe ofereça algo para beber no bar? Oh, não se preocupe, não será nada especial nem dispendioso: não sou um homem rico!
Um pouco mais tarde, estendendo a Maria "Flor de Amor" um copo grande de suco de laranja, diante do balcão brilhante do bar, o bondoso Vaillant exclamava com sua voz de barítono:
- À nossa amizade, senhorita Maria Aubert! Desejo-lhe uma ótima travessia!
Ainda não acabara de falar, quando uma voz alegre ressoou as suas costas:
- Que é isso, Vaillant, já está bebendo a esta hora?Oh, suco de laranja! Vai indo bem, pelo que vejo!
- Pronto, já começam as apresentações! - disse o velho lobo do mar, olhando para o jovem oficial que falara e cujo rosto se iluminava por uma fileira de dentes alvíssimos descobertos por um sorriso. - Senhorita Maria, por mais que pareça estranho, devido à evidente diferença de idade que existe entre nós, apresento-lhe o meu superior: o tenente Júlio Mosier. Tem a vantagem de ser formado em engenharia, o que não é pouco, garanto. E é francês.
O recém-chegado fez continência.
- Já tive o prazer de vê-la entre os passageiros - disse ele - se bem que não me tenha notado, naturalmente. Confesso que daquele momento em diante eu me senti completamente tranquilo, com uma beldade a bordo, disse para mim mesmo: nada de mal pode acontecer!
- Que foi que eu lhe disse? - falou Vaillant, sorrindo para Maria "Flor de Amor". - Ele é francês, o que é sinônimo de galanteria! Não posso impedi-lo de cortejar a senhorita, Tenente, mas prometa que vai comportar-se bem, ela está sob a minha proteção!
- E isto para mim significa que ela é absolutamente sagrada! - disse o rapaz, sorrindo. Depois acrescentou, dirigindo-se a Maria: - Aceita, pelo menos, meu convite para visitar o navio? Garanto-lhe que é um ótimo e interessante passatempo.
- O senhor é muito gentil! - aceitou logo Maria "Flor de Amor", que se sentia mais consolada, ao pensar que encontrara dois oficiais honestos. - Acho que depois terei menos medo deste navio tão grande!
Maria "Flor de Amor", sob a direção de Mosier e de Vaillant, não se fartava de admirar os grandes salões mobiliados com luxo, principalmente os da primeira classe, reluzentes de espelhos e de cristais preciosos. A segunda classe também era acolhedora e elegante.
Depois de visitar o navio inteiro, desde as salas de máquinas até as cozinhas, Maria "Flor de Amor" pediu ao jovem tenente que a levasse ao convés de terceira classe, onde se achavam os viajantes mais pobres. De repente, enquanto caminhava junto à amurada, a moça sentiu alguém tocar em seu braço e voltou-se instantaneamente, imitada pelos seus dois acompanhantes.
Quem lhe tocara era um homem de uns trinta anos de aspecto quase normal até a cintura.  Tinha duas pernas miseravelmente raquíticas, sobre as quais se sustentava a custo. Apesar da idade, o desconhecido era quase totalmente calvo e as suas feições, com um grande nariz aquilino, tinham algo estranho e impressionante.
- Senhorita - disse o homem abrindo uma maleta muito usada que levava sob o braço - quer comprar alguma coisa? Veja, tenho colares, medalhinhas, anéis, tudo de prata, mas lindo. Que me diz?
Maria "Flor de Amor", espantada com a aparência do estranho indivíduo, permaneceu muda e indecisa... Por sua vez, Vaillant se dirigiu severamente ao vendedor e lhe disse:
- Não sabe que é proibido vender enquanto o navio está em alto-mar?
- Não sei o porquê - protestou o homenzinho - paguei minha passagem como todos os outros. Que mal existe em tentar recuperar algo com um negócio honesto?
- Como se chama? - perguntou Júlio Mosier, tirando um caderninho do bolso.
- Isaac Gerlich, senhor oficial! - respondeu assustado. - Mas asseguro-lhe que não estou fazendo nada de mal! Minha mercadoria está toda aqui, como pode ver!
- Sabe que eu poderia apreendê-la?
Isaac apertou a maleta amorosamente contra o peito.
- Não, por favor! É tudo que possuo!
