O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo XXIII - Parte 2
O SACRIFÍCIO DE MARIA “FLOR DE AMOR”
-
Sim, eu a amei, Maria "Flor de Amor" - prosseguiu o jovem barão de
Rastignac, tentando em vão dominar a sua emoção - amei-a como o que há de mais
belo e de mais puro no mundo.
-
Luís Paulo!...
-
Deixe-me falar!
-
Mas você não sabe!
-
Sei até demais! Você era a minha divindade e melhor seria que estivesse
realmente morta e eu não soubesse de nada! Talvez continuasse adorando sua
imaculada lembrança!
-
Meu amor...
-
Não pronuncie essa frase! Agora só poderei recordar-me de você com desprezo! A
minha divindade ruiu e agora vejo claramente os pedaços do mísero barro de que
você era feita!
Os
olhos de Maria "Flor de Amor" fixaram-se no rapaz e Luís Paulo exigiu
dela:
-
E não me olhe dessa maneira! Houve um tempo em que eu não podia resistir ao seu
olhar sem me sentir enfeitiçado!
Num
gesto desesperado, Luís Paulo passou a mão nos cabelos, enquanto seus olhos se
enchiam de lágrimas.
-
E eu desprezo a mim mesmo, desprezo a minha fraqueza passada!
Sentia
que não poderia mais resistir ao olhar de Maria "Flor de Amor", mas
não se retirava, não queria fazê-lo sem antes lhe dizer tudo o que tinha dentro
de si.
A
moça também se recobrara por um instante de seu terrível abatimento.
Sabia
que estava em jogo a sua felicidade e, mais do que esta, a sua honestidade.
Embora tendo que renunciar ao prazer sublime de ter Luís Paulo para si, sentia
que não podia perder a estima que ele sempre tivera por ela, mesmo que a
julgasse culpada.
Por
um instante, sentiu a tentação de contar-lhe tudo, de esclarecer a situação...
Mas, no momento em que ia pronunciar as palavras decisivas, avistou, atrás das
costas de Luís Paulo e Ubaldo Duroi, o rosto de Denise, imóvel no corredor.
Foi
questão de um segundo... Um segundo que lhe pareceu um século...
"Não
me denuncie! Não revele a verdade!...", diziam os olhos de Denise.
Um
arrepio percorreu o corpo de Maria "Flor de Amor". Uma luta terrível,
demasiadamente grande para ser suportada impavidamente, travava-se dentro dela.
Devia
desmascarar Denise, que pouco antes ela já salvara das mãos assassinas de
Afonso Houdin? Tirara-a então de um perigo para jogá-la em um outro ainda
maior? A que ficaria reduzida sua boa ação? Maria "Flor de Amor",
vacilando, levou a mão ao coração.
Devia
tomar uma decisão! Era questão de salvar a sua honra ou de arruinar para sempre
a de Denise. Que representava aquela mulher para ela? Por que deveria salvá-la
e sacrificar-se pela sua felicidade? Ela já não lhe roubara o amor de Luís
Paulo? Não possuía direitos sobre o homem amado? Ela não era mais infeliz que
Denise? Mesmo que aquela mulher perdesse o homem amado, não ficaria só no
mundo, já que tinha um pai a quem recorrer, pelo qual era amada e que poderia
consolar a sua dor...
Mas
ela, Maria "Flor de Amor", o que possuía? Possuía por único bem, como
única razão de viver, seu amor por Luís Paulo! Se perdesse tudo isso, se não
pudesse esperar mais nada, que lhe restaria no mundo? Não, o sacrifício era
demasiadamente grande! Não podia, não podia fazê-lo! A felicidade de Denise
seria a sua própria e eterna infelicidade!...
Naquele
instante, o barão Luís Paulo, talvez adivinhando que ainda havia incerteza na
jovem, disse:
-
Fale infeliz! Está tudo terminado entre nós, mas não quero condená-la antes de
ouvi-la! Se existe alguma coisa que a desculpe, fale! Conte-me porque se
aproximou de um homem como Afonso Houdin, que é um bandido! Seja sincera, pelo
menos! Talvez, em lugar de ódio, possa sentir compaixão por você! "Mas
tome cuidado, não se cale! Não se cale porque, depois de hoje, nunca mais nos
tornaremos a ver! Nunca mais terá a oportunidade de justificar-se, de trocar
uma só palavra comigo, eu que a amei mais do que tudo no mundo! Se as
recordações ainda valerem alguma coisa para você, conte-me tudo!...
Maria
"Flor de Amor" não tinha forças sequer para respirar.
