O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXI
VINGANÇA
A
marquesa Renata, antes de sair do hotel, se maquiara de modo a tornar-se
praticamente irreconhecível. Para esse fim, ela possuía uma maleta contendo
tudo que se pudesse desejar para mudar sua fisionomia quase radicalmente. A
cartomante era mestra na arte da maquilagem, que lhe era útil também para
disfarçar o inexorável passar dos anos.
Naquele
dia, por excesso de precaução, ela resolvera ocultar a cor natural de seus
cabelos, cobrindo-os com uma peruca negra. Um par de óculos escuros, que
escondiam o brilho de seus olhos verdes, completava o disfarce. Tranquila como
sempre, ela descia as escadas que levavam ao andar térreo, quando avistou um
rapaz, bastante elegante, se bem que estivesse trajado de modo um tanto
excêntrico, o qual caminhava na sua direção, após cumprimentar amavelmente o
porteiro.
Renata,
impassível, continuou a descer os degraus e quando o homem estava à sua altura,
como tinha a cabeça baixa e seu rosto se escondia sob a aba do chapéu que
usava, deu-lhe um leve encontrão, fazendo com que ele deixasse cair uma das luvas
que estava descalçando. Este, depois de inclinar-se para apanhar a luva,
levantou o rosto para a culpada daquele pequeno incidente, a qual pôde assim
observá-lo à vontade.
-
Perdão - disse Renata rapidamente sem deter-se, embora sentisse sobre si os olhos
do homem, que a fixavam com desconfiança. E logo após, a aventureira disse para
si mesma: "Maldição, mas aquele é mesmo Afonso Houdin em pessoa!... Como
poderia esquecer aquele rosto belo e terrível ao mesmo tempo? E depois, ele tem
um jeito de olhar... Gostaria de saber o que faz aqui. Pelo que sei, ele é
procurado pela polícia. Talvez se aproveite também das vantagens deste hotel,
como aquela, por exemplo, de nunca pedirem os documentos dos fregueses... Em
todo caso, prefiro apurar.”
Renata
se aproximou do porteiro, um indivíduo alto e ressequido, ainda mais sonolento
do que o porteiro noturno e perguntou-lhe:
-
Queria fazer-lhe uma pergunta... Posso confiar no senhor?
O
interpelado sorriu com ar diabólico.
-
Senhora, o fato de eu estar de guarda neste hotel já não lhe parece por si
mesmo uma prova de confiança?
-
É provável - falou a marquesa, impressionada pela prontidão da resposta do
porteiro, o qual devia ser muito mais esperto do que parecia. - Diga-me uma
coisa: o senhor conhece o homem que subiu ainda há pouco?
O
porteiro deu de ombros. Uma pessoa normal se desencorajaria, mas Renata
compreendeu imediatamente o que o indivíduo queria e tirando uma cédula da
bolsa, escorregou-a na mão dele, murmurando:
-
Isto será capaz de refrescar-lhe a memória?
-
Claro que sim! - afirmou o porteiro, examinando antes a cédula para ver se era
falsa - Já o vi por aqui, ontem...
-
E nada mais?
-
Mas como, isso não basta?
-
Ele está sozinho?
O
homem consultou o relógio da portaria. Depois, respondeu:
-
Se estiver esperando a sua... Amiguinha de ontem, devo dizer-lhe que ela está
atrasada meia hora, mais ou menos.
-
Que tipo ela tem? É bonita?
-
Quase tanto quanto a senhora.
A
resposta bastante diplomática valeu ao porteiro uma gorjeta extra de Renata que,
sendo mulher, não era insensível às adulações, viessem de onde viessem. Depois,
a falsa cartomante, já que não havia mais nada para saber, foi até a calçada e,
atravessando a rua, entrou em um barzinho que ficava defronte do hotel e que,
àquela hora, estava quase que totalmente deserto.
Encomendou um aperitivo e sentou-se diante de um espelho que parecia colocado ali a propósito para permitir que ela observasse, sem ser vista, as pessoas que entravam e saíam do "Gardênia Azul".
