quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O INFERNO DE UM ANJO - CAPÍTULO 24 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’unAnge



Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Capítulo XXIV
MULHER QUE NASCEU PARA SOFRER...

Leopoldo Verdier, acompanhado de um homem alto e robusto vestido à muçulmana, apareceu na porta do aposento em que Maria "Flor de Amor" se encontrava conversando com Margot, a governanta. Aquele árabe era um antigo conhecido de Leopoldo. Chegara repentinamente até a fazenda do aventureiro, seu nome era Muley Efrim, pessoa de absoluta confiança do Bey de Tunis.
Viajava pelo mundo inteiro com várias missões, uma delas a de comprar escravas brancas para o seu poderoso senhor.
Era visível a profunda admiração que a beleza de Maria "Flor de Amor" causou no árabe.
- Você nunca viu uma criatura mais linda, mais angelical do que esta - disse Leopoldo, orgulhosamente, após fazer um gesto para que as duas mulheres continuassem sentadas.
- Realmente - reconheceu Muley Efrim - ela parece uma virgem do paraíso do Profeta. É encantadora, não posso deixar de reconhecer.
Sem acrescentar mais palavras os dois homens se retiraram em seguida.
A porta fechou-se atrás deles e Maria "Flor de Amor", instintivamente sobressaltada, perguntou a Margot:
- A senhora sabe quem é esse homem vestido à moda árabe? Olhava-me com tão particular interesse...
Quem era aquele árabe e quais podiam ser suas intenções a respeito da jovem, ela não ignorava verdadeiramente. Mas, evasiva, limitou-se a responder:
- É um amigo do senhor Leopoldo, que aparece por aqui de vez em quando para negócios.
Enquanto isso, Leopoldo e Muley Efrim, confortavelmente instalados numa salinha, bebiam um fino licor italiano e conversavam.
- Meu caro - disse Muley Efrim, dirigindo-se a Leopoldo - essa mocinha corresponde plenamente ao tipo de mulher de que gosta o meu senhor, Sua Majestade, o Bey de Tunis.
- Mas acontece - replicou Leopoldo imediatamente - que essa garota tão atraente eu a quero para mim. Esta recém chegada à minha fazenda, ainda não caiu nos meus braços e posso assegurar que estou loucamente apaixonado por ela. Se a mostrei a você foi só por orgulho de proprietário. Para que você pudesse invejar-me pelo fato de ser dono de um anjo com feitio humano como esse...
- Não minta, Leopoldo, você é homem de coração frio, incapaz de apaixonar-se por mulher alguma - replicou sarcástico Muley Efrim. - Já faz uma porção de anos que nos conhecemos e bem sei que sua única paixão é o dinheiro. Você pode gostar de uma mulher, mas amá-la!... O amor é coisa do coração e acho que você não possui esse órgão, Leopoldo.
- Bem, é certo que eu não tenho nada de romântico. Numa mulher só me atrai sua beleza carnal - explicou Verdier. - Mas é que Maria “Flor de Amor” é uma criatura diferente, a cujo encanto não é possível subtrair-se. Sou um gavião que roubou muita rolinha, mas nenhuma como essa.
- Sentiria ter que informar ao Bey, meu senhor, que você recusou vender-me uma jovem com encantos suficientes para poder ser a favorita desse grande príncipe - disse com gravidade e contrariedade Muley Efrim. - E isso trará como consequência a proibição de meu senhor de que eu faça negócios com você, de agora em diante...
Essa ameaça abalou Leopoldo, para quem o Bey de Tunis era o elemento-chave para a boa realização de seus sórdidos negócios.
- Estou arrependido de ter mostrado a você esse anjo, essa flor virginal cujo perfume eu queria para mim. - respondeu Leopoldo, acompanhando a frase com um suspiro, talvez o primeiro de toda a sua vida.
- Deixe de lamúrias! - replicou o árabe. - Você me entrega essa garota e receberá em troca duzentos pretos, sadios, robustos, prontos para ser embarcados no porto de Tunis.
- Apenas duzentos pretos em troca de um anjo de beleza, de uma mocinha tão fascinante como nunca teve outra o Bey de Tunis? - protestou com veemência Leopoldo Verdier. - Como se atreve, Muley, a fazer-me uma oferta tão insignificante?...
O árabe sorriu prazeirosamente. A resposta do aventureiro dava-lhe a entender que o "negócio" não ia malograr-se.