Apiedada, Maria "Flor de Amor" interveio:
-Seja gentil, tenente, perdoe por esta vez. É evidente que ele não sabia que estava contrariando o regulamento de bordo, caso contrário não se arriscaria a oferecer sua mercadoria diante de dois oficiais. Não lhe parece?
A observação fora feita com tanta graça e bom-senso que Mosier não teve a coragem de replicar e, recolocando o caderninho no bolso, resmungou:
- Está bem, está bem... - por esta vez passa. Mas está avisado e tome cuidado para que isso não se repita!
O viajante, feliz por livrar-se daquela confusão, não sabendo como demonstrar sua gratidão à graciosa jovem que tomara a sua defesa, tirou da maleta um belo colar de prata, artisticamente trabalhado e estendeu-o a Maria "Flor de Amor", dizendo:
- Tenha a bondade de aceitar isto como uma lembrança minha, senhorita!
A jovem se retraiu, mas como o outro insistisse, tirou uma cédula da bolsa e, segurando o colarzinho, colocou-a na mão do indivíduo.
-Deixe-me recompensá-lo, pelo menos em parte, pelo seu belo presente, senhor Gerlich!
Isaac olhou espantado para a cédula.
- Mas, o colar vale muito menos do que isso, senhorita!
- Não é verdade. Você o ofereceu com o coração e, aos meus olhos, isto aumenta e muito o seu valor!
O pobre homem, ao ouvir aquelas palavras tão bondosas, ficou tão confuso que não soube mais o que dizer. Em seguida, como Maria "Flor de Amor" e os dois oficiais se afastassem, exclamou de um fôlego:
- Deus a abençoe, bela jovem! Tenho certeza de que a Inglaterra a receberá como merece e lhe dará todos os seus dons! De qualquer forma, se precisar de Isaac Gerlich, não se esqueça: estarei sempre à sua disposição! Se estiver em Londres e precisar de mim, não hesite: estarei trabalhando com o negociante Grene, Laur Street, 221, lembre-se!
Para não desgostá-lo, tanta era a sua vontade de ser útil, Maria "Flor de Amor" garantiu-lhe que em caso de necessidade, faria o que ele lhe dizia.
A visita à terceira classe entristeceu um pouco Maria "Flor de Amor" que, na sua bondade, desejaria que todos gozassem do luxo e dos privilégios reservados às pessoas mais abastadas e em condições de pagar passagens mais caras.
Ao mesmo tempo, não podia deixar de agradecer a Luís Paulo, por lhe ter dado, embora de modo tão brutal, aquela quantia, que ela prometia a si mesma restituir o mais depressa possível. Suas possibilidades financeiras haviam-lhe permitido viajar com bastante comodidade.
Enquanto Maria "Flor de Amor" e os dois oficiais se aproximavam da escadinha que os levaria novamente para o convés da segunda classe, os olhos da moça caíram sobre uma jovem senhora, de estranha beleza, que estava sentada junto ao parapeito do navio, com a cabeça apoiada na palma da mão e com expressão de grande sofrimento.
Trajava um vestido azul-marinho, de corte elegante, mas que devia ter sido muito usado, já que estava descosido em alguns lugares e bastante desbotado.
Maria contemplou a moça longamente e depois, voltando-se para o tenente Mosier, que seguira a direção de seu olhar, perguntou:
- Conhece aquela moça?
- Confesso que gostaria de conhecer! - afirmou imediatamente o galante oficial... - Mas não se esqueça de que há mais de trezentos passageiros no navio e eu não posso conhecer todos. Em todo caso, parece-me que a notei na hora da partida...
- Ela viaja sozinha?
- Bem, se me recordo, não tinha ninguém a acompanhá-la.
Pedro Vaillant, que também observara a passageira, comentou:
- Não creio que se sinta muito bem...
- É mesmo? - perguntou Maria "Flor de Amor", sempre piedosa e logo preocupada.
- Mas trata-se de pouca coisa - explicou o oficial com um sorriso - o mal de mar é muito frequente a bordo de um navio.
- Mas, se ela desmaiar?
- Oh, não há perigo! Dentro de um dia ou dois, ela se acostuma e não pensará mais nisso.
- Não se pode fazer nada para curá-la?
