O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Segunda
Parte – Capítulo XII – Parte 2
UM
EX-NOIVO QUE APARECE
-
Negócios? - repetiu Denise, com um lampejo de medo nos olhos. - Que quer dizer
com isso?
O
ladrão sorveu com deleite outro gole e depois, enxugando os lábios, exclamou,
sem sequer olhar para ela:
-
Mas é simples, querida!... Se você não quiser voltar ao passado e continuar...
a ter aquela vidinha miserável de quando lhe conheci. Você agora é a mulher do barão Luís Paulo,
não é?
-
Claro que sou...
-
Mas, antes disso, você foi minha noiva. E o foi antes de conhecê-lo.
A
baronesinha conteve a custo mais algumas lágrimas de raiva.
-
Infelizmente é assim. E daí?
-
Daí que, assim como eu fui tão gentil deixando que minha noivinha casasse com o
barão de Rastignac, é justo que o barão ceda para mim qualquer coisa que possua
em abundância: dinheiro, por exemplo! Não acha legal?
-
Afonso!... Espero que você não seja tão desastrado, que queira fazer chantagem
com Luís Paulo!
O
bandido levou a mão ao peito, com ar de indignação teatral.
-
Chantagem?! Mas, que palavra horrenda! Eu já lhe expliquei direitinho, trata-se
apenas de uma pequena ajuda!
Um
silêncio tumular se seguiu a estas palavras.
Denise,
sentada na poltrona, fitava Afonso com a mesma expressão com que se olha um
animal peçonhento. Dividida entre o temor de ver Luís Paulo surgir ali a
qualquer instante, e o de desencadear a cólera e a violência do malandro,
sentia-se tolhida, inibida, sem força sequer para reagir. Reagir! E, de resto,
que adiantaria isso, contra um homem como Afonso, que ela tão bem conhecia?
Fora
noiva dele, chegara mesmo a acreditar que o amava, durante certo tempo... E era
justamente pelo erro que cometera então, que agora ele se sentia perfeitamente
seguro de si, sabendo que a tinha nas mãos, indefesa.
Afonso,
enquanto a filha da marquesa Renata jazia imersa em seus pensamentos,
continuava tranquilamente a beber e a comer, como se estivesse numa sala de
bar, de um dos bares equívocos que estava habituado a frequentar.
Aquela
bebida, depois do período de prisão, da fome com que chegara, das peripécias da
fuga, avermelhava-lhe as faces e subia-lhe à cabeça, tornando-o loquaz e
pilhérico.
-
Querida Denise - disse ele - você, que põe tamanha dificuldade para arranjar
uma simples roupa usada, devia passar uns dias lá onde eu estive, para ver como
a vida é feia! Ah! O que eu passei, você nunca passou!
Colocou,
sem a menor cerimônia, os pés sobre a mesinha em que se encontrava a bebida e
continuou:
-
Oh! Não quero falar da prisão... A ela já estou habituado, já somos velhos
conhecidos... Mas o resto! O pior momento foi quando aquele imbecil que pensa
que é seu pai, o tal conde Fernando, foi ao xadrez, para me identificar. Ah!
Como eu gostaria de amarrotar, ali mesmo, aquele orgulhoso fidalgo!
Denise,
procurando manter calma a voz, porque sabia que com violência nada conseguiria
mesmo, murmurou:
-
Afonso, sou bastante capaz de avaliar o que você passou, mas agora não é o
momento oportuno para me contar isso, deve compreender... Se por acaso Luís
Paulo...
-
Bolas para o seu Luís Paulo! Não tive medo dos policiais, que são homens de
verdade e armados, vou ter de um almofadinha como esse barão Luís Paulo de
Rastignac?
-
Mas... Ele vai chegar Afonso! Já devia estar aqui!
O
bandido fez com a mão um gesto seco:
-
E que bem me importa? Arranje outra garrafa de champanha, isso sim! Mostre que
é uma boa anfitriã, uma ótima dona de casa. A propósito, não quer saber como
consegui chegar até aqui?
Denise
fez um esforço tremendo para dominar os nervos, para não começar a urrar de
raiva, de desespero.
-
Claro! Desejo saber a quem devo agradecer isso!
-
Ah, ah, ah! Vejo com prazer que começa a ficar espirituosa! Já começava a
desconhecê-la... A quem deve agradecer? Antes de tudo à estupidez dos tiras que
me acompanhavam. Foi a coisa mais fácil do mundo, escapar das mãos daqueles
palhaços! Feio, mesmo, foi quando tive que saltar da carruagem em movimento, no
perigo que uma roda me passasse pelo peito, ou me deixasse capenga. Mas não
havia outra solução. Você gostaria bem que eu me tivesse arrebentado todo, hem,
Denise?
A
jovem não respondeu, mas seus olhos foram bastante eloquentes.
