quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 5 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


2ª Parte - Capítulo V

OS GOLPES DO DESTINO

Sozinho no seu quarto silencioso do pavilhão, George estava entregue a seus pensamentos. Sempre que lhe ocorria estar em contato com doentes mentais, não podia deixar de pensar nas terríveis circunstâncias em que, ainda muito jovem, fora privado do afeto de seu pai, o professor Umberto Brancion, especialista em cirurgia abdominal, um verdadeiro mago do bisturi, que era ainda lembrado por todos quantos o haviam conhecido, apesar das circunstâncias em que abandonara o mundo científico.
Durante vinte anos havia se dedicado a sua especialidade, a cirurgia, e seu renome, como sua fama, haviam atingido até países do estrangeiro. Durante vinte anos, Dorotéia, sua bela e adorada esposa, vivera ao seu lado, sem imaginar, ainda que de longe, que o seu Umberto sofria de terrível doença, um apavorante mal que, embora deixando ilesos os outros órgãos do corpo, atacava diretamente o cérebro, transtornando-o, elevando-o até a loucura.
O professor Umberto, no entanto, conhecia seu estado, sabia que estava condenado, desde quando se casara, mas era tal a sua paixão pela cirurgia que não quisera retirar-se da atividade médica para se tratar ou se poupar e continuara a trabalhar, embora soubesse que, assim procedendo, estava condenando os membros de sua família a um doloroso suplício.
Quantas longas e intermináveis noites de padecimentos. Com a cabeça entre as mãos, com o cérebro torturado por dores lancinantes, ficara ele a perambular pelo luxuoso apartamento, cerrando os dentes para não gritar de dor, para resistir à tentação de pôr fim ao próprio sofrimento, acabando com a vida!
Aqueles acessos dolorosos, nos primeiros tempos, felizmente eram espaçados e sempre ocorriam durante a noite, graças ao que, embora com os nervos em frangalhos, pudera continuar a operar, a satisfazer aquela sua vocação que o fazia ter sob o seu bisturi e suas ferramentas médicas, vidas humanas que deviam ser salvas.
Com o correr do tempo, porém, aqueles sofrimentos haviam atingido um grau tão elevado, tamanha intensidade, que ele já não podia mais suportar.
Ao contrário do que acontecia no passado, as dores lhe atormentavam tanto de dia quanto de noite, tornando assim cada vez mais terríveis as crises e os momentos de pavor, que ele suportava com as cruéis dores de cabeça. E finalmente, um dia, seus nervos, tão resistentes, haviam terminado por ceder!
Sozinho no grande laboratório do hospital onde trabalhava, no fim de uma dessas crises dolorosas, durante a qual tivera à impressão de que seu cérebro ia estourar, sentira que havia chegado ao fim das suas forças. Compreendeu que não poderia resistir nem mais um dia que fosse, que tudo estava acabado para ele. Já não dormia havia vários dias e embora a senhora Dorotéia, com lágrimas nos olhos, lhe vivesse suplicando que fosse consultar um colega, um médico amigo que o examinasse, que o ouvisse e acabasse por lhe prescrever um tratamento, nada conseguia e estava longe de imaginar o terrível drama que se desenrolava dentro dele. E aconteceu que, enquanto perambulava, certa vez, pelo laboratório, os olhos de Umberto Brancion foram cair sobre certos vidros, sobre determinadas caixinhas cujo conteúdo ele próprio e os outros médicos do hospital, só usavam em casos especialíssimos.
Por instantes, afastou os olhos do que via, sem se fixar bem, logo, porém, lhe veio à mente um pensamento repentino: graças ao que ali estava guardado, seria possível atenuar seu sofrimento, fazer cessar, embora apenas temporariamente, as dores que, agora, se sentia incapaz de suportar.
E foi dessa maneira que o professor Umberto Brancion, o ilustre cirurgião, o campeão da mesa operatória, se tornou uma vítima da droga!
Inicialmente, começou a tomar doses quase infinitesimais. Mas logo depois, foi forçado a aumentar, e a aumentar sempre, para conseguir o efeito que desejava: uma trégua das dores de cabeça, uma pausa que lhe permitisse ser, ainda, o ilustre professor Brancion, o grande cirurgião.
Aquela situação, porém, não podia durar eternamente. A droga, que lhe proporcionava um alívio efêmero, passageiro, minava-lhe mais ainda o organismo, tirando-lhe as resistências, enfraquecendo-o cada dia mais, até torná-lo incapacitado de qualquer reação. Umberto Brancion emagreceu, ficou macilento, trêmulo. Não mais podia segurar e manejar o bisturi e era agora um velho, embora sua idade não fosse tanta, a perambular pelos corredores e salas do hospital, como que alheado de tudo. Pretextando uma viagem ao exterior, passou meses longe de casa, sem a mulher o ver, nem o filho, dormindo num albergue e comendo aqui e ali, quando se lembrava disso.
