O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
2ª
Parte - Capítulo V
OS
GOLPES DO DESTINO
Sozinho
no seu quarto silencioso do pavilhão, George estava entregue a seus
pensamentos. Sempre que lhe ocorria estar em contato com doentes mentais, não
podia deixar de pensar nas terríveis circunstâncias em que, ainda muito jovem,
fora privado do afeto de seu pai, o professor Umberto Brancion, especialista em
cirurgia abdominal, um verdadeiro mago do bisturi, que era ainda lembrado por
todos quantos o haviam conhecido, apesar das circunstâncias em que abandonara o
mundo científico.
Durante
vinte anos havia se dedicado a sua especialidade, a cirurgia, e seu renome,
como sua fama, haviam atingido até países do estrangeiro. Durante vinte anos,
Dorotéia, sua bela e adorada esposa, vivera ao seu lado, sem imaginar, ainda
que de longe, que o seu Umberto sofria de terrível doença, um apavorante mal
que, embora deixando ilesos os outros órgãos do corpo, atacava diretamente o
cérebro, transtornando-o, elevando-o até a loucura.
O
professor Umberto, no entanto, conhecia seu estado, sabia que estava condenado,
desde quando se casara, mas era tal a sua paixão pela cirurgia que não quisera
retirar-se da atividade médica para se tratar ou se poupar e continuara a
trabalhar, embora soubesse que, assim procedendo, estava condenando os membros
de sua família a um doloroso suplício.
Quantas
longas e intermináveis noites de padecimentos. Com a cabeça entre as mãos, com
o cérebro torturado por dores lancinantes, ficara ele a perambular pelo luxuoso
apartamento, cerrando os dentes para não gritar de dor, para resistir à
tentação de pôr fim ao próprio sofrimento, acabando com a vida!
Aqueles
acessos dolorosos, nos primeiros tempos, felizmente eram espaçados e sempre
ocorriam durante a noite, graças ao que, embora com os nervos em frangalhos,
pudera continuar a operar, a satisfazer aquela sua vocação que o fazia ter sob
o seu bisturi e suas ferramentas médicas, vidas humanas que deviam ser salvas.
Com
o correr do tempo, porém, aqueles sofrimentos haviam atingido um grau tão
elevado, tamanha intensidade, que ele já não podia mais suportar.
Ao
contrário do que acontecia no passado, as dores lhe atormentavam tanto de dia
quanto de noite, tornando assim cada vez mais terríveis as crises e os momentos
de pavor, que ele suportava com as cruéis dores de cabeça. E finalmente, um
dia, seus nervos, tão resistentes, haviam terminado por ceder!
Sozinho
no grande laboratório do hospital onde trabalhava, no fim de uma dessas crises
dolorosas, durante a qual tivera à impressão de que seu cérebro ia estourar,
sentira que havia chegado ao fim das suas forças. Compreendeu que não poderia
resistir nem mais um dia que fosse, que tudo estava acabado para ele. Já não
dormia havia vários dias e embora a senhora Dorotéia, com lágrimas nos olhos,
lhe vivesse suplicando que fosse consultar um colega, um médico amigo que o
examinasse, que o ouvisse e acabasse por lhe prescrever um tratamento, nada
conseguia e estava longe de imaginar o terrível drama que se desenrolava dentro
dele. E aconteceu que, enquanto perambulava, certa vez, pelo laboratório, os
olhos de Umberto Brancion foram cair sobre certos vidros, sobre determinadas
caixinhas cujo conteúdo ele próprio e os outros médicos do hospital, só usavam
em casos especialíssimos.
Por
instantes, afastou os olhos do que via, sem se fixar bem, logo, porém, lhe veio
à mente um pensamento repentino: graças ao que ali estava guardado, seria
possível atenuar seu sofrimento, fazer cessar, embora apenas temporariamente,
as dores que, agora, se sentia incapaz de suportar.
E
foi dessa maneira que o professor Umberto Brancion, o ilustre cirurgião, o
campeão da mesa operatória, se tornou uma vítima da droga!
Inicialmente,
começou a tomar doses quase infinitesimais. Mas logo depois, foi forçado a
aumentar, e a aumentar sempre, para conseguir o efeito que desejava: uma trégua
das dores de cabeça, uma pausa que lhe permitisse ser, ainda, o ilustre
professor Brancion, o grande cirurgião.
Aquela
situação, porém, não podia durar eternamente. A droga, que lhe proporcionava um
alívio efêmero, passageiro, minava-lhe mais ainda o organismo, tirando-lhe as
resistências, enfraquecendo-o cada dia mais, até torná-lo incapacitado de
qualquer reação. Umberto Brancion emagreceu, ficou macilento, trêmulo. Não mais
podia segurar e manejar o bisturi e era agora um velho, embora sua idade não
fosse tanta, a perambular pelos corredores e salas do hospital, como que
alheado de tudo. Pretextando uma viagem ao exterior, passou meses longe de
casa, sem a mulher o ver, nem o filho, dormindo num albergue e comendo aqui e
ali, quando se lembrava disso.
Afinal,
como era de esperar, deu-se a tragédia! Uma tarde, quando já as terríveis dores
começavam a atormentá-lo, trancou-se no laboratório químico para recorrer, mais
uma vez, à terrível droga. Mas a caixa onde, habitualmente, encontrava o
"remédio" de que fazia uso, estava, para sua desolação e seu
desespero, completamente vazia! O produto infernal, a droga que proporcionava
momentâneo alívio ao seu cérebro semidestruído, tinha desaparecido dali!