Bastaria
ir até o corredor, abrir a porta do quarto da marquesa Renata, na qual Denise
se escondera novamente, e tudo estaria terminado para a tresloucada mulher de
Luís Paulo. Seria suficiente que Maria "Flor de Amor" falasse para
triunfar, para ter a felicidade!
Não
havia dúvida alguma: o barão de Rastignac, convencendo-se da indignidade da
esposa, abandoná-la-ia, cheio de desprezo. E, então, tornaria a amá-la...
Atirar-se-ia novamente aos seus pés... E lhe pediria perdão, depois daquela
prova terrível.
Finalmente,
através das nuvens pesadas do seu futuro, tornaria a brilhar o sol prometedor
de felicidade.
Uma
palavra, uma única palavra, podia afastar aquelas nuvens, como um sopro de
vento da primaveral... Maria "Flor de Amor", no entanto, pálida e
aniquilada, não ousava pronunciar a palavra decisiva; nem sequer fazer o gesto
que a salvaria.
Sentia
a proximidade de Denise... Percebia que a infeliz e mentirosa mulher achava-se
pertíssimo dela e mesmo que não a visse naquele instante, percebia a sua
presença, o ar parecia ressoar com as suas preces, implorando piedade.
-
Justifique-se! - gritou Luís Paulo com impaciência.
-
Espere, pelo amor de Deus! - implorou Maria "Flor de Amor" no limite
de suas forças. - Dê-me tempo para pensar.
-
Não! Você quer tempo para inventar uma mentira! Deve falar agora!
Imediatamente!...
-
Mas eu...
O
barão Luís Paulo, voltando-lhe as costas, disse à jovem, com acento de
desprezo:
-
Você não tem nada a dizer! Não tem sequer a coragem de afirmar que foi o acaso
que a trouxe aqui e prove-me que não tem nada a ver com Afonso Houdin! Faça-o e
eu retirarei tudo o que disse! Faça-o, pelo amor de Deus, caso contrário não
responderei pelos meus atos!
-
Não posso... Você me pede algo impossível.
Luís
Paulo de Rastignac deu um passo à frente e sua mão correu novamente para o
bolso, no qual havia enfiado o revólver.
-
Olhe para mim, Maria "Flor de Amor"! Dou-lhe até a satisfação da
minha ira! Admito até mesmo que estava certo de que você pudesse justificar-se!
Dissesse o que dissesse!... Ainda confiava em você, mas é tão falsa que não
sabe sequer o que dizer! Não é uma mulher, é um demônio, um réptil venenoso!...
Cada
insulto feria o coração de Maria "Flor de Amor" como uma punhalada.
Aniquilada, a jovem escondeu o rosto entre as mãos... Contudo, no seu grande
abatimento, na sua dor, estava lindíssima.
Luís
Paulo de Rastignac, malgrado tudo, teve que fazer força para vencer o desejo
incontido de inclinar-se para ela e abraçá-la com ternura, esquecido do mal que
julgava que ela lhe fizera.
Mas
foi só questão de um instante. Recobrou-se em seguida. Não, ela não era digna
de sua piedade e muito menos do seu amor!...
Daquele
momento em diante, ele queria pertencer a uma só, àquela a quem estava ligado
por um vínculo sagrado: Denise, a única mulher que, pelo menos ele acreditava,
ficara-lhe fiel.
Maria
"Flor de Amor" continuava muda e imóvel.
E
a voz de Luís Paulo ressoou novamente, fraca, mas decidida:
-
Vá para o mais longe possível! Não apareça mais em meu caminho! Não quero nem
mesmo recordar que você está viva!... Pelo menos, se estivesse morta, eu
poderia chorá-la como tal!
O
rapaz fez menção de retirar-se, porém, dominado por uma ideia repentina,
voltou-se outra vez e enfiou nervosamente a mão no bolso do paletó.
-
Tome! - acrescentou, atirando com desprezo um maço de notas aos seus pés. - Não
quero ter o remorso de deixá-la sozinha e sem meios! Dinheiro não me importa,
contanto que você desapareça de minha vida para sempre!
Um
soluço abafado saiu dos lábios pálidos de Maria "Flor de Amor".
-
Não adianta chorar! - disse novamente o barão de Rastignac. - Agora é tarde!...
Faça o que fizer, diga o que disser, só terei uma triste recordação de você!
Adeus! Adeus para sempre!...
Maria
"Flor de Amor" cobriu o rosto com as mãos, incapaz de resistir,
incapaz de lutar.
Já
se arrependia do que fizera.
A
decisão de gritar a verdade apertava seu peito, contraía-lhe a garganta...
Porém,
quando olhou em volta através do véu de lágrimas que lhe obscurecia a visão,
não havia mais ninguém no aposento.
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