quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 16 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Capítulo XVI

SEM LAR E SEM AMOR

Naquela mesma noite, a pobre Maria "Flor de Amor", desconsolada, cheia de dor pela inesperada morte de sua benfeitora, vagava pela cidade adormecida com sua maletinha, sem saber para onde ir, sem sequer ter a esperança de encontrar qualquer mão amiga que se estendesse para ajudá-la e aliviar um pouco seu sofrimento.
A jovem tinha já bastante experiência do que era sofrer, mas um coração, por mais forte que fosse, e a alma mais rija teria cedido diante daquela série de acontecimentos infaustos e lutuosos!
Jamais, antes, Maria "Flor de Amor" se sentira em situação pior do que agora! Nunca seu destino se mostrara tão duro e tão impiedoso como naquela noite. Estava sozinha no mundo, sem casa, sem amigos, sem auxílio possível, sem parentes ou conhecidos a quem pudesse recorrer. Que poderia fazer? Que decisão deveria tomar? Como conseguir enfrentar e superar as dificuldades que se lhe apresentavam tão cruas? Um motivo a mais de temor, de medo para ela, era a própria beleza, que, nas suas atuais condições, deixavam-na sob ameaça ainda maior, indefesa diante do vício e da crueldade dos homens. Preferiria mil vezes ser feia, antipática, mas ter a certeza, pelo menos, de não estar sob aquela constante ameaça, a que não se podia subtrair. Mergulhada em seus tristes pensamentos, quase sem o perceber fora caminhando em direção à periferia da cidade, tristemente iluminada pelas lâmpadas noturnas. Em vão olhava à sua volta, em busca de um abrigo, um asilo, um refúgio qualquer. Já estava quase a desanimar, cansada, pensando em ir sentar-se à porta de uma igreja, entregando-se à proteção divina, quando avistou ao longe, à esquerda da rua que estava percorrendo, um letreiro iluminado por duas lâmpadas à frente de um edifício antiquado, isolado de todos os outros. Como que impelida por força estranha, caminhou naquela direção, apressadamente, fazendo os saltos de seus sapatinhos ressoarem no silêncio da noite. Quando chegou perto, viu que o letreiro que atraíra sua atenção dizia apenas isto: "ABRIGO PARA MOÇAS". A entrada era singela e bem pouco convidativa, mas naquele momento pareceu, à jovem perdida na noite, sem dinheiro, sem proteção, sem destino, um oásis de paz, um asilo, afinal, como estava pedindo a Deus. Timidamente fez soar a campainha e esperou ansiosa.
Por alguns minutos, continuou a reinar o silêncio na casa. Depois, uma luz foi acesa no primeiro andar, outra embaixo, no que devia ser um corredor e, finalmente, alguns passos se aproximaram da porta, que foi apenas entreaberta. Apareceu então o rosto de uma velhinha que trajava um pobre vestido puído pelo uso e que perguntou, com voz empastada de sono, examinando a recém-chegada da cabeça aos pés:
- Que deseja?
- Eu li o letreiro... Estou sozinha, não sei para onde ir...  Desculpe se a perturbo a estas horas...
A voz da mocinha era tão humilde e tão suave, ao mesmo tempo, que certamente causou boa impressão à velha, porque ela abriu completamente a porta e respondeu, esfregando os olhos com as mãos:
- Compreendo... Pois, então, entre.
Sem se fazer rogada, Maria "Flor de Amor" entrou naquilo que devia ser o vestíbulo e que no momento estava quase na mais completa escuridão, havendo apenas uma lamparina de azeite, fraquinha, num canto afastado. A jovem se deteve de súbito, atemorizada, mas a porteira, acendendo a luz de uma salinha de espera que ficava à esquerda de quem entrava, explicou:
- À uma hora destas, isto não parece muito acolhedor... Mas não se impressione. Vou chamar a vice-diretora.
