O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXV
UM
FARSANTE DESMASCARADO
Leopoldo
Verdier largou o copo em que bebia e, pegando a campainha, a fez soar. Ao
criado que em seguida compareceu, o aventureiro ordenou-lhe:
-
Avise ao senhor Egídio que quero falar com ele.
Egídio
era o chefe dos capatazes da fazenda, todos eles verdadeiros carrascos para os
escravos que trabalhavam a gleba. O criado foi cumprir a ordem do amo e
Leopoldo Verdier, ficando novamente só, diz para si, sorrindo ironicamente:
"Certamente, essa Maria "Flor de Amor", ou é anjo ou é criança.
Imaginou comover-me com a lembrança de minha mãe... Ela ainda não compreendeu
que eu tenho o coração calejado. Não há lembrança capaz de fazer-me renunciar a
um bom negócio e obter um bom lucro. O traficante sem dúvida tem algum cliente
caprichoso que quer ficar com essa menor."
Apenas
acabara de fazer esta velhaca reflexão, quando Egídio, o chefe dos capatazes,
compareceu diante dele.
-
Sente-se - convidou-lhe. - Vamos conversar e beber.
Isabel,
uma velha servidora, foi a encarregada de trazer mais um copo para Egídio.
-
Sempre que temos de vender algum filho ou o marido, as mulheres têm por hábito
aborrecer-nos com suas choradeiras e lamúrias - disse Leopoldo dirigindo-se a
seu comparsa.
-
É bem certo, senhor, elas esquecem o que não devem; que são escravas e, por
isso, objetos de compra e venda - falou Egídio, persuadido de estar dizendo uma
grande verdade.
-
Você falou como um livro, meu bom Egídio. Porém, uma dessas mulheres chegou até
ao descaramento de me mandar uma pessoa a suplicar-me que eu deixasse de vender
sua filha.
-
Quem foi essa insolente? - perguntou Egídio, lançando fogo pelos olhos. -
Talvez a Dolores...
-
Dolores, precisamente - confirmou Leopoldo Verdier.
-
Acho que merece um castigo que sirva para exemplo das choronas desta fazenda -
opinou Egídio, - Poderia ser enforcada ou rebentar-lhe as mãos com a
palmatória...
-
Não, isso não. Essa mulher é ainda jovem, é trabalhadora e pode ser explorada
ou vendida - disse Leopoldo. - Trata-se apenas de fazer-lhe sofrer um castigo
corporal que lhe doa bastante e que tire das outras escravas a vontade de
choramingar quando um de seus irmãos, filhos ou marido devam ser vendidos e
separados para sempre delas.
-
Que tal lhe dar cinquenta chibatadas nas costas com um bom chicote? - propôs
Egídio, sonhando em ser ele o carrasco desse bárbaro castigo.
-
Cinquenta? Não! Nós a mataríamos! - observou Leopoldo. - Seria o bastante
dar-lhe vinte chibatadas, mas não pela sua mão, Egídio, já que você é chamado
de "Braço de Ferro". Poderia ser um dos jovens aprendizes de capataz.
Essa surra lhes serviria de aula. E poderia ser aplicada a Dolores na próxima
festa do 14 de julho, daqui a oito dias, exatamente. Seria mais uma diversão
para o pessoal e um exemplo para as que cultivam a choradeira.
-
Tudo será feito como o senhor manda - prometeu Egídio - Realmente, Dolores é
uma moça que sempre roubou tempo ao trabalho para tomar conta da filha...
-
Pois agora não perderá mais esse tempo, pois sua filha, a Ritinha, está vendida
e muito bem vendida a um dos mais conhecidos traficantes que frequentam os mercados
de escravos da Luisiana e de toda a América do Norte.
Enquanto
essa sinistra conversação era levada a efeito pelo aventureiro e seu assecla, a
infortunada Dolores, rendida pela fadiga de seu atroz sofrimento e
tranquilizada por saber que Leopoldo, o amo, desistira de vender Ritinha,
adormecera ao lado de sua inocente filha.
Nem
Maria "Flor de Amor" e tampouco Dolores, apesar de saber o quanto
aquele homem era malvado, chegaram a suspeitar que Leopoldo Verdier fosse tão
perverso.
Leopoldo
contava com que dentro de três dias "Flor de Amor" seria levada por
Muley Efrim, o homem de confiança do Bey de Tunis. E dois dias depois estaria
na fazenda Dimas "Caim", o traficante de escravos, que era o
comprador da menina Ritinha.
Assim,
ele tinha-se divertido enganando "Flor de Amor", e também a Dolores.
Maria "Flor de Amor" nada iria saber, pois quando chegasse o negreiro
ela já estaria embarcada no navio que a levaria até Tunis, para ser sequestrada
no harém das belas escravas do Bey, senhor e déspota daquela região da África.
