O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’unAnge
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXIV
MULHER
QUE NASCEU PARA SOFRER...
Leopoldo
Verdier, acompanhado de um homem alto e robusto vestido à muçulmana, apareceu
na porta do aposento em que Maria "Flor de Amor" se encontrava
conversando com Margot, a governanta. Aquele árabe era um antigo conhecido de
Leopoldo. Chegara repentinamente até a fazenda do aventureiro, seu nome era
Muley Efrim, pessoa de absoluta confiança do Bey de Tunis.
Viajava
pelo mundo inteiro com várias missões, uma delas a de comprar escravas brancas
para o seu poderoso senhor.
Era
visível a profunda admiração que a beleza de Maria "Flor de Amor"
causou no árabe.
-
Você nunca viu uma criatura mais linda, mais angelical do que esta - disse
Leopoldo, orgulhosamente, após fazer um gesto para que as duas mulheres
continuassem sentadas.
-
Realmente - reconheceu Muley Efrim - ela parece uma virgem do paraíso do
Profeta. É encantadora, não posso deixar de reconhecer.
Sem
acrescentar mais palavras os dois homens se retiraram em seguida.
A
porta fechou-se atrás deles e Maria "Flor de Amor", instintivamente
sobressaltada, perguntou a Margot:
-
A senhora sabe quem é esse homem vestido à moda árabe? Olhava-me com tão
particular interesse...
Quem
era aquele árabe e quais podiam ser suas intenções a respeito da jovem, ela não
ignorava verdadeiramente. Mas, evasiva, limitou-se a responder:
-
É um amigo do senhor Leopoldo, que aparece por aqui de vez em quando para
negócios.
Enquanto
isso, Leopoldo e Muley Efrim, confortavelmente instalados numa salinha, bebiam
um fino licor italiano e conversavam.
-
Meu caro - disse Muley Efrim, dirigindo-se a Leopoldo - essa mocinha
corresponde plenamente ao tipo de mulher de que gosta o meu senhor, Sua
Majestade, o Bey de Tunis.
-
Mas acontece - replicou Leopoldo imediatamente - que essa garota tão atraente
eu a quero para mim. Esta recém chegada à minha fazenda, ainda não caiu nos
meus braços e posso assegurar que estou loucamente apaixonado por ela. Se a
mostrei a você foi só por orgulho de proprietário. Para que você pudesse
invejar-me pelo fato de ser dono de um anjo com feitio humano como esse...
-
Não minta, Leopoldo, você é homem de coração frio, incapaz de apaixonar-se por
mulher alguma - replicou sarcástico Muley Efrim. - Já faz uma porção de anos
que nos conhecemos e bem sei que sua única paixão é o dinheiro. Você pode
gostar de uma mulher, mas amá-la!... O amor é coisa do coração e acho que você
não possui esse órgão, Leopoldo.
-
Bem, é certo que eu não tenho nada de romântico. Numa mulher só me atrai sua
beleza carnal - explicou Verdier. - Mas é que Maria “Flor de Amor” é uma
criatura diferente, a cujo encanto não é possível subtrair-se. Sou um gavião
que roubou muita rolinha, mas nenhuma como essa.
-
Sentiria ter que informar ao Bey, meu senhor, que você recusou vender-me uma
jovem com encantos suficientes para poder ser a favorita desse grande príncipe
- disse com gravidade e contrariedade Muley Efrim. - E isso trará como
consequência a proibição de meu senhor de que eu faça negócios com você, de
agora em diante...
Essa
ameaça abalou Leopoldo, para quem o Bey de Tunis era o elemento-chave para a
boa realização de seus sórdidos negócios.
-
Estou arrependido de ter mostrado a você esse anjo, essa flor virginal cujo
perfume eu queria para mim. - respondeu Leopoldo, acompanhando a frase com um
suspiro, talvez o primeiro de toda a sua vida.
-
Deixe de lamúrias! - replicou o árabe. - Você me entrega essa garota e receberá
em troca duzentos pretos, sadios, robustos, prontos para ser embarcados no
porto de Tunis.
-
Apenas duzentos pretos em troca de um anjo de beleza, de uma mocinha tão
fascinante como nunca teve outra o Bey de Tunis? - protestou com veemência
Leopoldo Verdier. - Como se atreve, Muley, a fazer-me uma oferta tão insignificante?...