Obedecendo, Maria "Flor de Amor" sentou-se e ficou a percorrer com os olhos as páginas de um jornal, tomado entre vários que jaziam sobre a pequena mesa de centro. Logo, porém, se desinteressou pela leitura, ao verificar que o jornal que pegara tinha data do ano anterior. Preferiu, então, ficar à espera, quieta, com as mãos no colo, sem ler mais nada. Depois de um espaço de tempo que lhe pareceu interminável, uma mulher entrou na salinha, também esta bastante idosa, ainda atando à cintura os cordões de um roupão muito semelhante ao da porteira. E foi logo perguntando:
- Com que, então, quer ser recolhida aqui?
Maria "Flor de Amor" se pôs em pé, respeitosamente, e respondeu com a maior sinceridade:
- Se for possível, minha senhora... Não tenho para onde ir...
- E de onde é que está vindo?
- De fora da cidade...
- Tem uma profissão? Ocupa-se com algum trabalho?
- Tinha, mas agora não estou trabalhando...
A vice-diretora olhou para a maleta que ela pusera a um canto, ao sentar-se.
-Que traz aí nessa valise?
Maria "Flor de Amor" corou ligeiramente.
- Apenas umas roupas íntimas... Nada possuo além disso.
- Tem documentos de identidade?
- Não, senhora. Perdi-os, há algum tempo, com a minha bolsa.
- Como é seu nome?
- Maria Aubert...
- Sabe, senhorita Maria, que não podemos aceitar ninguém que não tenha documentos de identidade?
- Mas eu perdi os meus... Dou a minha palavra!
- Não estou pondo dúvida nisso, mas é do regulamento e temos que obedecer.
Os olhos da infeliz mocinha se encheram de lágrimas.
- Então... Vai me mandar embora?
A vice-diretora fitou-a, indecisa. Talvez estivesse a perguntar a si mesma, o que se poderia esperar de mal numa criatura de aparência tão angelical.
- Bem... É o que eu deveria fazer - murmurou. - Tem dinheiro?
A jovem sacudiu a cabeça, envergonhada.
- Não.  - murmurou.
- É uma situação... Desagradável... Bem, fique aqui por esta noite. Amanhã veremos o que se pode fazer por você.
O doce semblante de Maria "Flor de Amor" se iluminou num sorriso de alegria e reconhecimento.
- Oh! Obrigado, minha senhora. Muito obrigado!
- Venha comigo. Vou lhe mostrar onde poderá dormir.
A anciã levou-a, então, ao andar superior, fazendo-a entrar num amplo salão cheio de camas, a maioria das quais ocupadas.
- Já jantou? - perguntou-lhe.
“Flor de Amor”, cada vez mais envergonhada, balbuciou:
- Não, mas não tem importância... Não tenho apetite. Não precisa se preocupar, minha senhora.
- Se não tem mesmo apetite, está com sorte. A cozinha só é aberta às oito da manhã.
Chegando ao fundo da sala, indicou uma das camas.
- Aqui está. Pode, dormir nesta cama. Ninguém a perturbará, até amanhã às sete horas. Boa noite. Não acenda a vela, pois incomodaria suas companheiras.
Sem acrescentar mais nada, a vice-diretora foi logo se afastando, silenciosamente, desaparecendo na escuridão. Maria "Flor de Amor", um pouco perturbada pela presença de todas aquelas mulheres desconhecidas, colocou a maleta embaixo do leito e, sentando-se nele, depois de um instante de indecisão, começou a despir-se. Quando se sentiu entre os lençóis, velhos, mas cheirando a limpeza, elevou mentalmente a Deus uma oração de agradecimento, por não ter permitido que continuasse sozinha, perdida naquela grande cidade tão perigosa às altas horas da noite. Depois, vencida pelo cansaço, não demorou a cerrar os olhos e adormeceu. Na manhã seguinte, acordou cedo e se levantou juntamente com as outras moças recolhidas àquela casa de proteção e, assim que desceu para o térreo, encontrou a vice-diretora, que lhe disse:
- Olhe, senhorita... Maria Aubert. Talvez tenhamos encontrado uma solução para o seu caso.
- É mesmo, minha senhora? Não sei como lhe agradecer!
- Nada de agradecimentos! Aqui está. Uma carta de apresentação para a senhora Emília Deli, que dirige o escritório de uma agência de empregos muito conceituada. Ela, provavelmente, lhe arranjará uma colocação e também uma identidade...
