O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXII
A
ESPIÃ APAIXONADA
Rosane
sempre obedecera cegamente a Ubaldo, que tinha por hábito pagar fartamente seus
bons serviços. A moça era perspicaz, professora na arte de dissimular, sabia
fingir, escutar atrás das portas, abrir a correspondência dos senhores a cujo
serviço ela ingressava para levar a efeito as tarefas de espionagem doméstica
que Ubaldo Duroi lhe encomendava.
Enfim,
ele achou nela uma colaboradora muito hábil e matreira, que sabia como ninguém
ganhar a confiança e a simpatia das pessoas que a empregavam.
Seu
emprego atual, como já sabemos, era o de camareira de quarto da baronesinha
Denise. E esta, apesar de ser muito desconfiada e despótica, tinha simpatizado
com ela e a tratava sem o orgulho que reservava para os outros criados.
Rosane
não tinha motivos de queixa da baronesinha. Dos repentinos maus-humores e
grosserias de Denise, que não podia esconder sua falta de educação, quando
estava contrariada ou aborrecida, a moça não fazia o menor caso.
Sabia
que eram tempestades em copo de água, que não tardavam em desvanecer-se.
Sobretudo, Rosane tinha em conta que Denise a distinguia francamente,
considerando-a muito acima das outras empregadas do palácio.
Bem
alimentada, recebendo um bom salário, sendo também recompensada secretamente
por Ubaldo Duroi, o homem que mais sabia a respeito da vida íntima das pessoas
ricas ou poderosas da cidade de Nova Orleans, a situação de que ela desfrutava
na mansão dos Rastignac era uma das melhores, talvez a melhor que ela teve em
toda a sua vida de espiã doméstica.
Podia
sentir-se até feliz, sentando-se todos os dias a uma mesa em que eram servidas
as melhores comidas, os vinhos mais velhos e seletos, em que o guarda-roupa de
Rosane guardava mais de uma dúzia de lindos vestidos com que a baronesinha lhe
presenteara.
E
quando a moça saía a passeio, ia tão bem vestida que, pelo seu aspecto, mais
parecia marquesa que camareira.
Mas
nesse paraíso, como em quase todos os paraísos, havia uma serpente muito
insidiosa, a que daremos o nome de amor e de amor impossível certamente.
Rosane
sabia que sua fogosa paixão, que a duras penas vinha ocultando, era verdadeira
loucura, dado o caráter, o modo de ser do homem em quem ela pôs os olhos
atrevidos.
"É
como se tivesse me enamorado de um deus", murmurava Rosane para si mesma. "Tal
é a distância que nos separa. Eu, mísera camareira, ele milionário e nobre...
Nada menos que o barão Luís Paulo de Rastignac!"
O
amor é uma centelha que incendeia, num abrir e fechar de olhos, a alma, o
coração e o cérebro e faz perder facilmente a razão.
Não
é de surpreender-se, portanto, que Rosane, assim à primeira vista, se bem que
até algum tempo atrás acreditasse sinceramente gostar de Ubaldo, tivesse se
apaixonado perdidamente por Luís Paulo. Ela o amava com aquele amor que é tanto
mais apaixonado, quanto deve aparentar indiferença: amava-o com o coração e o
espírito.
Aliás,
ela mesma não sabia como se apaixonara por Luís Paulo de modo tão fulminante.
Entrara
no austero palácio triste; abatida, apática, estranha a tudo que sucedia ao seu
redor, exceto aquilo que pudesse servir a Ubaldo Duroi, que a considerava
apenas como um elemento precioso para o seu serviço de espionagem.
E
assim, no momento em que Rosane vira o barão Luís Paulo, impressionara-se
tanto, a ponto de pensar que no mundo não houvesse outro homem tão bonito e
atraente como ele.
Contudo,
não era tão corrupta ao ponto de querer intrometer-se entre ele e a sua bela
esposa. Por mais estranho que pareça, pelo menos em amor, Rosane possuía bons
sentimentos e não queria prejudicar a felicidade conjugal daquele que
idolatrava. Sua situação era realmente desastrosa.
Acontecia
algumas vezes, realmente, que a apaixonada Rosane tivesse que assistir às
demonstrações de afeto entre o casal e, nesses momentos, tinha a impressão de
receber uma punhalada no peito.
A
jovem, então, chegando ao vestiário e sabendo que ninguém a chamara, foi até o
apartamento de sua patroa a fim de ordenar tudo que Denise, na sua saída
apressada, espalhara por todos os lados ao vestir-se.