Por
um instante, ele ficou imóvel, incrédulo, ao mesmo tempo em que as dores se
tornavam mais fortes, sempre mais fortes, insuportáveis, então!
E
tudo que o havia sustentado até aquele momento, seus nervos, sua vontade, ruiu
como uma grande construção minada na base. Os instintos mais baixos e
primitivos acordaram nele. Urrando, praguejando como um alucinado, com os olhos
fora das órbitas, agarrou um pesado escabelo de ferro e, manejando-o como uma
clava, começou a bater a torto e a direito, quebrando vidros, provetas,
filtros, material de análises, tudo o que ia encontrando à sua frente!
Justamente naquele instante um seu assistente passava diante da porta do
laboratório. Atraído pelo ruído inexplicável que vinha de dentro da sala,
forçou a porta e deu com o inesperado espetáculo.
Vendo
o professor Umberto em meio àquela desordem caótica, das mesas viradas, dos
vidros partidos, do material destroçado, entrou e foi em direção a ele,
gritando:
-
Professor!... Que é isto? Que foi que lhe aconteceu?... Por que destrói tudo
dessa maneira?
O
velho cirurgião fitou-o por instantes com olhos coléricos, o rosto contraído
pela dor que sentia no cérebro, sem reconhecê-lo. Depois, batendo com o punho fechado
no próprio peito, respondeu:
-
Eu!... Eu!... Só eu, e ninguém mais, devia entrar aqui!... Vocês, médicos, para
que servem? Para que servimos, nós, os doutores... A doença é mais forte do que
nós... Pode mais que nós... O melhor é morrer, acabar de uma vez!...
O
assistente compreendeu que seu chefe devia ter enlouquecido de repente, e se
aproximou dele com brandura, dizendo-lhe com voz que procurou tornar calma:
-
Professor, por favor... Saia daí... O senhor deve estar doente.
Aquele
impulso generoso foi, porém, a condenação, a perda do jovem médico; custou-lhe
inexoravelmente a vida!
Sem
lhe dar resposta, o louco ergueu acima da cabeça o banquinho de ferro que lhe
servia de clava para destruir tudo à sua volta e, antes que o rapaz pudesse
pensar em se defender, atacou-o com ele, batendo-lhe no crânio, com verdadeira
fúria!
Tudo
foi rapidíssimo, sem soltar um grito, o assistente tombou ao chão, levando a
mão à cabeça, numa extrema e derradeira contração, morrendo instantaneamente!
A
enormidade do ato que praticara, pareceu despertar, por alguns minutos, no
professor Umberto, a consciência da ação.
Deixando
cair o escabelo, compreendendo que agora tudo para ele estava perdido, correu
para a janela do laboratório, tentou ansiosamente abri-la, para se suicidar,
atirando-se na rua. Não teve, porém, tempo para isso. Pela porta escancarada do
laboratório entraram médicos, enfermeiros, atraídos pelos ruídos que ele fizera
e pelo barulho da queda do colega, e logo se lançaram sobre ele,
imobilizando-o.
Dias
depois, os jornais davam a seguinte notícia, que era lida com tristeza por
quantos o conheciam: "O conhecido doutor professor Umberto Brancion,
famoso cirurgião, processado pela Justiça sob acusação de homicídio e de uso de
drogas, foi condenado a morrer na guilhotina. Reconhecida, porém, sua total
alienação mental e, consequentemente, sua irresponsabilidade, deverá passar o
que lhe resta da vida num manicômio judicial."
De
punhos cerrados, com o rosto molhado pelo suor, George recordava o instante em
que, menino ainda, havia assistido à crise de dor de sua mãe, quando esta
recebera a notícia. Seu pai era um louco, que uma doença terrível e a droga com
que tratou de combatê-la, fizeram dele um assassino irresponsável. Sentou-se,
invadido por uma invencível sensação de desânimo. Muitas vezes se arrependia de
ter estudado medicina, escolhendo justamente a carreira que tão tragicamente
destruíra seu pai. Naquele instante, pensou em Maria "Flor de Amor",
para se acalmar, e procurou iludir-se com a ideia de que, àquela mesma hora, ela
também estivesse pensando nele.
"Quando
voltar para casa, hei de contar-lhe tudo", prometeu a si mesmo. "Não
quero lhe esconder nada... Ela é tão boa, compreenderá... Estou certo de que o
fato de ficar sabendo da tremenda desgraça que infelicitou nossa vida, em nada
influenciará sobre sua decisão no que tange ao meu pedido de casamento..."
"Maria,
meu anjo!...", repetiu para si mesmo, enquanto sentia que só o fato de
pensar na moça de cabelos de ouro lhe trazia à alma uma grande calma.
"Maria... Criatura de sonho... Oxalá um dia eu possa dizer: Meu bem, você
é minha querida esposa!"
Nossa, que tragédia na vida de George. Fico com pena dele, já que Maria não vai lhe dar seu amor. O que será que vai acontecer com ele?
ResponderExcluirPobre George, que história triste! E vai ficar mais triste, quando entender que Maria não o ama! Que pena!
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