Mas,
apesar de que os olhos desconfiados de Leopoldo tinham observado, enquanto
falava com Egídio confidencialmente, se alguém ouvia suas palavras, ele não
percebeu que num cantinho da varanda, oculta atrás de uma planta gigante, a
velha Isabel, que fingia ser surda para melhor desorientar o patrão, foi
recolhendo palavra por palavra toda a conversação dos dois homens.
Ela,
quando tinha quinze anos, foi arrancada dos braços de sua pobre mãe para ser
vendida num mercado de escravos.
Por
esse motivo e por seu bom coração, sentia grande compaixão por Maria "Flor
de Amor" e não menos pela Ritinha, aquela menina que, pela sua simpatia e
beleza, sabia fazer-se tão adorável.
À
alta hora da noite, ela bateu na vidraça de uma das portas dos aposentos de
"Flor de Amor".
Toda
receosa, temendo que fosse Leopoldo, que tivesse desistido de seus bons
propósitos para com ela, propósitos honestos, que lhe comunicara a governanta
Margot, Maria "Flor de Amor" saltou da cama e foi então que escutou
uma fraca voz feminina, que lhe pedia:
-
Abra, menina, que é para o seu bem.
Um
momento depois, Isabel, a velha servente do dono da fazenda, penetrava no
quarto de Maria "Flor de Amor".
-
Tenho notícias importantes, da maior gravidade, que considero um dever de
consciência lhe comunicar - disse Isabel.
Sentadas
frente a frente, Maria "Flor de Amor" escutou horrorizada a falsidade
da promessa que lhe fizera Leopoldo, de não vender Ritinha, e com não menos
horror soube que ela mesma seria vendida, tendo por futuro a escravidão no
harém do mulherengo Bey de Tunis.
-
Enão poderemos escapar dessa sorte terrível que nos espera? - perguntou Maria
"Flor de Amor", profundamente impressionada.
A
velha Isabel durante uns momentos permaneceu calada, enquanto olhava a jovem
fixamente.
-
Você é medrosa? - perguntou por fim a Maria "Flor de Amor".
-
Penso que não. Muitas foram as provações porque já passei e nunca me acovardei,
essa é a verdade.
-
É o que eu desejava saber - disse Isabel, satisfeita. - De Dolores conheço a
têmpera e sei que para evitar que sua filha seja vendida, é capaz de descer às
profundezas do inferno!... Então esta mesma noite vocês terão de fugir da
fazenda.
-
E como poderemos fugir? - perguntou Maria "Flor de Amor". - Sei que
todas as portas da fazenda ou são vigiadas ou estão fechadas com grossos
cadeados.
-
Uma dessas portas tão bem fechadas será aberta para vocês - respondeu Isabel,
em tom de absoluta segurança.
-
A senhora tem alguma chave? - quis saber Maria "Flor de Amor".
-
Não. Mas sei como consegui-la. Arrume-se
para ir bem longe da fazenda, enquanto eu vou falar com Dolores, com ela e a
filha, tornarei a voltar aqui e as encaminharei para a liberdade.
Isabel
saiu do quarto de Maria '''Flor de Amor" e, momentos depois, entrou no
cubículo ocupado por Dolores e a menina.
A
infeliz escrava dormia com o sossego que a mentira de Leopoldo, que lhe
transmitira Maria "Flor de Amor", lhe dera depois de tanta ansiedade.
-
Dolores... - murmurou a velha ao seu ouvido. - Dolores, acorde!
Por
fim a moça abriu os olhos carregados de sono.
-
Por que a senhora me acordou? Depois de tantas horas de insônia e angústia,
consegui adormecer porque soube que o Sr. Leopoldo desistiu de vender minha
filhinha.
-
Infeliz! - rebateu Isabel. - Você foi iludida por esse homem perverso. Ele
mentiu à Maria "Flor de Amor" porque ela pediu-lhe que não vendesse
Ritinha ao traficante de escravos. Escondida na varanda, onde o Sr. Leopoldo falava
com o canalha do Egídio, escutei que o negreiro Dimas "Caim" levará
Ritinha para vendê-la. E você, por ter falado com Maria "Flor de
Amor" para que intercedesse com Leopoldo para não vender a menina, na
festa do próximo 14 de julho, receberá vinte chibatadas nas costas despidas,
exemplo para as que se atrevem a desesperar-se quando lhes são arrebatados os
filhos ou o marido, para serem levados ao mercado de escravos.
-
Eu prefiro morrer a sofrer esse castigo vergonhoso! Castigar-me por ser boa
mãe!... - Gemeu Dolores, retorcendo as mãos.
-
Você não será amarrada ao pelourinho - afirmou Isabel. - E nem vai perder sua
filha.
