O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Segunda
Parte - Capítulo IX
NAS
MÃOS DO LOUCO
Quando
Umberto Brancion deu por si, a primeira impressão que teve foi de estar com a
cabeça leve, uma sensação de relaxamento muscular que há muito não conhecia.
Abriu
os olhos, lentamente, e olhou em volta de si.
Não
estava mais na fria cela do manicômio, mas num aprazível quarto todo branco do
mesmo edifício, provavelmente, mas que causava uma impressão diferente. De
retenção, sim, mas ao mesmo tempo de liberdade. Custou um bocado a pôr as
ideias em ordem. No começo, tudo lhe parecia envolto numa espécie de névoa.
Depois, lentamente, começou a recordar: a operação no cérebro, o manicômio
judiciário, tudo.
-
Então, estou salvo! - murmurou. - Desta escapei!
Por
instantes, a alegria, a simples alegria de estar vivo lhe agitou o peito. Mas
depois, esse sentimento foi ofuscado por outros pensamentos mais tristes, mais
amargos e cruéis.
-
Estou vivo... Vivo... A despeito dos desejos de minha mulher e de todos quantos
me desejavam ver morto! Não sei o que aquele médico de meia-tigela fez com a
minha cabeça, mas o fato é que me sinto bem. Estou vivo, vivo!...
Tentou
virar a cabeça, mas não pôde.
Levou
a mão ao rosto e viu que, excetuando os olhos, a boca, as fossas nasais, tudo estava
coberto, literalmente envolvido em gazes e bandagem. Sorriu um sorriso de
triunfo.
“Fez
a coisa direitinho como eu mandei! Fez a operação no rosto! Não imagina o
infeliz o que irá enfrentar agora!"
Permaneceu
imóvel alguns segundos concentrado em si mesmo. Fazia, evidentemente, uma
experiência. Mas, por mais que se concentrasse, não sentiu a menor dor na
cabeça.
-
Aquele sujeitinho insignificante me curou mesmo!... - balbuciou - Estou mesmo
salvo! Foi preciso agitar o mundo, insultar, berrar, matar, vir parar num
manicômio judiciário para ficar curado!...
Naquele
mesmo instante, a porta do quarto se abriu e apareceu Lenoir acompanhado pelo
diretor da casa. O professor Brancion fechou os olhos. Não queria falar com
ninguém, pelo menos por enquanto. Bastava-lhe ouvir. Preferia apenas escutar...
O
diretor do manicômio se aproximou do leito onde ele estava deitado e lhe tomou
o pulso. Brancion sentiu quando ele encostou-lhe ao peito a extremidade do estetoscópio,
enquanto, com a outra mão pegava a ficha clínica pendente da cabeceira do
leito. Ao fim de um minuto, a voz do diretor se fez ouvir no aposento.
-
Meus parabéns, Lenoir! Não sei como você procedeu, mas o fato é que teve
êxito... Sua carreira e seu renome estão assegurados!
-
Obrigado, professor. O que acha dele?
-
Acho-o ótimo, sinceramente. A temperatura está normal e não manifestou até aqui
nenhum sintoma de crise pós-operatória. Nunca imaginei que este homem, com a
idade que tem, fosse tão resistente. Dir-se-ia que tem um motivo para viver...
Que pensa você a respeito?
-
Francamente, não sei, diretor...
-
A propósito, por que está ele com estas bandagens no rosto? Não me parece que
essas gazes todas sejam necessárias... Mas pode respirar?
A
voz de Lenoir, quando respondeu, desta vez não foi tão firme nem arrogante.
-
É que, enquanto operava, encontrei certa dificuldade em atingir o ponto
desejado, e tive que fazer incisões na parte superior do rosto, além das da
caixa craniana. Abri frontalmente, é o que quero dizer, o senhor compreende...
-
Compreendo, compreendo... Bem, você, Lenoir, me explicará tudo detalhadamente
depois.
-
Mas é claro, professor! Farei um relatório por escrito, uma comunicação médica
acerca do processo que criei e que usei neste caso.