- Não há muito tratamento para isso - respondeu o tenente Mosier - e o mais habitual é deitar-se na cama e esperar que passe. Em todo caso, creio que ela prefere ficar ao ar livre: os beliches da terceira classe são pouco confortáveis.
Aquelas explicações não tranquilizaram a Maria "Flor de Amor", a qual, depois de pedir licença aos dois oficiais, aproximou-se da passageira que, procurando evidentemente um pouco de alívio para o distúrbio que a atormentava, levantara-se e, agarrando-se ao parapeito com uma das mãos, respirava o ar salgado a plenos pulmões. Maria "Flor de Amor" foi a primeira a falar, dizendo:
- Desculpe-me se lhe dirijo a palavra, embora não tenha o prazer de conhecê-la, mas tenho a impressão de que não se sente bem... Ou estou enganada?
A outra estendeu a mão e respondeu, sorrindo fracamente:
- Meu nome é Clara Villiers e garanto-lhe que não se engana, realmente. Sinto-me um tanto... Aturdida. Talvez seja em consequência da navegação e do calor também...
Maria "Flor de Amor" deu seu nome, por sua vez, e acrescentou ingenuamente:
- Um oficial me disse ainda há pouco que o melhor tratamento para o mal de mar é deitar-se na cama e esperar que passe.
Mas Clara balançou subitamente a cabeça adornada de belos cabelos escuros.
- Acho que não me será possível adotar esse tratamento! Estou numa cabina com várias outras moças e faz um calor terrível! Prefiro continuar com o mal de mar... Por outro lado, conversar com a senhorita já me aliviou bastante!
Maria "Flor de Amor" sorriu docemente.
- Fico encantada em saber que minha companhia lhe faz bem, mas se estiver com vontade de ficar só, pode dizer, que eu me retiro imediatamente!
- Acho que isso não vai acontecer! Sinto-me tão sozinha!
As duas moças, irmanadas por aquela longa viagem que as obrigava a permanecerem vários dias no mesmo navio, começaram assim a passear juntas, trocando confidências sobre a vida passada.
Maria "Flor de Amor", com a sua bondade e a sua gentileza, fora feita para conquistar a simpatia alheia e Clara também. Ela revelou imediatamente possuir ótimo caráter e ser sumamente cordial e franca, tanto que a certo ponto, parando de repente, e passando um braço pelo de sua companheira, disse:
- Querida Maria "Flor de Amor", já sinto um grande afeto por você, que me inspira tanta simpatia e tenho a impressão de ter encontrado quase a irmã que procurava há tanto tempo! Nunca me aconteceu conhecer uma pessoa que tivesse tanta comunhão de ideias e de sentimentos comigo!
- Também estou gostando muito de você - disse Maria "Flor de Amor", por sua vez - e estou certa de que ficaremos muito amigas, se bem que eu, no momento, não conheça quase nada, nem de você nem de seu passado. Quanto a mim, vou diretamente para a Inglaterra, com a esperança de arranjar um emprego e, sobretudo, aquela tranquilidade que não pude achar na minha pátria, por muitos e dolorosos motivos!
- Também me acho nas mesmas condições - admitiu logo Clara - embora não acredite ser muito adaptada ao trabalho... Não é que me falte vontade, mas não possuo muita habilidade...
- Realmente - concordou Maria "Flor de Amor" – fiquei muito admirada quando a vi no meio daquela multidão de cosmopolitas da terceira classe e que não me parece muito adequada à sua condição social.
- Infelizmente, eu só tinha o dinheiro suficiente para uma passagem de terceira classe...
Maria "Flor de Amor" refletiu um instante e depois disse com ar decidido:
- Clara, tenho uma cabina pequena, onde há dois leitos que podemos muito bem ocupar juntas. Fica na segunda classe - e como está bem arejada, isso aliviará um pouco o seu enjoo. Que me diz de vir comigo?
- Mas... Não vou incomodar?
- Muito pelo contrário! Sinto-me tão só e não me parece verdade poder ter uma companheira de viagem!
Clara Villiers estava realmente confusa e comovida com aquele oferecimento tão gentil.
- Não faça cerimônias, insistiu Maria "Flor de Amor" - pode mandar trazer agora mesmo as suas malas para a minha cabina!