Estava
quase terminando quando, sem avisar, Luís Paulo entrou no aposento, parando às
suas costas e fazendo-a estremecer ao som de sua voz.
-
Onde está minha esposa, Rosane?
-
Saiu, senhor barão... Foi fazer compras...
Luís
Paulo, desapontado, consultou o relógio.
-
É estranho que não tenha me dito nada. Nós devíamos ir às corridas hoje!
-
A senhora baronesa costuma encarregar-me de recordar-lhe seus compromissos -
disse Rosane, sem fitá-lo - mas hoje...
-
Não lhe disse nada, não foi?
-
Não senhor...
O
barão Luís Paulo deu de ombros.
-
Bem, menos mal. Afinal, eu estava mesmo sem vontade de ir às corridas.
O
rapaz olhou de modo estranho para a criada de quarto e a moça, sentindo-se
observada, corou e procurou fazer alguma coisa para disfarçar seu
encabulamento.
-
A propósito, Rosane - falou Luís Paulo - estou para lhe dizer algo há vários
dias, mas não tive ocasião.
A
camareira teve a impressão de que um círculo de ferro apertasse a sua garganta
e fez um esforço para se sustentar nas pernas trêmulas.
Que
poderia o brilhante barão de Rastignac querer justamente dela? Nunca se dignara
olhar para ela... Rosane sabia que era tão linda quanto Denise...
Por
um momento, agarrou-se à esperança impossível de que Luís Paulo estivesse
apaixonado por ela.
Mas
a expressão que havia no rosto do rapaz e o olhar agudo que ele lhe lançava,
fizeram-na mudar imediatamente de opinião.
-
Eu sei - prosseguiu Luís Paulo, tocando distraidamente em algumas flores
magníficas que se encontravam num vaso de cristal sobre uma mesinha - que você
é muito afeiçoada à minha esposa e que Denise está satisfeita com a sua maneira
de comportar-se.
-
A senhora baronesa é muito bondosa comigo... - balbuciou Rosane.
-
Sim, sei que está satisfeita com você - concordou o jovem Barão – e, justamente,
por isso é que fiquei muito impressionado com uma notícia que recebi e que lhe
diz respeito.
Rosane
empalideceu terrivelmente.
-
Não sei o que possa ser...
-
É muito simples - prosseguiu Luís Paulo com ar sério - todas as noites você sai
do palácio para encontrar-se com um homem...
Rosane
estremeceu. O homem a quem o barão aludia era Ubaldo Duroi, a quem ela fazia o
seu relatório diário de espionagem caseira.
-
Aliás - acrescentou amigavelmente Luís Paulo - poderia ser o seu namorado e
isto, na verdade, não me surpreenderia muito, se bem que os criados, no
palácio, tenham um dia de folga por semana somente. De qualquer forma, são
coisas de que não costumo ocupar-me. Mas fiquei muito surpreso ao saber que
você entrega, de vez em quando, um maço de cartas àquele homem...
Rosane
cambaleou e quase desmaiou. O jovem barão, percebendo isto, segurou-lhe o braço
a fim de ampará-la.
-
Que tem? - perguntou, já esquecido do pequeno interrogatório que resolvera
levar a termo. - Lembre-se de que não acreditei imediatamente naquilo que me
disseram. É verdade o que se diz de você?
Rosane
não teve a coragem de responder e continuou a manter os olhos baixos.
Luís
Paulo fitou-a nos olhos e seus olhares se cruzaram naquele instante.
Era
estranho... Enquanto o jovem barão a acusava de uma falta que poderia até ser
gravíssima, a moça pensava como seria doce pousar os lábios nos dele...
-
Por que se cala? - exclamou Luís Paulo, um tanto ressentido.
-
Responda pelo menos, defenda-se. Então devo pensar, como me foi dito, que o
homem com quem se encontra todas as noites é um seu antigo noivo e que...
Mas,
desta vez, Rosane se endireitou como se fosse percorrida por uma descarga
elétrica e protestou:
-
Não, não o é!... Como seria possível! Eu só amo a um homem...
-
Então existe algum outro?
-
Sim, um outro. - respondeu com um fio de voz, movendo apenas os lábios pálidos.
- Amo um outro...
Luís
Paulo a escutava visivelmente constrangido.
-
Veja - justificou-se - não é que me interesse demasiadamente, mas meu pai
sempre gostou de saber a vida de todos aqueles que trabalham no palácio e como
com este sistema sempre obteve ótimos resultados, eu sigo seu exemplo. Por isso
eu pergunto: esse homem a quem você ama, mora por aqui ou na cidade?