-
Assim é melhor. Teremos de enviar uma cópia também para o Centro de Estudos
Médicos. Naturalmente, você será chamado a comparecer a uma das sessões,
brevemente. E não o creio que, depois desse êxito, vá permanecer aqui, metido
num sórdido manicômio judiciário... Confesso que subestimei sua capacidade
profissional, Lenoir, e não hesito em lhe pedir desculpas e em congratular-me
com você. É pena que esse homem não possa ser levado em uma viagem ao
estrangeiro como prova viva do verdadeiro milagre que suas mãos operaram... Sua
vida, agora, decorrerá entre as quatro paredes de uma cela, mesmo com as
condições mentais recuperadas. O crime que ele praticou foi horrendo, foi muito
grave, e merece, ainda que com a atenuante da moléstia, a mais severa punição!
Se
os dois médicos, ao saírem do quarto, se tivessem voltado de súbito para o
operado, teriam visto dois olhos semicerrados fitos neles com uma expressão de
ódio e de zombaria ao mesmo tempo. Naqueles olhos, cintilava um lampejo de
diabólica inteligência!
Os
dias foram Passando e as condições de Umberto Brancion cada vez eram melhores.
As
forças lhe voltavam como antigamente, era grande sua vontade de viver e maior
ainda o cego desejo de vingar-se, de retornar ao mundo, de poder fazer os
outros sofrerem o que ele havia sofrido. Se a operação do cérebro tivera
inteiro, absoluto êxito, libertando-o do pesadelo daquelas tremendas dores, não
pudera, no entanto, modificar sua tendência para o mal, seu desequilíbrio
mental. O professor Brancion já não sofria suas terríveis dores, mas continuava
sendo um louco perigoso que, por exigência da Justiça deveria mesmo passar o
resto da vida na sua cela do manicômio judiciário!
O
doutor Lenoir, por seu lado, nadava em satisfação. Sua alegria atingia o auge!
Suas mais róseas esperanças, suas otimistas suposições se haviam tornado coisa
palpável: era agora um médico célebre, que era citado como um jovem audacioso e
capaz, que, por sua habilidade no manejo do bisturi, servira de exemplo e era
constantemente exaltado entre os colegas de profissão.
Havia
apresentado sua candidatura à direção de uma grande clínica, na cidade, e era
certo que seria aceito, dado o seu renome, alardeado através das revistas
médicas e em próximos congressos científicos. Todos falavam do seu grande
sucesso. Embriagado com o êxito que o bafejara, o ambicioso médico não deixava,
e isso passara já a ser quase um hábito, um dia sequer, de visitar o paciente
que lhe servira de cobaia.
Certa
manhã, ao entrar no quarto de Umberto Brancion, encontrou-o de pé, o magro
corpo metido num roupão, parado diante da janela protegida com grades.
-
Bom dia, professor! - disse o médico, segundo seu velho hábito. - Folgo em
vê-lo de pé! O senhor está se recuperando muito mais depressa do que se
esperava!
Brancion
se voltou para ele e Lenoir sentiu aqueles olhos estranhos, que sempre o haviam
impressionado tanto, fixos nos seus. Para disfarçar o constrangimento que o
invadiu, aproximou-se de Umberto delicadamente, ergueu a bandagem que ainda lhe
cobria o rosto para dar uma olhada.
-
Como está minha cara? - perguntou o louco.
-
Está muito bem, professor. Tão bem quanto o seu cérebro!
-
Vai demorar ainda muito tempo, até que eu possa retirar esses panos todos daí?
- perguntou Brancion, novamente.
-
Digamos... Mais uns vinte dias, talvez. Ou talvez mais um pouco. As cicatrizes
no rosto custam muito a fechar totalmente e não é bom que fiquem expostas ao
ar, à poeira do ambiente... O que poderia estragar todo o trabalho feito.
Confesso francamente que, ainda agora, não chego a compreender o motivo de sua
impaciência.
A
passos lentos, Brancion se dirigiu para a cama e nela se sentou.
-
O motivo? Pois vai sabê-lo sem demora, não tenha dúvida!
Sua
voz saía sufocada de dentro das bandagens e tinha uma entonação estranha.
Lenoir
se virou para ele, perplexo.
-
Que é que vou saber? - perguntou.