O vil traficante de carne humana que era Leopoldo entregaria a moça e, Muley Efrim poderia embarcá-la para Tunis.
Coma a certeza de que seria regiamente recompensado pelo Bey, cujo harém tinha sempre, exatamente, trezentas e sessenta e cinco mulheres, tantas como dias tem o ano. E o Bey era homem volúvel, que não tardava em cansar-se de suas escravas.
Quando se enfastiava de alguma delas, dava como presente a qualquer de seus mais fiéis cortesões.
- Está certo - disse conciliador Muley Efrim. - Por tratar-se de negócio excepcional, em vez de duzentos você receberá trezentos homens jovens, fortes, cheios de vida, ótimos para ser vendidos aos escravistas de Nova Orleans. Meu senhor é magnânimo e aprovará esta troca, na qual você vai sair grandemente beneficiado.
- Trezentos... - comentou Leopoldo. - Não é grande coisa, se considerarmos que Maria é autenticamente a Flor de Amor com que todos os homens sonham. Sim, Muley, exijo que os escravos que eu receberei para embarcá-los no porto de Tunis sejam todos, como promete, vigorosos, robustos, capazes dos mais rudes trabalhos. Você já sabe que em Nova Orleans os escravos trabalham sem descanso todos os dias da semana, incluídos os sábados e os domingos.
- Você não terá queixa da mercadoria que vou lhe proporcionar. Daqui a sessenta dias você poderá embarcar esses seus trezentos homens, no porto de Tunis, onde o seu navio deverá atracar...
- Eu os receberei considerando esse, um péssimo negócio para mim, já que devo dar em troca essa preciosa menina - lamentou-se o aventureiro.
- Você bem sabe que o apreciamos, Leopoldo. E Sua Majestade o Bey ficará muito satisfeito recebendo uma escrava como essa “Flor de Amor”. Eu ainda tenho que fazer diversas compras na cidade. Dentro de três dias estarei novamente aqui, na sua fazenda, para levar comigo essa bonita criatura.
- Saberei cumprir o prometido, por muito que me doa desprender-me de Maria "Flor de Amor" - disse Leopoldo.
Os dois homens apertaram-se as mãos e em seguida se separaram.
Uma carruagem esperava a Muley Efrim para levá-lo até a distante Nova Orleans.
“É uma tristeza ter de renunciar a uma beleza como a de "Flor de Amor", porém um negócio como esse dos trezentos escravos, não aparece todos os dias. Vou recebê-los de mão beijada. Sem pagar vintém. E ao mesmo tempo, reforço a boa vontade do Bey de Tunis para comigo a respeito de futuros negócios”.
Foi o comentário que Leopoldo fez para si mesmo após ausentar-se o árabe. Fazia anos que o aventureiro Verdier era um negreiro desalmado. Entregue desde sua juventude a esse tráfico infame, tinha amealhado uma grande fortuna, feita com sangue, suor e lágrimas infinitas de suas milhares de vítimas.
E o árabe teve razão quando disse que o vil Leopoldo só uma coisa amava neste mundo: o dinheiro, por sujo ou maldito que fosse. A beleza e o encanto angelical de "Flor de Amor" foram tentação muito forte para ele, porém ainda o seduziu com mais força a oferta de trezentas criaturas para escravizar, para tirar-lhes a pátria, a família e a liberdade, pondo-os sob o domínio da chibata dos capatazes das fazendas e à mercê do capricho dos seus compradores, quase sempre cruéis e injustos.
Pouco depois, o aventureiro fez soar uma campainha e ao criado que se apresentou ordenou-lhe:
- Diga a dona Margot que a estou esperando.
A governanta se apressou a atender o chamado do seu patrão.
- Espero que você não tenha dito a Maria "Flor de Amor" os "negócios" a que realmente se dedica meu visitante Muley Efrim - disse Leopoldo apenas teve Margot diante de seus olhos.
- Certamente que não - apressou-se a responder a governanta. - Somente temos conversado a respeito do senhor.
Eu lhe disse que o dono desta fazenda é um homem generoso, de grande coração, que ela será loucamente amada pelo senhor e que...
- Não, não é isso o que de agora em diante quero que você fale com ela. Diga-lhe que eu vou respeitá-la como se fosse minha irmã ou minha filha. Que nada tem a temer. Que pode estar tranquila no recinto de minha fazenda... Onde não penso tê-la reclusa. Ela reaverá sua liberdade, disporá de seu destino... Desde logo, não agora mesmo... Na primeira oportunidade eu mesmo a acompanharei até Nova Orleans.
