A
crônica que reproduzimos abaixo é da autoria de Carlos Drummond de Andrade.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar: www.releituras.com/drummond_bio.asp.
Boa
leitura!
TIRAR FÉRIAS
A
noção de férias está ligada a figuras de viagem, esporte, aplicações intensivas
do corpo; quase nada a descanso.
As
pessoas executam durante esse intervalo aquilo que não puderam fazer ao longo
do ano; fazem "mais" alguma coisa, de sorte que não há férias, no
sentido religioso e romano de suspensão de atividades. Matutando nisso, resolvi
tirar férias e gozá-las como devem ser gozadas: sem esforço para torná-las
amenas. A idéia de viagem foi expulsa do programa: é das iniciativas mais
comprometedoras e tresloucadas que poderia tomar o trabalhador vacante. As
viagens ou não existem, como é próprio da era do jato, em que somos transportados
em velocidade superior à do nosso poder de percepção e de ruminação de
impressões, ou existem demais como burocracia de passaporte, filas, falta de
vaga em hotel, atrasos, moeda aviltada, alfândega, pneu estourado no ermo, que
mais? Quanto à prática de esportes, sempre julguei de boa política deixá-la
entregue a personalidades como Éder Jofre, Maria Ester Bueno ou Pelé, que dão o
máximo. A performance desses ases satisfaz plenamente, e não seria eu num mês
de férias que iria igualá-los ou sequer realçá-los pelo contraste. Bem sei que
o esporte vale por si, não pelos campeonatos; mas também, como passatempo,
carece de sentido. Pescar, caçar pequenos bichos da mata? Nunca. Se esporte e
morte acabam pelo mesmo som, para mim nunca rimaram. Havia também os trabalhos,
os famosos trabalhos que a gente deixa para quando repousar dos trabalhos
comuns. Organizar originais de um livro. Escrever uma página de sustância (está
pronta na cabeça, falta só botar o papel na máquina!). Pesquisar em arquivos.
Arrumar papéis. Mudar os móveis de lugar. E os deveres adiados, tipo
"visitar o primo reumático de Del Castilho". A idéia de conhecer o
Rio, conhecer mesmo, que nos namora há 20 anos: tomar bondes esdrúxulos, subir
morros, descobrir lagoas de madrugada. Por último, o sonho colorido dos
gulosos, sacrificados durante o ano: comer desbragadamente pratos
extraordinários, sem noção de tempo, saúde, dinheiro. Tudo aboli e fiz a
experiência das férias propriamente ditas, que, como eliminação das atividades
ordinárias e exteriores, pode parecer estado contemplativo ou exercício de
ioga. Não é nada disso. Exatamente porque abrem mão de tudo, as boas férias não
devem tender à concentração espiritual nem à contenção da vontade. São antes um
deixar-se estar, sem petrificação. Levantar se mais tarde? Se não fizer calor;
um direito nem sempre é um prazer. Ir ao Arpoador? Se ele nos chama realmente,
não porque a manhã e a água estão livres. O mesmo quanto a diversões, muitas
vezes menos divertidas do que a noção que temos delas.
Divertir-se
é desviar-se, e não convém que nos desviemos das férias, enchendo o tempo com
programas de férias. Deixemos que ele passe, sutil; não o ajudemos a passar. Há
uma doçura imprevista em sentir-se flutuar na correnteza das horas, em
sentir-se folha, reflexo, coisa levada; coisa que se sabe tal, coisa sabida mas
preguiçosa. Se me pedirem para contar o que fiz afinal nestas férias, direi
lealmente: ignoro. Aos convites disse não, alegando estar em férias, alegação
tão forte como a de estar ocupadíssimo. O pensamento errou entre mil avenidas,
não se deteve em nenhuma; cada dia amadureceu e caiu como um fruto. Nada
aconteceu? O não acontecimento é a essência das férias. E agora, é trabalhar
duro onze meses para merecer as inofensivas e deliciosas férias do não.
Fonte:
http://phaleixo.blogspot.com.br/search?updated-max=2012-09-02T14:53:00-07:00&max-results=7.
Gostei muito! Afinal, férias seria para descansar!
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