-
Mora aqui, senhor barão...
-
Aqui, no palácio?!
-
Sim, senhor barão.
-
Mas... Não o vê nunca?
Rosane
corou violentamente, mas respondeu com decisão:
-
Eu o vejo até agora.
Luís
Paulo pareceu petrificado, como se não compreendesse bem o que acabara de
ouvir.
Então,
a bela criada, já que o grande passo estava dado, aproximou-se dele e
dirigiu-lhe um olhar tão intenso, cujo significado era demasiadamente visível.
Ao
mesmo tempo, colocou a mão trêmula na dele. Luís Paulo recuou imediatamente e
fez um movimento rápido para se livrar dela.
-
Creio que não se sente bem, Rosane - disse apressado - por isso não levarei em
conta as suas palavras e a sua... Expansão. Porque, se lhe desse ouvidos, sabe
que deveria despedi-la imediatamente!
Rosane
não pestanejou, demonstrando não estar realmente assustada.
-
Uma vez pelo menos, eu devia desabafar o peso que oprimia meu coração - disse
ela calmamente. - Há tanto tempo sentia a necessidade de confessar-lhe meu amor
e por isso espero que não se aborreça. Continuarei a ser como sou a fiel criada
de quarto de sua esposa, concentrada sem o coração e o pensamento em um amor
sem esperanças.
Falara
com tanta sinceridade e tanta naturalidade que o barão Luís Paulo não teve a
coragem de cumprir com a ameaça de despedi-la do palácio. Com uma voz que ele
mesmo não reconhecia, replicou:
-
Não acredito que esteja realmente apaixonada por mim, Rosane! Não é possível!
Este fato me preocupa, contudo, seus precedentes são demasiadamente bons para
que eu não a perdoe. De qualquer forma, seria melhor não ter tocado nesse
assunto. O bom-senso não pode lhe ter faltado de um momento para outro, a ponto
de você não compreender o absurdo de suas palavras. Mesmo admitindo que sejam verdadeiras,
deveria manter o seu segredo para si.
-
Eu morreria! - respondeu Rosane com voz lacrimosa. -Não podia mais guardar
tanto amor dentro de mim... Precisa compreender!...
O
barão Luís Paulo fez um gesto de impaciência.
-
Mas mesmo que compreendesse, mocinha, devo lembrar-lhe que o coração não é uma
mercadoria que se vende a quem der mais! Eu, pessoalmente, dei o meu, pela
vontade e pela lei à minha esposa, acho desnecessário recordar-lhe. Não tem o
direito de pretender coisa alguma de mim! Em todo caso, aviso-a de que, se
desejar permanecer no palácio, deve mudar totalmente de atitude e de maneira de
pensar, já que não posso retribuir os seus sentimentos. Comporte-se, portanto.
É pouco democrático recordar-lhe, mas a nossa posição não deve sofrer
alteração; eu sou o patrão e você a empregada. Somente desta maneira poderá
continuar a serviço de minha esposa, à qual, naturalmente, não contarei nada do
que aconteceu.
As
palavras de Luís Paulo eram razoáveis, mas Rosane balançou a cabeça várias
vezes, demonstrando claramente não ser da mesma opinião.
-
Senhor barão - murmurou - agora é melhor que eu me vá daqui, porque a paixão que
me consome não se apagaria tão de repente. Por isso, vou deixar o palácio
imediatamente...
-
Como queira - falou o barão.
-
Contudo, antes que eu vá embora, permita-me que...
Rosane
não terminou a frase, porém, aproximando-se de Luís Paulo com passos decididos,
segurou-lhe a cabeça entre as mãos e beijou-o na boca.
-
Agora que o beijei, estou satisfeita! - disse logo após, antes que o barão se
recuperasse da surpresa. - Vivi um momento no paraíso!... Agora nada mais me importa!
O
barão Luís Paulo, que não tivera tempo de afastar a moça de si, tanto era o seu
espanto, recebera o beijo imóvel.
Percebendo
que não havia mais nada a dizer, Rosane encaminhou-se para a porta com passo
cambaleante. Mas ao chegar perto dela, as forças lhe faltaram de repente. Luís
Paulo, que a seguia com o olhar, viu-a dobrar-se sobre si mesma e depois cair
no tapete macio que cobria o pavimento. Imediatamente, levado mais pelo
instinto do que pela vontade, o jovem barão correu para aquela que jazia imóvel
no chão com os olhos fechados.