Desta vez, Clara corou violentamente e hesitou antes de responder:


- Não sei como lhe agradecer, Maria "Flor de Amor". Se quiser, posso ir imediatamente com você, porque, como bagagem, só tenho a bolsa com o passaporte, os documentos necessários e a passagem.
- Mas como? Não tem malas? Nada?
- Não, não tenho mesmo nada...
Maria "Flor de Amor", ao ouvir isso, não pôde disfarçar o seu espanto. Parecia-lhe muito estranho que uma moça tão jovem e bela tivesse deixado Nova Orleans sem levar nada consigo!
Que mistério envolveria a vida daquela moça, aparentemente de ótima família, obrigada a viajar na terceira classe, entre pessoas que não pertenciam à sua condição social? Clara, um pouco desgostosa, abaixava a cabeça, sem ousar levantar os olhos.
Sua atitude foi suficiente para que Maria "Flor de Amor", arrependida imediatamente de ter revelado seu espanto, lhe dissesse:
- Afinal de contas, não é tão mau assim viajar sem malas: fica-se com maior liberdade! E eu, ao mesmo tempo, terei uma ótima oportunidade de provar-lhe o quanto gosto de você, colocando tudo que possuo à sua disposição! Não é muito, mas já que temos o mesmo manequim, creio que será o suficiente.
Dizendo isto, a moça passou o braço pela cintura de sua nova amiga e a levou consigo para a extremidade do convés, onde teriam que passar da terceira para a segunda classe.
Ali, porém, um obstáculo aparentemente intransponível se interpôs ao generoso e hospitaleiro propósito de Maria "Flor de Amor".
Um criado de bordo deteve as duas moças, pedindo-lhes que mostrassem as suas passagens.
Quanto a Maria "Florde Amor", estava tudo em ordem, mas quanto a Clara, não podia passar para a segunda classe com sua passagem de terceira, mesmo como convidada de uma passageira.
E assim Clara, desanimada, ia despedir-se de sua amiga e retornar à sua cabina cheia e quente, quando Maria "Flor de Amor" teve uma idéia e disse decididamente ao criado de bordo:
- Por favor, não poderia chamar o senhor Júlio Mosier? É o oficial deste navio.
- Mas, realmente, acho que ele está de serviço agora...
- Por favor!
O tom da jovem era tão suplicante e humilde que o criado, embora balançando a cabeça em sinal de desaprovação, murmurou:
- Está bem... Espere um momento.
Pouco depois, Júlio Mosier surgiu no convés e, avistando Maria "Flor de Amor" que o esperava, sorriu lisonjeado, perguntando-lhe o que desejava e declarando-se à sua inteira disposição.
- Trata-se de um pequeno favor...
- Se estiver nas minhas possibilidades, pode contar com ele!
- Trata-se desta minha amiga, Clara Villiers. Tem uma passagem de terceira classe, mas eu quero que ela passe para a segunda.
- Mas não é possível, enquanto o navio está navegando... Além do mais, não há mais um lugar vago.
- Se for por isso, estou disposta a colocá-la na minha cabina!
O oficial olhou em volta com ar pensativo.
- Existe um regulamento, senhorita Maria...
- Mas minha amiga está passando mal. Não pode continuar viajando na terceira classe!
Júlio Mosier olhou bem para o rosto de Clara Villiers e, como um francês sempre disposto a render homenagens à beleza, inclinou-se obsequiosamente.
- Temo que seja obrigado a capitular - decidiu-se - seria um crime separar as duas moças mais lindas do navio! Bem, verei o que posso fazer. Mas penso que será preciso pagar uma diferença...
- Quanto a isso, não se preocupe! Eu pagarei tudo! – garantiu Maria "Flor de Amor".
E o caso estava resolvido.
Meia hora depois, as duas moças, graças à intervenção de Júlio Mosier e a uma quantia paga por Maria "Flor de Amor", entravam na cabina desta última, felizes por poderem prosseguir juntas a longa viagem.
Na hora do almoço, não querendo descer ao salão, fizeram levar a refeição na cabina e, tranquilas, até mesmo felizes comeram e conversaram animadamente.
As duas moças já se sentiam unidas por uma grande amizade, daquele tipo que liga duas pessoas que sofreram golpes cruéis de um destino adverso.

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