O
árabe sorriu prazeirosamente. A resposta do aventureiro dava-lhe a entender que
o "negócio" não ia malograr-se.
O
vil traficante de carne humana que era Leopoldo entregaria a moça e, Muley Efrim
poderia embarcá-la para Tunis.
Coma
a certeza de que seria regiamente recompensado pelo Bey, cujo harém tinha
sempre, exatamente, trezentas e sessenta e cinco mulheres, tantas como dias tem
o ano. E o Bey era homem volúvel, que não tardava em cansar-se de suas
escravas.
Quando
se enfastiava de alguma delas, dava como presente a qualquer de seus mais fiéis
cortesões.
-
Está certo - disse conciliador Muley Efrim. - Por tratar-se de negócio
excepcional, em vez de duzentos você receberá trezentos homens jovens, fortes,
cheios de vida, ótimos para ser vendidos aos escravistas de Nova Orleans. Meu
senhor é magnânimo e aprovará esta troca, na qual você vai sair grandemente
beneficiado.
-
Trezentos... - comentou Leopoldo. - Não é grande coisa, se considerarmos que
Maria é autenticamente a Flor de Amor com que todos os homens sonham. Sim,
Muley, exijo que os escravos que eu receberei para embarcá-los no porto de
Tunis sejam todos, como promete, vigorosos, robustos, capazes dos mais rudes
trabalhos. Você já sabe que em Nova Orleans os escravos trabalham sem descanso
todos os dias da semana, incluídos os sábados e os domingos.
-
Você não terá queixa da mercadoria que vou lhe proporcionar. Daqui a sessenta
dias você poderá embarcar esses seus trezentos homens, no porto de Tunis, onde
o seu navio deverá atracar...
-
Eu os receberei considerando esse, um péssimo negócio para mim, já que devo dar
em troca essa preciosa menina - lamentou-se o aventureiro.
-
Você bem sabe que o apreciamos, Leopoldo. E Sua Majestade o Bey ficará muito
satisfeito recebendo uma escrava como essa “Flor de Amor”. Eu ainda tenho que
fazer diversas compras na cidade. Dentro de três dias estarei novamente aqui,
na sua fazenda, para levar comigo essa bonita criatura.
-
Saberei cumprir o prometido, por muito que me doa desprender-me de Maria
"Flor de Amor" - disse Leopoldo.
Os
dois homens apertaram-se as mãos e em seguida se separaram.
Uma
carruagem esperava a Muley Efrim para levá-lo até a distante Nova Orleans.
“É
uma tristeza ter de renunciar a uma beleza como a de "Flor de Amor",
porém um negócio como esse dos trezentos escravos, não aparece todos os dias.
Vou recebê-los de mão beijada. Sem pagar vintém. E ao mesmo tempo, reforço a
boa vontade do Bey de Tunis para comigo a respeito de futuros negócios”.
Foi
o comentário que Leopoldo fez para si mesmo após ausentar-se o árabe. Fazia
anos que o aventureiro Verdier era um negreiro desalmado. Entregue desde sua
juventude a esse tráfico infame, tinha amealhado uma grande fortuna, feita com
sangue, suor e lágrimas infinitas de suas milhares de vítimas.
E
o árabe teve razão quando disse que o vil Leopoldo só uma coisa amava neste
mundo: o dinheiro, por sujo ou maldito que fosse. A beleza e o encanto
angelical de "Flor de Amor" foram tentação muito forte para ele,
porém ainda o seduziu com mais força a oferta de trezentas criaturas para
escravizar, para tirar-lhes a pátria, a família e a liberdade, pondo-os sob o
domínio da chibata dos capatazes das fazendas e à mercê do capricho dos seus
compradores, quase sempre cruéis e injustos.
Pouco
depois, o aventureiro fez soar uma campainha e ao criado que se apresentou
ordenou-lhe:
-
Diga a dona Margot que a estou esperando.
A
governanta se apressou a atender o chamado do seu patrão.
-
Espero que você não tenha dito a Maria "Flor de Amor" os
"negócios" a que realmente se dedica meu visitante Muley Efrim -
disse Leopoldo apenas teve Margot diante de seus olhos.
