O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’unAnge
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo XX
UMA NOITE DE PAVOR
Durante
todo o dia Maria "Flor de Amor" perambulou pelos corredores do
manicômio, medrosa, agitada, que sorte a esperaria? Como se sairiam, ela e a
enfermeira, na tentativa de fuga, com a vigilância dos guardiões, os cães
pastores que o médico malvado, soltava à noite, sempre dispostos a atacar? E
como poderia, principalmente, permanecer na capela, sozinha e escondida, junto
ao cadáver da pobre amiga? Esteve a ponto de ir procurar novamente Viviane e
lhe dizer que renunciava ao projeto de fuga, mas, como que para estimulá-la a
agir, a afastar-se daquele lugar maldito, justo quando pensava que seria melhor
esperar outra oportunidade, a voz de Démon, ou sua odiosa presença, vinham
fazer com que desejasse arriscar tudo por tudo. Faltava pouco para a meia-noite
quando, saindo do quarto, atravessou o corredor, àquela hora deserto, e desceu
a escada que conduzia à capela. A infeliz Luísa estava estendida numa mesa de
mármore, os braços cruzados sobre o peito, não havia uma flor junto do corpo,
nem mesmo uma vela acesa. Só a luz da lua deixava que Maria "Flor de
Amor" pudesse perceber aquele rosto ceráceo, os olhos abertos, que ninguém
piedosamente baixara sequer as pálpebras.
-
Minha infeliz amiga... Vítima da maldade de um homem infame! - murmurou, e
sentiu desejo de depor um beijo naquela fronte gélida. Mas a idéia de que
alguém poderia surgir de repente e surpreendê-la, fez com que desistisse.
Olhou
em torno, a capela era desmobiliada, não viu jeito nenhum de poder ocultar-se,
fosse onde fosse. Mas havia, no centro, aquela mesa de mármore, que sustentava
o cadáver, e um pequeno altar, sem luzes acesas, na parede do fundo. Hesitou um
momento mas, afinal, tremendo de medo, meteu-se sob a mesa mortuária, esperando
que Viviana aparecesse. Nenhuma voz, nenhum rumor. O relógio de uma igreja
longínqua soou doze badaladas.
-
Meu Deus, perdoai-me se para minha fuga aproveito a morte desta infeliz, e
ajudai-me! - murmurou Maria "Flor de Amor". - Luísa era boa,
queria-me bem e sei que está perto de vós, e há de rogar pela minha salvação!
A
evocação do afeto da amiga lhe deu coragem, e naquele momento o lugar macabro,
a presença do cadáver, as trevas, fizeram-lhe menos medo do que as torpes
intenções de Démon.
Finalmente,
ouviu os passos dos dois homens que deveriam levar o corpo de Luísa. Entraram.
Um deles iluminou a capela com uma lanterna e Maria "Flor de Amor" se
sentiu perdida.
"Agora
eles me verão", pensou, "agarrar-me-ão, serei levada a Démon e ele,
vendo que pretendi fugir, fará que eu fique prisioneira para sempre. Dirá que
estou louca, serei submetida a um dos seus pavorosos tratamentos para
enlouquecer os que não estão loucos, e tudo acabará para mim." Sentia
vontade de gritar, quase a lançar-se aos pés daqueles homens, quando Viviana
apareceu e ela ouviu a sua voz:
-
Eh, vocês dois aí!... - disse ela. - Verificaram se a sala de anatomia está em
ordem? Viram se a mesa operatória está pronta, se não falta nada?...
O
interpelado apressou-se a responder: - Bem... Eu não reparei e será prudente,
mesmo, dar uma olhada. A senhora, que é enfermeira calejada, sabe como se deve
agir nestes casos.
-
Pois andem, vão verificar - quase ordenou Viviana - A demora é pequena e, de
qualquer modo, a coitada não vai fugir. Falou assim aparentemente fazendo
alusão à morta.
Riu,
porque falar em fuga, naquele momento, certamente era uma piada muito fúnebre.
Mas sem dúvida se referia ao plano que estava executando. Quando viu que os
dois iam se afastando, acrescentou:
-
A noite está fresca e o trabalho que vocês devem fazer não é nada agradável...