Afinal, como era de esperar, deu-se a tragédia! Uma tarde, quando já as terríveis dores começavam a atormentá-lo, trancou-se no laboratório químico para recorrer, mais uma vez, à terrível droga. Mas a caixa onde, habitualmente, encontrava o "remédio" de que fazia uso, estava, para sua desolação e seu desespero, completamente vazia! O produto infernal, a droga que proporcionava momentâneo alívio ao seu cérebro semidestruído, tinha desaparecido dali!
Por um instante, ele ficou imóvel, incrédulo, ao mesmo tempo em que as dores se tornavam mais fortes, sempre mais fortes, insuportáveis, então!
E tudo que o havia sustentado até aquele momento, seus nervos, sua vontade, ruiu como uma grande construção minada na base. Os instintos mais baixos e primitivos acordaram nele. Urrando, praguejando como um alucinado, com os olhos fora das órbitas, agarrou um pesado escabelo de ferro e, manejando-o como uma clava, começou a bater a torto e a direito, quebrando vidros, provetas, filtros, material de análises, tudo o que ia encontrando à sua frente! Justamente naquele instante um seu assistente passava diante da porta do laboratório. Atraído pelo ruído inexplicável que vinha de dentro da sala, forçou a porta e deu com o inesperado espetáculo.
Vendo o professor Umberto em meio àquela desordem caótica, das mesas viradas, dos vidros partidos, do material destroçado, entrou e foi em direção a ele, gritando:
- Professor!... Que é isto? Que foi que lhe aconteceu?... Por que destrói tudo dessa maneira?
O velho cirurgião fitou-o por instantes com olhos coléricos, o rosto contraído pela dor que sentia no cérebro, sem reconhecê-lo. Depois, batendo com o punho fechado no próprio peito, respondeu:
- Eu!... Eu!... Só eu, e ninguém mais, devia entrar aqui!... Vocês, médicos, para que servem? Para que servimos, nós, os doutores... A doença é mais forte do que nós... Pode mais que nós... O melhor é morrer, acabar de uma vez!...
O assistente compreendeu que seu chefe devia ter enlouquecido de repente, e se aproximou dele com brandura, dizendo-lhe com voz que procurou tornar calma:
- Professor, por favor... Saia daí... O senhor deve estar doente.
Aquele impulso generoso foi, porém, a condenação, a perda do jovem médico; custou-lhe inexoravelmente a vida!
Sem lhe dar resposta, o louco ergueu acima da cabeça o banquinho de ferro que lhe servia de clava para destruir tudo à sua volta e, antes que o rapaz pudesse pensar em se defender, atacou-o com ele, batendo-lhe no crânio, com verdadeira fúria!
Tudo foi rapidíssimo, sem soltar um grito, o assistente tombou ao chão, levando a mão à cabeça, numa extrema e derradeira contração, morrendo instantaneamente!
A enormidade do ato que praticara, pareceu despertar, por alguns minutos, no professor Umberto, a consciência da ação.
Deixando cair o escabelo, compreendendo que agora tudo para ele estava perdido, correu para a janela do laboratório, tentou ansiosamente abri-la, para se suicidar, atirando-se na rua. Não teve, porém, tempo para isso. Pela porta escancarada do laboratório entraram médicos, enfermeiros, atraídos pelos ruídos que ele fizera e pelo barulho da queda do colega, e logo se lançaram sobre ele, imobilizando-o.
Dias depois, os jornais davam a seguinte notícia, que era lida com tristeza por quantos o conheciam: "O conhecido doutor professor Umberto Brancion, famoso cirurgião, processado pela Justiça sob acusação de homicídio e de uso de drogas, foi condenado a morrer na guilhotina. Reconhecida, porém, sua total alienação mental e, consequentemente, sua irresponsabilidade, deverá passar o que lhe resta da vida num manicômio judicial."
De punhos cerrados, com o rosto molhado pelo suor, George recordava o instante em que, menino ainda, havia assistido à crise de dor de sua mãe, quando esta recebera a notícia. Seu pai era um louco, que uma doença terrível e a droga com que tratou de combatê-la, fizeram dele um assassino irresponsável. Sentou-se, invadido por uma invencível sensação de desânimo. Muitas vezes se arrependia de ter estudado medicina, escolhendo justamente a carreira que tão tragicamente destruíra seu pai. Naquele instante, pensou em Maria "Flor de Amor", para se acalmar, e procurou iludir-se com a ideia de que, àquela mesma hora, ela também estivesse pensando nele.
"Quando voltar para casa, hei de contar-lhe tudo", prometeu a si mesmo. "Não quero lhe esconder nada... Ela é tão boa, compreenderá... Estou certo de que o fato de ficar sabendo da tremenda desgraça que infelicitou nossa vida, em nada influenciará sobre sua decisão no que tange ao meu pedido de casamento..."
"Maria, meu anjo!...", repetiu para si mesmo, enquanto sentia que só o fato de pensar na moça de cabelos de ouro lhe trazia à alma uma grande calma. "Maria... Criatura de sonho... Oxalá um dia eu possa dizer: Meu bem, você é minha querida esposa!"

2 comentários:

  1. Nossa, que tragédia na vida de George. Fico com pena dele, já que Maria não vai lhe dar seu amor. O que será que vai acontecer com ele?

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  2. Pobre George, que história triste! E vai ficar mais triste, quando entender que Maria não o ama! Que pena!

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