-
Certamente que não - apressou-se a responder a governanta. - Somente temos
conversado a respeito do senhor.
Eu
lhe disse que o dono desta fazenda é um homem generoso, de grande coração, que
ela será loucamente amada pelo senhor e que...
-
Não, não é isso o que de agora em diante quero que você fale com ela. Diga-lhe
que eu vou respeitá-la como se fosse minha irmã ou minha filha. Que nada tem a
temer. Que pode estar tranquila no recinto de minha fazenda... Onde não penso
tê-la reclusa. Ela reaverá sua liberdade, disporá de seu destino... Desde logo,
não agora mesmo... Na primeira oportunidade eu mesmo a acompanharei até Nova
Orleans.
-
Então, o senhor vai desfazer-se dessa menina tão linda...
-
Sim. Mas você já me conhece de muitos anos... Isso que lhe acabo de falar são
lorotas que você transmitirá a "Flor de Amor" para que ela possa
comer com apetite, cuidar de sua beleza, não ficar pálida, nem desnutrida...
Você viu meu amigo Muley Efrim. Ele vai levar consigo "Flor de Amor"
para ela ser a escrava favorita no harém do Bey de Tunis. Mas... Silêncio!...
Este é um segredo a ser guardado por nós dois. Um deslize seu e você me paga
com a vida.
-
Ofende-me que o senhor duvide da minha discrição. O senhor bem sabe que nunca falei
de seus negócios com pessoa alguma. Sei calar...
-
Só comportando-se assim, Margot, você poderá continuar sendo a minha
governanta. - Agora, já sabe, incuta confiança a Maria "Flor de
Amor". Convença-a de que não vai cair nos meus braços... De que não
tardará em dispor de sua liberdade... Que eu mesmo a levarei até Nova
Orleans... Que estou profundamente arrependido de meu comportamento anterior...
-
Está bem, senhor Leopoldo, suas ordens serão cumpridas com a exatidão de sempre
- prometeu Margot.
Maria
"Flor de Amor" tinha saído de seu quarto e, percorrendo um comprido
corredor que conduzia até o jardim da fazenda, de repente a jovem escutou o
rumor de um pranto sufocado. Uma porta estava entreaberta.
A
jovem a abriu totalmente e penetrou num mísero quarto, onde, sentada no
enxergão de paupérrimo leito uma mulher ainda jovem chorava desconsoladamente.
"Flor
de Amor" a reconheceu em seguida. Era a dócil e bondosa escrava que lhe
servia as refeições e cuidava da limpeza dos seus aposentos.
-
Dolores! - exclamou Maria "Flor de Amor", cheia de compaixão. - Que
há com você, querida?
A
moça ergueu seus belos olhos negros de mulata, nos quais se podia ler angústia
e desespero, e os fixou em Maria "Flor de Amor", ao mesmo tempo em
que, de seus lábios trêmulos brotou esta resposta:
-
Choro porque sou a mais infortunada das mulheres! Sou mãe, adoro minha filha, e
devo perdê-la para sempre. Para nunca mais vê-la, pois vão levá-la para longe
daqui, sabe Deus para onde e... Dona Maria, está vendo essa menina que agora
dorme sonhando com os anjos, na minha cama?
-
Sua filha Ritinha! Um encanto de criança! - ponderou Maria "Flor de
Amor". - Ela é muito minha amiguinha. Gosta de aparecer pelos meus
aposentos e eu brinco com ela. Seus onze anos são adoráveis. É linda, é uma
simpatia!
-
Pois vão tirar minha filha querida, nascida das minhas entranhas, nunca mais
poderei vê-la, para sempre ignorarei seu paradeiro... Vão levá-la para longe,
muito longe, sabe Deus onde, - respondeu Dolores, com a máxima aflição que
possa experimentar a alma torturada de uma mãe.
-
E isso, por quê? - perguntou toda surpresa Maria "Flor de Amor". -
Quem vai separá-la de sua filhinha?
-
Quem vai ser? O senhor Leopoldo! Esta noite passada recebeu a visita de um dos
negreiros traficantes. É um tal Dimas, a quem todos chamam de "Caim".