Se quiserem, podem entrar no meu quarto e beber um pouco de aguardente que está
numa garrafa, no armário... Mas vejam lá! Não deixem a garrafa vazia!
Maria
"Flor de Amor" ouviu os passos dos homens, que se afastavam, mas
esperou, antes de se mostrar, estava quase paralisada de terror.
A
velha raposa, Viviana, porém, tinha pressa, certamente sua alma insensível não
se perturbava com a lugubridade do local e a presença da morta.
-
Maria "Flor de Amor"... Onde está você? - perguntou e, curvando-se,
descobriu a moça e lhe ordenou, com um gesto, que saísse do seu esconderijo.
-
Rápido! Vamos, não podemos perder um minuto...
Agarrou
a mão de Maria "Flor de Amor", puxou-a para fora da capela, passando
diante de um muro, levou-a até um portão que tinha ficado aberto.
-
Bem que imaginei que, pela pressa de irem atrás da garrafa, não fechariam isto
- disse Viviana. A sala de anatomia onde o doutor Démon faz as autópsias fica
do outro lado deste portão... Deixaram-no aberto para quando trouxessem de
volta o corpo para levá-lo até o cemitério, e isso é uma sorte para nós.
Venha... Vamos!
Atravessaram
o leito pedregoso da estrada, que estava deserta, e alcançaram pouco depois a
margem do rio. Continuando a caminhar sem se deterem.
-
Vamos atravessar o rio - disse Viviana. - E caminhou na frente, deixando Maria
"Flor de Amor" atrás de si.
Súbito,
a moça viu quando ela se lançava ao chão, virando-se para trás, com um dedo nos
lábios, a ordenar silêncio.
-
Devagar... - sibilou. - Devagar...
Logo
depois, uma carruagem passou e ela tomou a falar:
-
Não, pela estrada, não! - murmurou. - É perigoso... Aquela carruagem... Receio
que seja a do doutor Démon. Começaram, então, a andar pela margem, até que
chegaram a uma espécie de guarita. Um homem dentro dela, sentado, estava tirando
uma soneca...
-
Escute, bom homem, - disse Viviana - queremos passar para o outro lado do rio,
mas não é prudente ir pela ponte, pois seremos vistas... Esta pobre moça está
sendo perseguida por um malfeitor. Pediu-me ajuda e quero levá-la para minha casa.
Não há um barco aqui?
O
homem olhou as duas, por um instante, viu as feições pálidas e alteradas de
Maria "Flor de Amor", seus olhos límpidos, e disse: - Está bem,
vamos.
Caminhou
à frente delas até um ponto onde um barco estava amarrado, apanhou os remos e
fê-las embarcar, com algumas remadas, ajudado pela correnteza, atravessaram o
rio, encostando na margem oposta.
-
Muito obrigada - disse Viviana, quando desembarcou.
E
oferecendo-lhe algumas moedas, acrescentou:
-
Aceite esta pequena recompensa pelo incômodo que lhe demos...
-
Não, não quero nada - recusou ele. - Fico satisfeito por ter ajudado duas
senhoras que precisaram de mim.
Maria
"Flor de Amor" o fitou por um instante e murmurou, com doçura:
-
Muito obrigada. O senhor é muito bondoso!Não esqueceremos sua ajuda!
-
Chamo-me João Charton - disse o jovem. - Estou aqui como vigilante de um
depósito, à margem do rio... Vão fazer umas obras por aqui e terei que ficar
por estas bandas ainda por muito tempo. Podem procurar-me, quando precisarem.
-
Obrigada, mais uma vez - disseram as duas, e Maria “Flor de Amor” sorriu.
Verificava que ainda havia bondade e generosidade neste mundo.
-
E agora, não percamos tempo! - apressou Viviana. - Vamos para minha casa.
Subiram
a escarpa, encontraram um caminho que se perdia através do campo e Viviana,
seguida por "Flor de Amor", dirigiu-se para uma casa branca,
circundada por um jardim.