-
Você pensava que eu ia sujeitar-me a me entregar ao seu bisturi, a pôr em risco
a minha vida como se fosse um miserável porquinho-da-índia, uma cobaia em suas
mãos de operador inexperiente, sem que nem para que, só pelos seus belos olhos?
Pode ser que eu seja louco, mas não a tal ponto! Meu interesse era muito outro!
-
Professor, o que está dizendo?... Não entendo!
-
É engraçado, doutor Lenoir! Mas basta procurar acompanhar o meu raciocínio: o
senhor queria a celebridade, as honrarias, e vai ter tudo isso, terá também,
naturalmente, riqueza, e isso foi obtido com o coração leve, despreocupado, com
a certeza de não correr nenhum risco, pois tudo tirou do crânio de um
criminoso! É uma bela recompensa esta.
-
É a mesma recompensa que conquistaram milhares de outros, antes de mim, no
campo da ciência!
-
Sim, não o nego. Mas acontece que o elemento principal da experiência, não teve
vantagem nenhuma... Qual foi a vantagem que recebi?
-
Lembre-se de que sua vida foi salva! Esquece isto! Talvez a esta hora, sem a
minha intervenção, o senhor estivesse morto!
Inesperadamente,
com um salto felino que o outro não pudera prever, principalmente num homem
ainda convalescente, Umberto Brancion se lançou sobre o médico, agarrou-o pelos
braços. E sacudiu-o violentamente.
-
Imbecil! Imbecil!... - sibilou-lhe no rosto - Pensa que eu ia querer ter salva
a minha vida, ia querer ser libertado das dores que me torturavam, só para
poder continuar vivendo aqui dentro, recluso, entre estas grades, até o dia de
minha morte? Você é um idiota, meu famoso doutor Lenoir! Enganou-se
redondamente!
O
médico, dominado por tremenda suspeita, libertou-se das mãos dele como pôde,
deu um passo à retaguarda, disposto a abrir a porta, com a intenção de
escapulir do quarto.
Mas
a voz do louco teve o poder de impedir-lhe os movimentos, de detê-lo imóvel,
petrificado pela surpresa e pelo terror.
-
Pare aí, doutor Lenoir! Não dê mais um passo ou estará perdido! Tudo o que o
senhor conseguiu com o êxito da operação irá por água abaixo, num piscar de
olhos, se atravessar aquela porta!
-
Que quer de mim? - murmurou Lenoir, apavorado. - Nada posso fazer pelo senhor,
mais do que já fiz! Mais nada!
A
risada de Brancion lhe abafou as últimas palavras.
-
Ah, ah, ah!... Nada! Ao contrário, pode fazer muito! Muitíssimo!
-
O senhor se engana se pensa que eu o ajudarei de qualquer modo que seja. É um
louco, um criminoso e deve pagar pelo delito que praticou! Fiz o que estava ao
meu alcance para chegarmos ao ponto em que estamos. Mas não quero acabar na
cadeia também, como um idiota, por sua causa!
-
Mas será isso o que acontecerá, Lenoir, justamente isso, se não me ouvir! Você
está em minhas mãos! Posso destruí-lo, riscá-lo do mapa, lançá-lo na lama,
quando bem entender! E sabe por quê?
Frederico
Lenoir, com o rosto contraído, banhado de suor, numa contração espasmódica,
levou a mão à cabeça.
-
Basta! Basta!... - Asseverou Lenoir. - Cale-se, se não quer que eu o mate!
-
Matar-me? - zombou o louco. - Talvez isso seja o que lhe aconteça, não a mim,
quando eu achar oportuno... Por enquanto, porém, não quero pensar nisso, pois
tenho meios de obrigá-lo a me obedecer!
O
doutor Lenoir ergueu a cabeça num gesto de rebelião.
-
Esquece que está preso num manicômio judiciário, que é tratado como um
criminoso e assim ficará por muito tempo! - gritou. - O senhor nada pode contra
mim!
-
Isso é você quem diz, Lenoir, mas eu penso de modo contrário. Você mesmo foi
quem colocou na minha mão a arma que o fará escravo da minha vontade, enquanto
eu bem quiser. Esquece-se de que me operou abusiva e ilegalmente contra a
vontade de minha mulher e que só graças à assinatura falsa, que eu nem sequer
imitei, é que pôde realizar a experiência que lhe deu celebridade?