- Então, o senhor vai desfazer-se dessa menina tão linda...
- Sim. Mas você já me conhece de muitos anos... Isso que lhe acabo de falar são lorotas que você transmitirá a "Flor de Amor" para que ela possa comer com apetite, cuidar de sua beleza, não ficar pálida, nem desnutrida... Você viu meu amigo Muley Efrim. Ele vai levar consigo "Flor de Amor" para ela ser a escrava favorita no harém do Bey de Tunis. Mas... Silêncio!... Este é um segredo a ser guardado por nós dois. Um deslize seu e você me paga com a vida.
- Ofende-me que o senhor duvide da minha discrição. O senhor bem sabe que nunca falei de seus negócios com pessoa alguma. Sei calar...
- Só comportando-se assim, Margot, você poderá continuar sendo a minha governanta. - Agora, já sabe, incuta confiança a Maria "Flor de Amor". Convença-a de que não vai cair nos meus braços... De que não tardará em dispor de sua liberdade... Que eu mesmo a levarei até Nova Orleans... Que estou profundamente arrependido de meu comportamento anterior...
- Está bem, senhor Leopoldo, suas ordens serão cumpridas com a exatidão de sempre - prometeu Margot.
Maria "Flor de Amor" tinha saído de seu quarto e, percorrendo um comprido corredor que conduzia até o jardim da fazenda, de repente a jovem escutou o rumor de um pranto sufocado. Uma porta estava entreaberta.
A jovem a abriu totalmente e penetrou num mísero quarto, onde, sentada no enxergão de paupérrimo leito uma mulher ainda jovem chorava desconsoladamente.
"Flor de Amor" a reconheceu em seguida. Era a dócil e bondosa escrava que lhe servia as refeições e cuidava da limpeza dos seus aposentos.
- Dolores! - exclamou Maria "Flor de Amor", cheia de compaixão. - Que há com você, querida?
A moça ergueu seus belos olhos negros de mulata, nos quais se podia ler angústia e desespero, e os fixou em Maria "Flor de Amor", ao mesmo tempo em que, de seus lábios trêmulos brotou esta resposta:
- Choro porque sou a mais infortunada das mulheres! Sou mãe, adoro minha filha, e devo perdê-la para sempre. Para nunca mais vê-la, pois vão levá-la para longe daqui, sabe Deus para onde e... Dona Maria, está vendo essa menina que agora dorme sonhando com os anjos, na minha cama?
- Sua filha Ritinha! Um encanto de criança! - ponderou Maria "Flor de Amor". - Ela é muito minha amiguinha. Gosta de aparecer pelos meus aposentos e eu brinco com ela. Seus onze anos são adoráveis. É linda, é uma simpatia!
- Pois vão tirar minha filha querida, nascida das minhas entranhas, nunca mais poderei vê-la, para sempre ignorarei seu paradeiro... Vão levá-la para longe, muito longe, sabe Deus onde, - respondeu Dolores, com a máxima aflição que possa experimentar a alma torturada de uma mãe.
- E isso, por quê? - perguntou toda surpresa Maria "Flor de Amor". - Quem vai separá-la de sua filhinha?
- Quem vai ser? O senhor Leopoldo! Esta noite passada recebeu a visita de um dos negreiros traficantes. É um tal Dimas, a quem todos chamam de "Caim". Já uma outra vez levou o meu pobre marido para vendê-lo em não sei que remota cidade. Nunca mais voltei a ter notícias de meu Tião. E agora, a esse mesmo traficante de carne humana, o senhor Leopoldo vendeu minha filha. Os dois mil dólares que por ela vai receber, lhe valem mais, muito mais que meu pranto e meu desespero, que esta lancinante dor no coração, que como mãe estou sentindo e que bem quisera que acabasse com minha vida, pois perder minha Ritinha, essa filha tão querida, minha única filha, é sofrimento bem pior do que a morte. Mas que para ele, isso não quer dizer nada.
- Mas... Isso não é possível. O senhor Leopoldo não pode ser tão cruel, tão sem coração! - opinou Maria "Flor de Amor". E acrescentou: - Quer que eu fale com ele, que lhe peça que deixe a Ritinha junto de sua mãe?
- Por favor, senhorita... Apiede-se de mim... Peça ao amo que não venda a minha filhinha... Que não a tirem de mim. A senhorita faria isso por mim? - perguntou Dolores, com uma débil luz de esperança nos olhos molhados pelo pranto.
- Por que não? Acho um dever praticar o bem. Deus condena a escravidão e aos escravistas - afirmou com ênfase Maria "Flor de Amor". - O senhor Leopoldo é cristão...

