sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 22 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL




Capítulo XXII

A ESPIÃ APAIXONADA

Rosane sempre obedecera cegamente a Ubaldo, que tinha por hábito pagar fartamente seus bons serviços. A moça era perspicaz, professora na arte de dissimular, sabia fingir, escutar atrás das portas, abrir a correspondência dos senhores a cujo serviço ela ingressava para levar a efeito as tarefas de espionagem doméstica que Ubaldo Duroi lhe encomendava.
Enfim, ele achou nela uma colaboradora muito hábil e matreira, que sabia como ninguém ganhar a confiança e a simpatia das pessoas que a empregavam.
Seu emprego atual, como já sabemos, era o de camareira de quarto da baronesinha Denise. E esta, apesar de ser muito desconfiada e despótica, tinha simpatizado com ela e a tratava sem o orgulho que reservava para os outros criados.
Rosane não tinha motivos de queixa da baronesinha. Dos repentinos maus-humores e grosserias de Denise, que não podia esconder sua falta de educação, quando estava contrariada ou aborrecida, a moça não fazia o menor caso.
Sabia que eram tempestades em copo de água, que não tardavam em desvanecer-se. Sobretudo, Rosane tinha em conta que Denise a distinguia francamente, considerando-a muito acima das outras empregadas do palácio.
Bem alimentada, recebendo um bom salário, sendo também recompensada secretamente por Ubaldo Duroi, o homem que mais sabia a respeito da vida íntima das pessoas ricas ou poderosas da cidade de Nova Orleans, a situação de que ela desfrutava na mansão dos Rastignac era uma das melhores, talvez a melhor que ela teve em toda a sua vida de espiã doméstica.
Podia sentir-se até feliz, sentando-se todos os dias a uma mesa em que eram servidas as melhores comidas, os vinhos mais velhos e seletos, em que o guarda-roupa de Rosane guardava mais de uma dúzia de lindos vestidos com que a baronesinha lhe presenteara.
E quando a moça saía a passeio, ia tão bem vestida que, pelo seu aspecto, mais parecia marquesa que camareira.
Mas nesse paraíso, como em quase todos os paraísos, havia uma serpente muito insidiosa, a que daremos o nome de amor e de amor impossível certamente.
Rosane sabia que sua fogosa paixão, que a duras penas vinha ocultando, era verdadeira loucura, dado o caráter, o modo de ser do homem em quem ela pôs os olhos atrevidos.
"É como se tivesse me enamorado de um deus", murmurava Rosane para si mesma. "Tal é a distância que nos separa. Eu, mísera camareira, ele milionário e nobre... Nada menos que o barão Luís Paulo de Rastignac!"
O amor é uma centelha que incendeia, num abrir e fechar de olhos, a alma, o coração e o cérebro e faz perder facilmente a razão.
Não é de surpreender-se, portanto, que Rosane, assim à primeira vista, se bem que até algum tempo atrás acreditasse sinceramente gostar de Ubaldo, tivesse se apaixonado perdidamente por Luís Paulo. Ela o amava com aquele amor que é tanto mais apaixonado, quanto deve aparentar indiferença: amava-o com o coração e o espírito.
Aliás, ela mesma não sabia como se apaixonara por Luís Paulo de modo tão fulminante.
Entrara no austero palácio triste; abatida, apática, estranha a tudo que sucedia ao seu redor, exceto aquilo que pudesse servir a Ubaldo Duroi, que a considerava apenas como um elemento precioso para o seu serviço de espionagem.
E assim, no momento em que Rosane vira o barão Luís Paulo, impressionara-se tanto, a ponto de pensar que no mundo não houvesse outro homem tão bonito e atraente como ele.
Contudo, não era tão corrupta ao ponto de querer intrometer-se entre ele e a sua bela esposa. Por mais estranho que pareça, pelo menos em amor, Rosane possuía bons sentimentos e não queria prejudicar a felicidade conjugal daquele que idolatrava. Sua situação era realmente desastrosa.
Acontecia algumas vezes, realmente, que a apaixonada Rosane tivesse que assistir às demonstrações de afeto entre o casal e, nesses momentos, tinha a impressão de receber uma punhalada no peito.