As
palavras do professor Brancion saíam de seus lábios sibilantes e, uma por uma,
pareciam cair sobre seu interlocutor como verdadeiros petardos.
-
Que é que o senhor pretende, afinal? - perguntou Lenoir, derrotado.
-
Se você não fizer exatamente o que eu disser, se não se submeter estritamente à
minha vontade... Farei todos saberem, tornarei público o fato que mencionei: a
sua trapaça, a sua culpa, esteja certo disso!
-
Não acreditarão num louco! Não lhe darão crédito!
-
É o que você pensa!
-
Você não passa de um demente, um alienado, um irresponsável!
-
Nada disso tem a mínima importância. Bastará que eu peça a intervenção de minha
mulher e tudo estará acabado para você, meu famoso doutorzinho, tudo irá pelos
ares: adeus fama, adeus celebridade, renome, glória e dinheiro! O que virá será
a cadeia... Insista nessa atitude estúpida e aquilo que poderia ser um êxito
formidável redundará em tremendo fracasso. Tudo o que você conseguiu até agora
será esquecido e de você, um delinquente como outro qualquer, ninguém mais se
ocupará, senão para condená-lo e desprezá-lo. Breve, ninguém mais se lembrará
que você existiu!
Derrotado,
vencido, Frederico Lenoir se deixou cair numa cadeira com as mãos abandonadas
sobre os joelhos. Pensava no cruel destino que o tornava, levado pela sua
grande ambição, num joguete nas mãos de um irresponsável! Que teria de aceitar
aquela submissão, aquele domínio, se quisesse firmar seu renome no mundo
científico, para conquistar a celebridade tão desejada!
Lentamente,
com voz cavernosa, perguntou:
-
Bem... Que quer o senhor que eu faça?
Os
olhos deUmberto Brancion brilharam de triunfo por entre as gazes da bandagem.
-
Vejo que o mocinho não é tão idiota como parecia - zombou ele. - Esperneou um
pouco, mas acabou aceitando os meus conselhos, afinal!
-
Não posso fazer outra coisa, não tive, realmente, muito escrúpulo e não quero
pôr a perder o que já obtive com tanta dificuldade, com o risco de comprometer
toda a minha carreira.
-
Isso! Assim é que se fala, meu caro doutor Lenoir!
-
Já o operei, mudei completamente sua fisionomia, nem mesmo sua esposa
reconhecerá o seu perfil. Que mais quer?
-
Mas, por Deus! É muito simples: quero que me tire daqui...
Num
pulo, Frederico Lenoir se pôs de pé.
-
Sair daqui? Tirá-lo daqui? Mas, é impossível!
-
Ou, pelo menos, o senhor pensa que seja...
-
Professor Brancion, não estamos num simples hospital, numa clínica comum qualquer,
mas num manicômio judiciário para dementes criminosos, onde há grande
vigilância, onde os doentes são cercados de cuidados especiais, como criminosos
que são, isto é, numa autêntica prisão! Não, não pense que vai poder fugir
daqui, que os guardas possam ser ludibriados. O senhor não conseguirá chegar
até o portão de saída sequer!
As
bandagens se agitaram sobre o rosto de Umberto Brancion, pois ele ria, ria como
se tivesse ouvido uma boa anedota.
-
Lenoir, você me toma por louco, e é provável que eu o seja... Mas a minha
matreirice não foi afetada. Digo-lhe que sairei daqui, com a sua ajuda, e sei o
que estou dizendo e não é nenhuma loucura! Eis como farei, ou melhor, como
faremos...
Brancion
ia começar a detalhar seu plano de fuga, quando ouviram ruídos no corredor
junto da porta do quarto.
Antes,
porém, que a porta fosse aberta e desse passagem a quem chegava, rápido como um
relâmpago, com uma presença de espírito espantosa, ele se lançou no leito,
sussurrando para Frederico Lenoir que estava estático:
-
É a enfermeira com o almoço. Vá embora sem dizer nada e venha aqui esta noite,
depois das dez...
Dr Lenoir entrou bem! E foi assim que surgiu o Dr Démon! Que história incrível! Muito bom!
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