O
conto que transcrevemos abaixo foi escrito por Guimarães Rosa.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar: http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007_11_01_archive.html.
Boa
leitura!
FAMIGERADO
Foi
de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu
estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel.
Cheguei à janela.Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro
rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três
homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O
cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é
influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra.
Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado,
ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum
se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para
nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos
coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a
meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se
encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua,
e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo.
Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos
vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os
cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara,
tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus
sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo
sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara
amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não
adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância
em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a
entrar.
Disse
de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a
descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa
de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita
ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais
longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia,
sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com
algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me
organizar. Ele falou:
"Eu
vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
Carregara
a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal.
Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro,
imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza?
Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na
cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se:
estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo,
no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão,
tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a
sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região,
pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em
suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima
violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café,
calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de
paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
—
"Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da
Serra..."
Sobressalto.
Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de
carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de
para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em
tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
—
"Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do
Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu
não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz,
muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com
arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra
que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do
que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de
dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um
orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.O que frouxo falava: de outras,
diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes,
como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de
entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim
no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
—
"Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que
é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse,
de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto,
que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada.
Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro
susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de
atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se
famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória
satisfação?
—
"Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis
léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo
claro..."
Se
sério, se era. Transiu-se-me.
—
"Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o
legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por
se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com
padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê,
vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe
perguntei?"
Se
simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
—
Famigerado?
—
"Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos
vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador,
intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei
preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por
socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então,
mumumudos. Mas, Damázio:
—
"Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram
comigo, pra testemunho..."Só tinha de desentalar-me. O homem queria
estrito o caroço: o verivérbio.
—
Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório",
"notável"...
—
"Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"
—
Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
—
"Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em
dia-de-semana?"
—
Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...
—
"Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se
certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
—
Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas
era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...
—
"Ah, bem!..." — soltou, exultante.
Saltando
na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num
desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir,
compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se
partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água.
Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!"
Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o
melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas
mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada
cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..."
Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa.
Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para
alto rir, e mais, o famoso assunto.
(Extraído
do livro Primeiras Estórias, Editora Nova Fronteira - Rio de
Janeiro, 1988, pág. 13.)
Fonte: http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/2007_11_01_archive.html.
Que conto legal! Acho que ele pensou que tivesse sido ofendido e se alegrou com a resposta rsrsrs. Gostei muito!
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