O
conto que reproduzimos abaixo é da autoria de Sérgio Faraco.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007_09_01_archive.html.
Boa
leitura!
NÃO
CHORE, PAPAI
Embora
você proibisse, tínhamos combinado: depois da sesta iríamos ao rio e a
bicicleta já estava no corredor que ia dar na rua. Era uma Birmingham que Tia
Gioconda comprara em São Paulo e enlouquecia os piás da vizinhança, que a
pediam para andar na praça e depois, agradecidos, me presenteavam com estampas
do Sabonete Eucalol.
Na
hora da sesta nossa rua era como as ruas de uma cidade morta. Os raros
automóveis pareciam sestear também, à sombra dos cinamomos, e nenhum vivente se
expunha ao fogo das calçadas. Às vezes passava chiando uma carroça e então
alguém, querendo, podia pensar: como é triste a vida de cavalo.
Em
casa a sesta era completa, o cachorro sesteava, o gato, sesteavam as galinhas
nos cantos sombrios do galinheiro. Mariozinho e eu, você mandava, sesteávamos
também, mas naquela tarde a obediência era fingida.
Longe,
longíssimo era o rio, para alcançá-lo era preciso atravessar a cidade, o
subúrbio e um descampado de perigosa solidão. Mas o que e a quem temeríamos, se
tínhamos a Birmingham? Era a melhor bicicleta do mundo, macia de pedalar
coxilha acima e como dava gosto de ouvir, nos lançantes, o delicado sussurro da
catraca!
Tínhamos
a Birmingham, mas era a primeira vez que, no rio, não tínhamos você, por isso
redobrei os cuidados com o mano. Fiz com que sentasse na areia para juntar
seixos e conchinhas e enquanto isso, eu, que era maior e tinha pernas
compridas, entrava n’água até o peito e me segurava no pilar da ponte
ferroviária.
Estava
nu e ali mesmo me deixei ficar, a fruir cada minuto, cada segundo daquela mansa
liberdade, vendo o rio como jamais o vira, tão amável e bonito como teriam
sido, quem sabe, os rios do Paraíso. E era muito bom saber que ele ia dar num
grande rui e este num maior ainda, e que as mesmas águas, dando no mar, iam
banhar terras distantes, tão distantes que nem a Tia Gioconda conhecia.
Eu
viajava nessas águas e cada porto era uma estampa do cheiroso sabonete.
Senhores
passageiros, este é o Taj Mahal, na Índia, e vejam a Catedral de Notre Dame na
capital da França, a Esfinge do Egito, o Partenon da Grécia e esta, senhores
passageiros, é a Grande Muralha da China – isso sem falar nas antigas
maravilhas, entre elas a que eu mais admirava, os Jardins Suspensos que
Nabucodonosor mandara fazer para sua amada, a filha de Ciáxares, que desafeita
ao pó da Babilônia vivia nostálgica das verduras da Média.
E
me prometia viajar de verdade, um dia, quando crescesse, e levar meu irmãozinho
para que não se tornasse, ai que pena, mais um cavalo nas ruas da cidade morta,
e então vi no alto do barranco você e seu Austin.
Comecei
a voltar e perdi o pé e nadei tão furiosamente que, adiante, já braceava no
raso e não sabia. Levantei-me, exausto, você estava à minha frente, rubro e com
as mãos crispadas.
Mariozinho
foi com você no Austin, eu pedalando atrás e adivinhando o outro lado da
ventura: aquele rio que parecia vir do Paraíso ia desembocar no Inferno.
Você
estacionou o carro e mandou o mano entrar. Pôs-se a amaldiçoar Tia Gioconda e,
agarrando a bicicleta, ergueu-a sobre a cabeça e a jogou no chão. Minha
Birmingham, gritei. Corri para levantá-la, mas você se interpôs, desapertou o
cinto e apontou para a garagem, medonho lugar dos meus corretivos.
Sentado
no chão, entre cabeceiras de velhas camas e caixotes de ferragem caseira,
esperei que você viesse. Esperei sem medo, nenhum castigo seria mais doloroso
do que aquele que você já dera. Mas você não veio. Quem veio foi mamãe, com um
copo de leite e um pires de bolachinha-maria. Pediu que comesse e fosse lhe
pedir perdão. E passava a mão na minha cabeça, compassiva e triste.
Entrei
no quarto. Você estava sentado na cama, com o rosto entre as mãos. “Papai”, e
você me olhou como se não me conhecesse ou eu não estivesse ali. “Perdão”,
pedi. Você fez que sim com a cabeça e no mesmo instante dei meia-volta, fui
recolher minha pobre bicicleta, dizendo a mim mesmo, jurando até, que você
podia perdoar quantas vezes quisesse, mas que eu jamais o perdoaria.
Mas
não chore, papai.
Quem,
em menino, desafeito ao pó de sua cidade, sonhou com os Jardins da Babilônia e
outras estampas do Sabonete Eucalol não acha em seu coração lugar para o
rancor. Eu jurei em falso. Eu perdoei você.
Fonte:
http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007_09_01_archive.html
Linda esta história!
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