Encomendou um aperitivo e sentou-se diante de um espelho que parecia colocado ali a propósito para permitir que ela observasse, sem ser vista, as pessoas que entravam e saíam do "Gardênia Azul".
O
garçom acabara de levar-lhe o aperitivo, quando ela reparou que as cortinas de
uma janela do primeiro andar se erguiam levemente e que um homem olhava
atentamente para a rua. Foi coisa de um minuto, mas este tempo bastou para que
Renata adquirisse a certeza de que acabava de ver realmente Afonso Houdin, o
bandido que estava sendo procurado pela polícia.
"Pelo
que vejo... Esta é uma bela oportunidade para ajudar na captura daquele belo
patife!", disse Renata para si mesma, saboreando o seu aperitivo.
"Contudo, acho que Afonso será mais útil a mim em liberdade, do que na
prisão... Quem sabe surgirá a oportunidade de servir-me... É um homem
formidável e sabe ser habilidoso quando quer. Poderá servir-me para dar a lição
que Denise merece. Assim que tiver encontrado um lugar seguro para onde me
mudar, diga o que disser Ubaldo Duroi, farei minha filha passar um mau quarto
de hora!"
"Ingrata!
Quero arruiná-la, palavra de honra!" "Tenho vontade de rir quando
penso na cara do conde Fernando Chanteloup se me desse na cabeça a ideia de levar
sua verdadeira filha para ele!..."
Renata
tomou outro gole do fino copo de cristal e, sem perder de vista a porta do
hotel, continuou a monologar: "E Luís Paulo? Que pensaria? Sabendo que se
casou com uma mulher que não é uma Chanteloup e, sobretudo, que foi noiva de um
delinquente".
Nesse
ínterim, Afonso surgira novamente na janela e desta vez a abrira totalmente
para jogar por ela uma porção de papéis picados que foram cair lentamente na
calçada. Renata percebeu imediatamente que ele rasgara uma carta e que, por
excesso de precaução, com a finalidade de não deixar nada que o comprometesse,
achara bom jogar os pedaços ao vento.
-
Estou mesmo com Sorte! - disse para si, pagando a nota.
-
Quem sabe eu vou descobrir algo interessante!
Pouco
depois, ela saiu para a rua e foi até a porta do hotel. O ar era calmo e os
pedaços de papel branco ainda estavam no mesmo ponto em que haviam caído,
abaixou-se apressadamente, para não dar muito na vista, apanhou quantos pôde.
Mas o porteiro viu-a e, recordando-se da gorjeta generosa que recebera, correu
ao seu encontro, murmurando:
-
Perdeu alguma coisa? - Posso ajudá-la?
-
Não, não... - disse Renata aborrecida e afastando-se - não preciso de nada...
O
letreiro de outro bar surgia mais adiante e ela se dirigiu rapidamente para lá.
Assim
que chegou, sentou-se a uma mesa e, encomendando uma bebida ao acaso, começou a
examinar os pedaços de papel que recolhera. Em alguns, deles encontrou somente
palavras sem significado aparente, porque a letra de quem escrevera não era,
certamente, das mais legíveis, a um certo ponto, porém, soltou uma exclamação
de espanto num dos pedaços de papel, talvez um pouco maior do que os outros,
lia-se claramente um nome por extenso: Denise!
-
Interessante! - murmurou Renata, concentrando-se ainda mais no exame. - Não me
admiraria se a mulher que aquele homem espera fosse justamente a minha filha...
Renata
tentou juntar os outros pedaços de papel, mas tendo perdido os mais
importantes, por causa da intervenção intempestiva do porteiro, não pôde chegar
ao resultado que esperava. Somente depois de ter trabalhado algum tempo,
conseguiu juntar estas palavras: "Na hora combinada..." "Ela
virá!...", murmurou Renata, enquanto um sorriso de triunfo franzia seus
lábios.