-
Diacho! - murmurou. - Só faltava essa, agora! Pobre criatura... Tinha que se
apaixonar logo por mim? E agora, o que faço?
Inclinou-se
para ela aturdido, tomou-lhe a mão e chamou-a repetidamente pelo nome.
Os
dedos da moça estavam frios como gelo.
Luís
Paulo temeu por um instante que ela se sentisse mal de verdade, mas,
observando-a com mais calma, pôde notar que não se tratava de algo grave.
Quis
então erguê-la, porém, ao inclinar-se mais sobre ela, descobriu um envelope que
saía do avental e no qual se lia claramente o seu nome: Luís Paulo de
Rastignac. Pegou-o um tanto incerto, murmurando:
-
Que estranho... Por que não me entregou isso antes? Será que pretendia ler o
que estava escrito? Quem a terá enviado?
Rasgou
o envelope com mão nervosa e retirou uma folha de papel do mesmo. Empalideceu
terrivelmente ao ler o que estava escrito.
A
carta dizia: "Senhor barão, se quiser achar sua esposa Denise em companhia
do conhecido bandido Afonso Houdin, bastará que o senhor se apresente no hotel
"Gardênia Azul". Como pode ver, eu mantive a minha promessa... Ivonne
Delapierre."
Luís
Paulo, ainda incrédulo, releu a carta por várias vezes. Não podia acreditar no
que se dizia de sua esposa... Contudo, a profecia da cartomante martelava seu
cérebro como se a tivesse ouvido alguns minutos antes apenas. Seria, por acaso,
uma calúnia inventada pela vidente para dar força a tudo que lhe dissera quando
a visitara? E se houvesse algo verdadeiro naquela carta? O que mais
impressionava a Luís Paulo era o local, que estava indicado com a maior
precisão. O rapaz temeu por um momento não estar em plena posse de suas
faculdades mentais e tornou a ler a carta mais uma vez. Seria possível que a
filha do conde Fernando Chanteloup, um homem tão nobre, generoso e leal, fosse
culpada a ponto de deixar-se cortejar por um malfeitor procurado pela polícia?
Uma ideia lhe passou pela mente. "De qualquer forma", disse a si
mesmo, "é melhor avisar o detetive Ubaldo Duroi imediatamente. Ele poderá
deter, em nome da lei, a esse malfeitor."
Enquanto
isso, Rosane recobrara os sentidos e, imediatamente, consciente do que
sucedera, embora se levantasse, mantinha os olhos baixos, sem ter a coragem de
encarar o barão.
-Rosane!
- disse Luís Paulo com voz firme. - Agora terá que me dar explicações! Venha
cá!
A
jovem obedeceu, mas ao ver o olhar do barão, teve a impressão de que ia
desmaiar novamente. Os olhos de Luís Paulo estavam duros e lançavam lampejos
metálicos.
-
De que modo esta carta chegou às suas mãos? - interrogou o barão, furioso.
-
Recebi-a no parque, ainda há pouco...
-
Que significa ainda há pouco?
-
Não sei... Dez minutos... Quinze talvez...
Luís
Paulo esforçou-se para recobrar a calma.
-
E posso saber por que não a entregou imediatamente, ao invés de ficar aí com
tanta conversa tola?
-
Mas... Eu...
-
Responda à minha pergunta, Rosane!
-
Eu me esqueci...
-
Não imaginava que poderia ser uma coisa importante?!
-
Sim...
-
Quem lhe entregou esta carta?
-
Um rapaz, no jardim... Queria entregar somente ao senhor...
Vendo
que não tiraria mais nada de Rosane, Luís Paulo virou-lhe as costas com ar
decidido e saiu do apartamento da esposa, entrando no seu apartamento. Ali
chegando, tocou a campainha e disse ao criado, que não demorou a chegar:
-
Diga ao cocheiro que apronte a carruagem imediatamente!
-
Está bem, senhor barão.
Em
seguida, encaminhou-se para uma escrivaninha de nogueira, que ficava no seu
estúdio. Num gesto decidido, abriu a gaveta lateral e retirou uma pistola.
-
Não vou acreditar com tanta facilidade nas tolices de uma cartomante - disse à
meia-voz - mas se houver algo verdadeiro no que ela diz... Desta vez será o
fim!...
Nossa, a história cada vez surpreende mais, vamos ver onde vai parar... Muito legal!
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