A
crônica que transcrevemos abaixo é da autoria de Nelson Rodrigues.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar: www.releituras.com/nelsonr_bio.asp.
Boa
leitura!
BOCAGE
NO FUTEBOL
Quando
eu tinha meus cinco, meus seis anos, morava, ao lado de minha casa, um garoto
que era tido e havido como o anticristo da rua. Sua idade regulava com a minha.
E justiça se lhe faça: — não havia palavrão que ele não praticasse. Eu, na
minha candura pânica, vivia cercado de conselhos, por todos os lados: — “Não
brinca com Fulano, que ele diz nome feio!”. E o Fulano assumia, aos meus olhos,
as proporções feéricas de um Drácula, de um Nero de fita de cinema. Mas o tempo
passou. E acabei descobrindo que, afinal de contas, o anjo de boca suja estava
com a razão. Sim, amigos: — cada nome feio que a vida extrai de nós é um
estímulo vital irresistível. Por exemplo: — os nautas camonianos. Sem uma
sólida, potente e jucunda pornografia, um Vasco da Gama, um Colombo, um Pedro Álvares
Cabral não teriam sido almirantes nem de barca da Cantareira. O que os
virilizava era o bom, o cálido, o inefável palavrão.
Mas,
se nas relações humanas em geral, o nome feio produz esse impacto criador e
libertário, que dizer do futebol? Eis a verdade: — retire-se a pornografia do
futebol e nenhum jogo será possível, Como jogar ou como torcer se não podemos
xingar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage. Não o Bocage fidedigno, que
nunca existiu. Para mim, o verdadeiro Bocage é o falso, isto é, o Bocage de
anedota. Pois bem: — está para nascer um jogador ou um torcedor que não seja
bocagiano. O craque brasileiro não sabe ganhar partidas sem o incentivo
constante dos rijos e imortais palavrões da língua. Nós, de longe, vemos os 22
homens correndo em campo, matando-se, agonizando, rilhando os dentes. Parecem dopados
e realmente o estão: — o chamado nome feio é o seu excitante eficaz, o seu
afrodisíaco insuperável.
Exagero?
Nem tanto, nem tanto. A propósito, vou citar aqui o caso de Jaguaré.* No seu
tempo, os clubes não tinham Departamento Médico e um jogador podia andar com a
boca em petição de miséria, desfraldando cáries gigantescas. Assim era Jaguaré:
— não tinha dentes, só cáries. E seu riso sem obturações, docemente alvar, era largo,
permanente e terrível. E acontece o seguinte: — a época de Jaguaré coincidiu
com a infância do profissionalismo. Morria-se de fome no futebol. O sujeito que
tinha para a média, para o pão com manteiga, podia se considerar um
Rockefeller, de tanga, mas Rockefeller.
Até
que, um dia, apareceu por aqui o emissário de um clube estrangeiro. E o homem
esfregou na cara de Jaguaré propostas dignas de um rajá. A princípio, o nosso
patrício opôs uma recusa inexpugnável. Não queria aceitar nem por um decreto.
Acabou cedendo. Andou pela Espanha e até por Paris. Mas era outro, como homem e
como craque. Como jogar sem a pornografia lusobrasileira? Sem as expressões
obscenas que dinamizam, que transfiguram, que iluminam os jogadores?
Traduzi-las seria uma traição. E Jaguaré vivia sob a persistente, a dilacerada
nostalgia dos nomes feios intransportáveis.
Finalmente,
não pôde mais: — voltou correndo para o Brasil. Aqui, agonizou e morreu na mais
horrenda miséria. Mas feliz, porque pôde soltar, no idioma próprio, seus
últimos palavrões terrenos.
[Manchete
Esportiva, 14/1/1956]
*
Jaguaté foi um folclórico goleiro do Vasco no começo dos anos 30.
Fonte:
http://www.faroldoconhecimento.com.br/livros/Educa%C3%A7%C3%A3o%20f%C3%ADsica/Metodologia%20do%20futebol%20e%20do%20futsal/%C3%80_Sombra_das_Chuteiras_Imortais_-_Cr%C3%B4nicas_de_Futebol_-_Nelson_Rodrigues.pdf
Muito boa a crônica, realmente, um palavrão na hora certa, alivia kkkkkk
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