A jovem, então, chegando ao vestiário e sabendo que ninguém a chamara, foi até o apartamento de sua patroa a fim de ordenar tudo que Denise, na sua saída apressada, espalhara por todos os lados ao vestir-se.
Estava quase terminando quando, sem avisar, Luís Paulo entrou no aposento, parando às suas costas e fazendo-a estremecer ao som de sua voz.
- Onde está minha esposa, Rosane?
- Saiu, senhor barão... Foi fazer compras...
Luís Paulo, desapontado, consultou o relógio.
- É estranho que não tenha me dito nada. Nós devíamos ir às corridas hoje!
- A senhora baronesa costuma encarregar-me de recordar-lhe seus compromissos - disse Rosane, sem fitá-lo - mas hoje...
- Não lhe disse nada, não foi?
- Não senhor...
O barão Luís Paulo deu de ombros.
- Bem, menos mal. Afinal, eu estava mesmo sem vontade de ir às corridas.
O rapaz olhou de modo estranho para a criada de quarto e a moça, sentindo-se observada, corou e procurou fazer alguma coisa para disfarçar seu encabulamento.
- A propósito, Rosane - falou Luís Paulo - estou para lhe dizer algo há vários dias, mas não tive ocasião.
A camareira teve a impressão de que um círculo de ferro apertasse a sua garganta e fez um esforço para se sustentar nas pernas trêmulas.
Que poderia o brilhante barão de Rastignac querer justamente dela? Nunca se dignara olhar para ela... Rosane sabia que era tão linda quanto Denise...
Por um momento, agarrou-se à esperança impossível de que Luís Paulo estivesse apaixonado por ela.
Mas a expressão que havia no rosto do rapaz e o olhar agudo que ele lhe lançava, fizeram-na mudar imediatamente de opinião.
- Eu sei - prosseguiu Luís Paulo, tocando distraidamente em algumas flores magníficas que se encontravam num vaso de cristal sobre uma mesinha - que você é muito afeiçoada à minha esposa e que Denise está satisfeita com a sua maneira de comportar-se.
- A senhora baronesa é muito bondosa comigo... - balbuciou Rosane.
- Sim, sei que está satisfeita com você - concordou o jovem Barão – e, justamente, por isso é que fiquei muito impressionado com uma notícia que recebi e que lhe diz respeito.
Rosane empalideceu terrivelmente.
- Não sei o que possa ser...
- É muito simples - prosseguiu Luís Paulo com ar sério - todas as noites você sai do palácio para encontrar-se com um homem...
Rosane estremeceu. O homem a quem o barão aludia era Ubaldo Duroi, a quem ela fazia o seu relatório diário de espionagem caseira.
- Aliás - acrescentou amigavelmente Luís Paulo - poderia ser o seu namorado e isto, na verdade, não me surpreenderia muito, se bem que os criados, no palácio, tenham um dia de folga por semana somente. De qualquer forma, são coisas de que não costumo ocupar-me. Mas fiquei muito surpreso ao saber que você entrega, de vez em quando, um maço de cartas àquele homem...
Rosane cambaleou e quase desmaiou. O jovem barão, percebendo isto, segurou-lhe o braço a fim de ampará-la.
- Que tem? - perguntou, já esquecido do pequeno interrogatório que resolvera levar a termo. - Lembre-se de que não acreditei imediatamente naquilo que me disseram. É verdade o que se diz de você?
Rosane não teve a coragem de responder e continuou a manter os olhos baixos.
Luís Paulo fitou-a nos olhos e seus olhares se cruzaram naquele instante.
Era estranho... Enquanto o jovem barão a acusava de uma falta que poderia até ser gravíssima, a moça pensava como seria doce pousar os lábios nos dele...
- Por que se cala? - exclamou Luís Paulo, um tanto ressentido.
- Responda pelo menos, defenda-se. Então devo pensar, como me foi dito, que o homem com quem se encontra todas as noites é um seu antigo noivo e que...
Mas, desta vez, Rosane se endireitou como se fosse percorrida por uma descarga elétrica e protestou:
- Não, não o é!... Como seria possível! Eu só amo a um homem...
- Então existe algum outro?
- Sim, um outro. - respondeu com um fio de voz, movendo apenas os lábios pálidos. - Amo um outro...
Luís Paulo a escutava visivelmente constrangido.