Depois de ter agradecido de novo, efusivamente, à velha, mas, atenciosa vice-diretora, Maria "Flor de Amor", cheia de esperanças, deu-se pressa em ir ao endereço que lhe fora designado e que estava escrito no envelope da carta de apresentação. E assim foi que chegou, pouco antes das nove horas, a um grande edifício do centro, em cujo segundo andar ficava situada a agência de empregos. Embora ainda fosse cedo, a sala de espera já estava cheia de gente, que tinha vindo à procura de uma colocação e Maria "Flor de Amor" teve certa dificuldade em ser atendida pela pessoa a quem a carta que trazia era dirigida. Afinal, depois de uma hora de espera na sala cheia de homens e mulheres impacientes e esperançosos, foi mandada entrar para um sóbrio escritório onde estava a diretora, senhora de meia-idade, trajada elegantemente. Maria "Flor de Amor" entregou a carta, que ela leu e pôs de lado. Então, olhando para o rosto sereno e agradável da moça, perguntou:
- Está querendo trabalhar?
- Preciso muito, minha senhora.
- Que é que sabe fazer? Tem alguma referência sobre sua capacidade, fornecida pelo último emprego?
Como já havia feito no estabelecimento onde fora acolhida para passar a noite, Maria "Flor de Amor" respondeu desconsolada:
- Não senhora. Infelizmente, não tenho.
- Ao menos um documento, um papel, que estabeleça ou ateste sua identidade?
- Não. Sofri um acidente, há pouco, e perdi tudo o que levava comigo.
A senhora fez um gesto de desânimo.
- Minha filha - disse - nessas condições não sei como poderei ajudá-la! Não é possível conseguir, hoje em dia, uma colocação, sem documentos... Referências...
- Mas eu estou disposta a fazer qualquer trabalho... Qualquer um...
- Acredito na sua disposição e boa vontade, mas quem admite, hoje, um empregado, exige certas garantias, para não ficar sujeito a surpresas... A lei também exige...
Naquele momento, uma empregada da agência trouxe uma carta para a diretora na qual uma cliente pedia que, com urgência, lhe fosse enviada uma jovem que pudesse servi-la inteligentemente.  Quando acabou de ler o bilhete, ergueu os olhos para Maria "Flor de Amor" e disse, sorrindo por vê-la tão preocupada e ansiosa:
- Menina, você tem mesmo muita sorte! Justamente acabo de saber que a senhora Ivonne Delapierre, pessoa muito distinta, está precisando de uma dama de companhia, ou uma auxiliar... Competente... O essencial é que seja jovem e de boa presença, requisitos que você preenche perfeitamente. Poderá ir ter com ela esta manhã mesmo. Vou lhe dar um cartão nosso e o endereço...
Enquanto ela escrevia, Maria "Flor de Amor" perguntou, timidamente:
- Posso saber... Que é que essa senhora faz?
A diretora da agência de colocação ficou um instante calada, como se hesitasse em dar a jovem a resposta pedida.
- Bem, - murmurou - o trabalho dela pode parecer um pouco... Digamos, incomum, mas, ao mesmo tempo, é muito interessante. Ocupa-se com ciências ocultas... É uma espécie de vidente, em suma.
Essa informação, em vez de tranquilizar a pobre Maria "Flor de Amor", veio a aumentar, se isso fosse ainda possível, sua enorme ansiedade. Porém, nas condições em que se encontrava não lhe era facultada outra escolha, não pôde deixar de agradecer baixando a cabeça:
- Muito agradecida, minha senhora... Agora mesmo irei ter com ela.

2 comentários:

  1. Paulo,que calvário esse da pobre Maria. Mas, encontrou ajuda mais uma vez. Pode ser que conquiste o carinho da ocultista! Vou aguardar, pra ver como vai ser. Bjs.

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  2. Ainda bem que Maria conseguiu um lugar para ficar... Vamos ver quais serão os próximos lances de sua aventura. Muito legal!

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