-
Não? E que santo vai fazer esse milagre? - perguntou Dolores, cravando seus
grandes e aflitos olhos negros na sua velha amiga.
-
Santo, não. E tampouco santa. Serei eu, envelhecida na escravidão e farta de
ver infâmias. Você, sua filha e Maria "Flor de Amor" vão sair daqui
esta mesma noite. Vista-se para ir longe daqui, procure que a menina não faça
nenhum ruído. Mais tarde virei buscá-las e juntas iremos à procura de Maria
"Flor de Amor", que estará nos esperando no seu aposento.
-
Verdade que você vai nos salvar, Isabel querida? Que Deus lhe pague essa boa
ação! - soluçou Dolores, apertando as mãos de sua amiga contra o seu coração.
-
Vamos, não chore, que já chorou bastante nestes dias. Para salvar a sua filha
ainda lhe falta passar por uma prova que a qualquer outra mulher poria a dois
passos da loucura.
Quando
Isabel se separou de Dolores, foi diretamente ao encontro de um dos vigias que,
durante a noite, convenientemente armados, vigiavam a fazenda.
Era
Jeremias, seu antigo conhecido. Extremamente fiel ao seu amo Leopoldo, mas
débil para com as bebidas alcoólicas.
A
velha aproximou-se dele e disse-lhe:
-
Escutei um ruído muito suspeito na adega. Como se alguém tivesse entrado ali
furtivamente. Quer ir lá verificar se está acontecendo algo de estranho?
E
para melhor, reforçar sua proposta, a matreira velha ofereceu a Jeremias a
chave do subterrâneo. O vigia estava com a garganta seca.
Na
adega, o amo guardava centenas de garrafas dos melhores vinhos da França, da
Itália, da Espanha...
Se
algum gatuno estivesse oculto na adega, não vacilaria em dar-lhe um tiro. Mas o
que realmente o seduzia era poder ver as garrafas e barris daqueles vinhos
caros, que nunca tivera oportunidade de beber.
-
Estou disposto a ir - disse Jeremias. Dê-me essa chave, Isabel. Depois de feita
à busca, eu mesmo a levarei ao seu quarto.
-
Não deixe de levá-la - respondeu a velha, acrescentando: - Não se demore.
Jeremias
desceu à adega, iluminando-a com a sua lanterna. Primeiramente verificou que
nenhum inimigo ou escravo fugitivo tinha penetrado ali.
Depois,
convencido de que estava absolutamente só, o vigia agarrou um copo e abriu a
torneira de um barril de superior vinho de Bordeaux.
-
Delicioso! - exclamou, após provar seu paladar. Do "Bordeaux" passou
para o "Chianti", deste para o "Porto"...
A
mistura de vinhos tão diversos proporcionou-lhe uma bebedeira que ia aumentando-a
e o insaciável Jeremias continuava a beber, sem parar, vinhos e licores os mais
diversos.
Não
tinha transcorrido ainda uma meia hora quando Jeremias, muito alegre, porém com
a cabeça pesada, sentiu que suas pálpebras se fechavam, que um profundo sono se
apoderava dele.
Ali
mesmo, na adega, ele, com as pernas frouxas, deixou-se cair, escorregando as
costas na parede. Desse jeito o encontrou a velha Isabel, quando apareceu no subterrâneo
para verificar com satisfação que sua astúcia tinha dado resultado.
Pegou
a chave da porta da fazenda, que estava no cinto de Jeremias, com ela voltou ao
encontro das duas mulheres e da menina, que aguardavam na mais impaciente das
expectativas.
-
O truque deu certo - explicou rapidamente Isabel. - Agora o que importa é
aproveitar o tempo. Você, Dolores, deve conhecer a estrada velha dos Valois?...
-
Sim. Sei que está a curta distância desta fazenda - respondeu a mãe de Ritinha...
-
Pois bem, por essa estrada, aproximadamente a uns três quilômetros daqui, se
chega a um vasto campo sobre o qual brilham pela noite umas luzes que apavoram
os camponeses - explicou Isabel.
-
Mas essas luzes têm um nome - interveio Dolores.
-
São chamadas de fogos-fátuos. E só brilham nos cemitérios - esclareceu Maria
"Flor de Amor".
-
Exatamente - confirmou Isabel. - Vocês, minhas queridas, vão dirigir seus
passos até a grande porta do cemitério Cruz da Saudade. Terão coragem para, em
plena noite, introduzirem-se na casa dos mortos?
-
Até a morte é melhor do que a escravidão - afirmou Dolores resolutamente. - Eu
não me deixarei dominar pelo medo. E tenho certeza de que Maria "Flor de
Amor" estará disposta a suportar essa prova.
-
Nunca fui medrosa - disse Maria "Flor de Amor". - Muito mais temo aos
vivos maus do que aos mortos.