- Veja - justificou-se - não é que me interesse demasiadamente, mas meu pai sempre gostou de saber a vida de todos aqueles que trabalham no palácio e como com este sistema sempre obteve ótimos resultados, eu sigo seu exemplo. Por isso eu pergunto: esse homem a quem você ama, mora por aqui ou na cidade?
- Mora aqui, senhor barão...
- Aqui, no palácio?!
- Sim, senhor barão.
- Mas... Não o vê nunca?
Rosane corou violentamente, mas respondeu com decisão:
- Eu o vejo até agora.
Luís Paulo pareceu petrificado, como se não compreendesse bem o que acabara de ouvir.
Então, a bela criada, já que o grande passo estava dado, aproximou-se dele e dirigiu-lhe um olhar tão intenso, cujo significado era demasiadamente visível.
Ao mesmo tempo, colocou a mão trêmula na dele. Luís Paulo recuou imediatamente e fez um movimento rápido para se livrar dela.
- Creio que não se sente bem, Rosane - disse apressado - por isso não levarei em conta as suas palavras e a sua... Expansão. Porque, se lhe desse ouvidos, sabe que deveria despedi-la imediatamente!
Rosane não pestanejou, demonstrando não estar realmente assustada.
- Uma vez pelo menos, eu devia desabafar o peso que oprimia meu coração - disse ela calmamente. - Há tanto tempo sentia a necessidade de confessar-lhe meu amor e por isso espero que não se aborreça. Continuarei a ser como sou a fiel criada de quarto de sua esposa, concentrada sem o coração e o pensamento em um amor sem esperanças.
Falara com tanta sinceridade e tanta naturalidade que o barão Luís Paulo não teve a coragem de cumprir com a ameaça de despedi-la do palácio. Com uma voz que ele mesmo não reconhecia, replicou:
- Não acredito que esteja realmente apaixonada por mim, Rosane! Não é possível! Este fato me preocupa, contudo, seus precedentes são demasiadamente bons para que eu não a perdoe. De qualquer forma, seria melhor não ter tocado nesse assunto. O bom-senso não pode lhe ter faltado de um momento para outro, a ponto de você não compreender o absurdo de suas palavras.  Mesmo admitindo que sejam verdadeiras, deveria manter o seu segredo para si.
- Eu morreria! - respondeu Rosane com voz lacrimosa. -Não podia mais guardar tanto amor dentro de mim... Precisa compreender!...
O barão Luís Paulo fez um gesto de impaciência.
- Mas mesmo que compreendesse, mocinha, devo lembrar-lhe que o coração não é uma mercadoria que se vende a quem der mais! Eu, pessoalmente, dei o meu, pela vontade e pela lei à minha esposa, acho desnecessário recordar-lhe. Não tem o direito de pretender coisa alguma de mim! Em todo caso, aviso-a de que, se desejar permanecer no palácio, deve mudar totalmente de atitude e de maneira de pensar, já que não posso retribuir os seus sentimentos. Comporte-se, portanto. É pouco democrático recordar-lhe, mas a nossa posição não deve sofrer alteração; eu sou o patrão e você a empregada. Somente desta maneira poderá continuar a serviço de minha esposa, à qual, naturalmente, não contarei nada do que aconteceu.
As palavras de Luís Paulo eram razoáveis, mas Rosane balançou a cabeça várias vezes, demonstrando claramente não ser da mesma opinião.
- Senhor barão - murmurou - agora é melhor que eu me vá daqui, porque a paixão que me consome não se apagaria tão de repente. Por isso, vou deixar o palácio imediatamente...
- Como queira - falou o barão.
- Contudo, antes que eu vá embora, permita-me que...
Rosane não terminou a frase, porém, aproximando-se de Luís Paulo com passos decididos, segurou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o na boca.
- Agora que o beijei, estou satisfeita! - disse logo após, antes que o barão se recuperasse da surpresa. - Vivi um momento no paraíso!... Agora nada mais me importa!
O barão Luís Paulo, que não tivera tempo de afastar a moça de si, tanto era o seu espanto, recebera o beijo imóvel.
Percebendo que não havia mais nada a dizer, Rosane encaminhou-se para a porta com passo cambaleante. Mas ao chegar perto dela, as forças lhe faltaram de repente. Luís Paulo, que a seguia com o olhar, viu-a dobrar-se sobre si mesma e depois cair no tapete macio que cobria o pavimento. Imediatamente, levado mais pelo instinto do que pela vontade, o jovem barão correu para aquela que jazia imóvel no chão com os olhos fechados.