Já uma outra vez levou o meu pobre marido para vendê-lo em não sei que remota
cidade. Nunca mais voltei a ter notícias de meu Tião. E agora, a esse mesmo
traficante de carne humana, o senhor Leopoldo vendeu minha filha. Os dois mil
dólares que por ela vai receber, lhe valem mais, muito mais que meu pranto e
meu desespero, que esta lancinante dor no coração, que como mãe estou sentindo
e que bem quisera que acabasse com minha vida, pois perder minha Ritinha, essa filha
tão querida, minha única filha, é sofrimento bem pior do que a morte. Mas que
para ele, isso não quer dizer nada.
-
Mas... Isso não é possível. O senhor Leopoldo não pode ser tão cruel, tão sem
coração! - opinou Maria "Flor de Amor". E acrescentou: - Quer que eu
fale com ele, que lhe peça que deixe a Ritinha junto de sua mãe?
-
Por favor, senhorita... Apiede-se de mim... Peça ao amo que não venda a minha
filhinha... Que não a tirem de mim. A senhorita faria isso por mim? - perguntou
Dolores, com uma débil luz de esperança nos olhos molhados pelo pranto.
-
Por que não? Acho um dever praticar o bem. Deus condena a escravidão e aos
escravistas - afirmou com ênfase Maria "Flor de Amor". - O senhor
Leopoldo é cristão...
-
O senhor Leopoldo é um traficante de seres humanos, não pode ser cristão -
observou Dolores, duvidando que Maria "Flor de Amor" pudesse impedir
a venda de sua menina.
-
Deixe-me tentar - pediu Maria "Flor de Amor". - Quem sabe se vou
conseguir comover o coração desse homem...
-
Faça como quiser, senhorita, eu lhe agradeço.
Maria
"Flor de Amor" saiu do quartinho, enquanto Dolores beijava com
angústia e desespero as mãozinhas de sua filha, profundamente adormecida.
Leopoldo
estava na varanda da casa-grande da fazenda, desfrutando a agradável
temperatura daquela noite calma. Sentado em cômoda poltrona, tinha perto de si
uma mesinha, na qual havia um copo e uma garrafa de uísque escocês, sua bebida
predileta. Maria "Flor de Amor" foi amavelmente acolhida pelo patife.
Ela pintou-lhe com vivas cores o sofrimento e angústia da mãe infeliz, cuja
filha ia ser levada por um negreiro para ser posta à venda em um mercado de
escravos distante. Após fazer a descrição do atroz sofrimento da infortunada
Dolores, Maria "Flor de Amor" pediu pateticamente:
-
Senhor Leopoldo, o senhor, que também teve mãe, apiede-se dessas duas infelizes
criaturas. Não separe a menina da mulher que a trouxe a este mundo.
A
brusca lembrança daquela boa mulher que foi sua genitora, que o criou e o
educou com tanto desvelo e que se envergonharia dele se ainda estivesse viva,
conseguiu durante um momento comover o calejado patife. Ele permaneceu em
silêncio por alguns instantes e depois disse:
-
Menina, você tem um modo de pedir as coisas que não é possível dizer-lhe
"não".
-
Então... O senhor desiste de vender Ritinha? - quis confirmar Maria "Flor
de Amor", temerosa de não ter ouvido bem.
-
Quando resolvo abster-me de dizer "não", só você pode duvidar de que
estou dizendo "sim." - foi a resposta de Leopoldo Verdier.
-
Que Deus lhe pague essa boa ação - disse Flor de Amor, trêmula de alegria,
radiante. E acrescentou: - Vou correndo contar à coitada da Dolores que sua
filha tão querida continuará ao seu lado.
-
Está bem, minha cara menina. Pode ir - aprovou Leopoldo.
Correndo,
Maria "Flor de Amor" encaminhou-se em direção do quartinho que mãe e
filha ocupavam.
Dolores
estava a sua espera com a ansiedade gravada naquele seu rosto de mãe dolorosa.
-
Alegre-se! Ritinha não será vendida! Consegui comover o senhor Leopoldo.
Mais dificuldades... Quantas ainda surgirão? O legal nesse folhetim é que sempre surgem coisas novas... Muito bom, Paulo!
ResponderExcluirPaulo, pobre Maria, sempre enganada! Sempre surgem novidades surpreendentes, muito bom! Bjs
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