-
Veja... Não é feia a minha casa - disse. - O doutor Démon nunca soube que eu
tenho esta pequena propriedade. Não quis que ele soubesse porque comigo fica às
vezes uma pequena, minha sobrinha, e aquele homem é perigoso, quando põe os
olhos em cima de uma garota bonita.
-
Aqui estaremos seguras - disse Maria "Flor de Amor". - Mas eu não
quero demorar muito, não posso ficar. Fugi porque tenho um dever sagrado a
cumprir, não posso perder tempo.
-
Está certo. Pois vá, depois de repousar um pouco. Não é possível ir assim, em
plena noite... Poderia ser assaltada. Venha.
Abriu
o portão, atravessou o pequeno jardim e entrou na casa. O mobiliário era
moderno e elegante, e Maria "Flor de Amor" não compreendeu como podia
haver tanto conforto na casa da enfermeira de uma clínica.
-
Veja isto. Tudo muito bonitinho. Nesta casa recebo minhas amizades, que vêm, ou
melhor dizendo, vinham por causa de minha sobrinha, que agora se foi. A
ingrata! Fiz tanto por ela e me abandonou para casar com um pé-rapado. E pensar
que lhe dei tantos vestidos... Venha ver.
Entrou
num quarto e abriu um armário.
-Veja!
Quanta roupa bonita, não quer experimentar um vestido? Você está mal vestida,
assim... Quando a virem, não poderá apresentar-se deste modo.
-
Quando me virem? - perguntou Maria "Flor de Amor", receosa. - Mas eu
vou embora, preciso partir o quanto antes. Tenho um dever sagrado a cumprir, já
disse, não posso abandonar ao seu destino um inocente prestes a ser condenado!
-
Que ideia louca é essa, agora? Quer insistir em aventurar-se sozinha a estas
horas da noite? E diga-me uma coisa, é rico esse homem a quem quer ajudar? -
perguntou Viviana.
-
Não sei, nem importa. A única coisa que me interessa é que assim poderei
cumprir o dever que dita minha consciência.
-
Ah, sim! A consciência!... Uma bela conversa!... - falou Viviana. - Mas o dinheiro
é que conta. Pense em tudo o que pode conseguir, jovem e graciosa como você
é... O amigo que deve vir aqui, daqui a pouco, é um senhor riquíssimo...
Maria
"Flor de Amor" compreendeu, num relance, o abismo em que Viviana
queria precipitá-la.
-
Infame! - gritou. - Tirou-me daquele lugar de sofrimento para me lançar na
vergonha, e isso é pior do que tudo, para mim. Pior que tudo, ouviu?
-
Não faça drama e não diga tolices! Quero unicamente ajudá-la a se arrumar
vantajosamente. Pensei muitas vezes, vendo-a que era uma pena, um pecado, que
uma linda jovem fosse sacrificada assim. Fique aqui, não se rebele, peço-lhe.
Verá que boa vidinha vai ter! De qualquer modo, não a deixarei fugir!
-
Mantém-me prisioneira, então? Não tem esse direito! Não sou louca, bem sabe.
Recorrerei à polícia, farei o que for preciso, mas tenho que ir ao encontro do
homem que devo ajudar... Ele está na prisão - e fez menção de correr para a
janela, mas a velha a segurou.
-
Basta de idiotices! Para que esta cena? Eu teria feito melhor se não me
ocupasse de você! - Sacudiu-a violentamente e insistiu: - Quer obedecer-me?
Daqui a pouco chegará aqui Leopoldo Verdier e não deve vê-la nesse estado. Já
lhe falei de você, ele sabe que se trata de uma pequena graciosa e educada,
estranhará se eu lhe apresentar uma criatura exaltada, que não quer ouvir a voz
da razão...
Que destino cruel dos "mocinhos": saem de uma fria e entram em outra. Sinistro. Mas está bem movimentado, Paulo.
ResponderExcluirPaulo, pobre Maria, caiu numa cilada! Também coitada, foi confiar em Viviana! E agora como vai sair dessa situação? Será que vai sofrer alguma violência? Terá que voltar para a clínica ou conseguirá fugir e pedir ajuda a João Charton, que pelo jeito é uma boa pessoa? Quantas dúvidas! Quantas emoções! Muito bom! Bjs.
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