- Diacho! - murmurou. - Só faltava essa, agora! Pobre criatura... Tinha que se apaixonar logo por mim? E agora, o que faço?
Inclinou-se para ela aturdido, tomou-lhe a mão e chamou-a repetidamente pelo nome.
Os dedos da moça estavam frios como gelo.
Luís Paulo temeu por um instante que ela se sentisse mal de verdade, mas, observando-a com mais calma, pôde notar que não se tratava de algo grave.
Quis então erguê-la, porém, ao inclinar-se mais sobre ela, descobriu um envelope que saía do avental e no qual se lia claramente o seu nome: Luís Paulo de Rastignac. Pegou-o um tanto incerto, murmurando:


- Que estranho... Por que não me entregou isso antes? Será que pretendia ler o que estava escrito? Quem a terá enviado?
Rasgou o envelope com mão nervosa e retirou uma folha de papel do mesmo. Empalideceu terrivelmente ao ler o que estava escrito.
A carta dizia: "Senhor barão, se quiser achar sua esposa Denise em companhia do conhecido bandido Afonso Houdin, bastará que o senhor se apresente no hotel "Gardênia Azul". Como pode ver, eu mantive a minha promessa... Ivonne Delapierre."
Luís Paulo, ainda incrédulo, releu a carta por várias vezes. Não podia acreditar no que se dizia de sua esposa... Contudo, a profecia da cartomante martelava seu cérebro como se a tivesse ouvido alguns minutos antes apenas. Seria, por acaso, uma calúnia inventada pela vidente para dar força a tudo que lhe dissera quando a visitara? E se houvesse algo verdadeiro naquela carta? O que mais impressionava a Luís Paulo era o local, que estava indicado com a maior precisão. O rapaz temeu por um momento não estar em plena posse de suas faculdades mentais e tornou a ler a carta mais uma vez. Seria possível que a filha do conde Fernando Chanteloup, um homem tão nobre, generoso e leal, fosse culpada a ponto de deixar-se cortejar por um malfeitor procurado pela polícia? Uma ideia lhe passou pela mente. "De qualquer forma", disse a si mesmo, "é melhor avisar o detetive Ubaldo Duroi imediatamente. Ele poderá deter, em nome da lei, a esse malfeitor."
Enquanto isso, Rosane recobrara os sentidos e, imediatamente, consciente do que sucedera, embora se levantasse, mantinha os olhos baixos, sem ter a coragem de encarar o barão.
-Rosane! - disse Luís Paulo com voz firme. - Agora terá que me dar explicações! Venha cá!
A jovem obedeceu, mas ao ver o olhar do barão, teve a impressão de que ia desmaiar novamente. Os olhos de Luís Paulo estavam duros e lançavam lampejos metálicos.
- De que modo esta carta chegou às suas mãos? - interrogou o barão, furioso.
- Recebi-a no parque, ainda há pouco...
- Que significa ainda há pouco?
- Não sei... Dez minutos... Quinze talvez...
Luís Paulo esforçou-se para recobrar a calma.
- E posso saber por que não a entregou imediatamente, ao invés de ficar aí com tanta conversa tola?
- Mas... Eu...
- Responda à minha pergunta, Rosane!
- Eu me esqueci...
- Não imaginava que poderia ser uma coisa importante?!
- Sim...
- Quem lhe entregou esta carta?
- Um rapaz, no jardim... Queria entregar somente ao senhor...
Vendo que não tiraria mais nada de Rosane, Luís Paulo virou-lhe as costas com ar decidido e saiu do apartamento da esposa, entrando no seu apartamento. Ali chegando, tocou a campainha e disse ao criado, que não demorou a chegar:
- Diga ao cocheiro que apronte a carruagem imediatamente!
- Está bem, senhor barão.
Em seguida, encaminhou-se para uma escrivaninha de nogueira, que ficava no seu estúdio. Num gesto decidido, abriu a gaveta lateral e retirou uma pistola.
- Não vou acreditar com tanta facilidade nas tolices de uma cartomante - disse à meia-voz - mas se houver algo verdadeiro no que ela diz... Desta vez será o fim!...

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