  
- O senhor Leopoldo é um traficante de seres humanos, não pode ser cristão - observou Dolores, duvidando que Maria "Flor de Amor" pudesse impedir a venda de sua menina.
- Deixe-me tentar - pediu Maria "Flor de Amor". - Quem sabe se vou conseguir comover o coração desse homem...
- Faça como quiser, senhorita, eu lhe agradeço.
Maria "Flor de Amor" saiu do quartinho, enquanto Dolores beijava com angústia e desespero as mãozinhas de sua filha, profundamente adormecida.
Leopoldo estava na varanda da casa-grande da fazenda, desfrutando a agradável temperatura daquela noite calma. Sentado em cômoda poltrona, tinha perto de si uma mesinha, na qual havia um copo e uma garrafa de uísque escocês, sua bebida predileta. Maria "Flor de Amor" foi amavelmente acolhida pelo patife. Ela pintou-lhe com vivas cores o sofrimento e angústia da mãe infeliz, cuja filha ia ser levada por um negreiro para ser posta à venda em um mercado de escravos distante. Após fazer a descrição do atroz sofrimento da infortunada Dolores, Maria "Flor de Amor" pediu pateticamente:
- Senhor Leopoldo, o senhor, que também teve mãe, apiede-se dessas duas infelizes criaturas. Não separe a menina da mulher que a trouxe a este mundo.
A brusca lembrança daquela boa mulher que foi sua genitora, que o criou e o educou com tanto desvelo e que se envergonharia dele se ainda estivesse viva, conseguiu durante um momento comover o calejado patife. Ele permaneceu em silêncio por alguns instantes e depois disse:
- Menina, você tem um modo de pedir as coisas que não é possível dizer-lhe "não".
- Então... O senhor desiste de vender Ritinha? - quis confirmar Maria "Flor de Amor", temerosa de não ter ouvido bem.
- Quando resolvo abster-me de dizer "não", só você pode duvidar de que estou dizendo "sim." - foi a resposta de Leopoldo Verdier.
- Que Deus lhe pague essa boa ação - disse Flor de Amor, trêmula de alegria, radiante. E acrescentou: - Vou correndo contar à coitada da Dolores que sua filha tão querida continuará ao seu lado.
- Está bem, minha cara menina. Pode ir - aprovou Leopoldo.
Correndo, Maria "Flor de Amor" encaminhou-se em direção do quartinho que mãe e filha ocupavam.
Dolores estava a sua espera com a ansiedade gravada naquele seu rosto de mãe dolorosa.
- Alegre-se! Ritinha não será vendida! Consegui comover o senhor Leopoldo.

2 comentários:

  1. Mais dificuldades... Quantas ainda surgirão? O legal nesse folhetim é que sempre surgem coisas novas... Muito bom, Paulo!

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  2. Paulo, pobre Maria, sempre enganada! Sempre surgem novidades surpreendentes, muito bom! Bjs

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