"Hoje,
Denise virá procurar Afonso no "Gardênia Azul"... E cairá na
armadilha, como uma idiota, isto é, como a idiota que é!..." A marquesa
astuta ergueu a cabeça e pediu secamente ao garçom que lhe levasse uma folha de
papel de carta e um envelope. Assim que os teve nas mãos, escreveu algumas linhas
rapidamente, pensando: "Esta cartinha fará seu efeito. Luís Paulo, por
mais confiante que seja, ficará transtornado com a notícia e agirá de acordo
com ela..." Quando terminou de escrever, Renata teve que enfrentar o
problema do envio da carta.
Deveria
levar a carta pessoalmente, usando a carruagem que ainda estava estacionada
junto ao hotel? Temia, contudo, ser reconhecida por Denise, se esta a visse,
malgrado a maquiagem.
Outro
temor a levava a agir depressa: notara, ao consultar o relógio do bar, que já
eram quase duas horas da tarde. Poderia ser aquela a hora marcada por Denise,
já que Afonso chegara há bastante tempo. Um tanto incerta, olhou rapidamente em
volta.
Naquele
instante, avistou o barman, um rapaz muito moço ainda, que a um aceno do homem
que se encontrava no caixa, começara a tirar o avental branco que usava. Renata
se aproximou dele com ar decidido e lhe disse:
-
Vai sair agora?
-
Sim, senhora... - disse o outro. - Vou almoçar...
A
marquesa exibiu uma cédula de alto valor.
-
Seria capaz de me prestar um favor, se eu lhe desse este dinheiro?
O
rosto do rapaz se iluminou instantaneamente.
-
Até cem favores, senhora!... Mesmo se ficasse sem almoçar!
-
Temo que assim seja... De qualquer forma, aqui há dinheiro mais que suficiente
para você alugar uma charrete.
-
Para ir aonde?
-
Ao palácio do barão de Rastignac, que fica fora da cidade. Todos poderão
indicar-lhe o local exato, até mesmo o cocheiro...
-
E que devo fazer?
-
Entregar esta carta ao barão Luís Paulo de Rastignac ou a alguém que a entregue
imediatamente a ele. Deve encontrá-lo a esta hora.
-
Está certo, senhora! - disse o rapaz com ar resoluto e pegando o dinheiro -
pode confiar em mim!
Andando
de charrete, o jovem barman chegou rapidamente ao palácio de Rastignac que,
realmente, todos conheciam. Contudo, ao passar pelo portão da mansão e entrar
no jardim, teve que enfrentar o problema de entregar a carta ao barão de
Rastignac.
O
rapaz, por outro lado, estava com pressa de retornar para almoçar, por isso,
quando avistou de longe Rosane, a criada de quarto de Denise, apressou-se a
chamá-la e perguntou:
-
Por favor, onde eu poderia encontrar o barão de Rastignac?
A
moça olhou escandalizada para os trajes modestos do rapaz.
-
Que quer com ele? - perguntou.
-
Preciso... Entregar uma encomenda.
Como
Rosane recebera a ordem de Ubaldo Duroi de referir-lhe, na medida do possível,
tudo o que sucedesse no palácio, insistiu:
-
Que gênero de encomenda? O senhor barão está sempre muito ocupado e não recebe
a não ser com hora marcada! Não o sabia?
Um
pouco intimidado e temendo não poder cumprir a sua tarefa e ganhar honestamente
o dinheiro que Renata lhe dera, o rapaz extraiu a carta do bolso, murmurando:
-
Tenho de entregar esta carta ao senhor barão...
Num
gesto delicado, Rosane tirou-a das mãos do rapaz:
-
Muito bem, eu mesma a entrego.
-
Mas... Vai entregar a ele mesmo?
-
Claro! Acha que vou ficar com ela?
Convencido
pelo olhar indignado da bela moça, o rapaz disse:
-
Então, confio na senhora! Bom dia!
Ao
ficar novamente sozinha, Rosane examinou atentamente a carta, mantendo-a na
palma da mão.
-
Esta carta foi escrita por uma mulher, não há dúvida! - disse ela, observando a
caligrafia. - Talvez interesse a Ubaldo... Entregá-la-ei para ele esta noite no
lugar de sempre.
Depois
de guardar a carta no avental, a moça se encaminhou rapidamente para os
aposentos particulares da baronesinha Denise.
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