-
Mas, como agora estou aqui, fazendo-lhe esta boa companhia, é óbvio que não
aconteceu assim - disse Afonso, sorrindo complacente. - Mas que o tombo foi
feio, isso eu lhe garanto, e ainda estou sentindo nos músculos as consequências
dele! Tamanha, no entanto, era a minha determinação de fugir daqueles meganhas
malditos, que nem reparei para onde estava me jogando e caí de qualquer jeito
lá embaixo e tive que ficar escondido três dias... Três dias verdadeiramente
infernais! E uma coisa eu lhe garanto, Denise: a turma levou mesmo a sério a
busca e a minha captura. Puseram em ação homens aos bocados e até cães
policiais! Se fosse um paspalhão qualquer, eles teriam ganho a partida. Mas
como era eu o perseguido, a coisa foi muito diferente. Sei me defender, sei
como trabalho e me meti dentro da lama do charco, onde nem com crocodilos de lá
me poderiam arrancar! Bem, não digo que tivesse sido agradável, mas que deu pé,
isso deu! Quando tive mesmo certeza de que a turma havia desistido e dera o
fora, pois essa gente se cansa fácil e logo fica com fome e saudades do bem-bom
lá de sua casa, sai. Também eu estava faminto, cansado, sem forças, com uma
fome violenta, e me arrastei como pude ao ponto habitado mais próximo, em busca
de um lugar onde pudesse descansar e comer. Pensava que naquele ambiente de
trabalhadores, de gente simples, não despertaria atenção. Mas eu estava tão
esbodegado, devido à fuga pelos matos, à permanência dentro d’água, que o
safado do dono do boteco onde entrei logo desconfiou de qualquer coisa. De
fato, estava eu acabando um jantarzinho às pressas, que ele me arranjara,
quando me agarraram pelo braço e ouvi uma voz dizer ao meu lado: "Quietinho,
rapaz. Não faça bobagem e venha comigo. Nada de tentar fugir, sabe disso?
Senão, terei que disparar." Virei-me rápido e vi um tira fardado, um cara
pequenino, que, com a mão no coldre da pistola, olhava para mim com cara de
papão. No começo, fiquei assustado, quase entreguei os pontos, mas logo pensei
na minha boa estrela e fiquei calmo. O polícia era mocinho e naturalmente seco
por mostrar serviço, por uma ocasião para se mostrar, aparecer, conseguir uma
promoção. Eu, sempre matreiro, deixei-me prender por ele. Estava uma noite
escura de fazer medo e chuviscava. Esperei que dobrássemos uma esquina,
escapando ao olhar idiota dos curiosos que acompanhavam a cena e, com um
safanão repentino, libertei o braço que ele segurava e no mesmo momento dei-lhe
um belo direto no queixo que o prostrou de costas na sarjeta cheia de água! Ah,
ah, ah! Foi um golpe e tanto!
Denise,
agora, fitava com horror o miserável que, ao recordar o que fizera, torcia-se
de rir.
O
caso é que Afonso já devia estar bastante embriagado, e por isso mostrava
aquela coragem toda, pois sabendo que o barão Luís Paulo estava para chegar e
poderia surgir de um minuto para outro, não dava o menor sinal de preocupação,
antes procurava divertir-se com a tortura que infligia à Denise.
Depois
de ter limpado a garganta, sem esperar sequer que a mulher dissesse alguma
coisa, continuou:
-
Como não sou nenhum idiota, tratei de me afastar o mais possível do local e até
dos pontos frequentados por muita gente. Fui forçado a passar ainda uma noite
ao relento, embora chovesse e fizesse um frio danado. Mas nem por isso estava
de mau humor, pois tinha a certeza de que, assim que conseguisse chegar aqui,
teria a compensação merecida por tudo quanto enfrentara. Eh, arranje mais o que
beber, mulher!
Denise,
com a mão a tremer, encheu outra taça para ele e recebeu em paga um sorriso
forçado.
-
E por fim - continuou o larápio - já era tão grande o desejo de tornar a lhe
ver, que decidi meter o pé na estrada estadual e a pedir uma carona a algum
cocheiro. A princípio, nenhum quis parar e fiquei furioso da vida. Mas não
podia condenar aqueles desgraçados, porque, afinal, havendo tantos malfeitores,
tantos marginais espalhados por aí, e agindo principalmente nas primeiras horas
da noite, tinham o direito de procurar evitar encrencas, não parando suas
carruagens numa estrada deserta para me ajudar. Não é isso mesmo, Denise?Ah,
ah, ah! Depois de uma hora de paciente espera e vãs tentativas, apareceu um
camarada guiando uma charrete mambembe, com um cavalo velho e feio, e este,
talvez acreditando que ninguém se daria ao trabalho de assaltá-lo, parou e me
deixou subir. Ah! Você não imagina que sujeito gentil aquele! E senti
imensamente quando, querendo eu ir para um lado, e ele indo justamente para o
caminho contrário, tive de fazê-lo descer, com um soco, da charrete. Ainda
parei um pouco, logo adiante, para ver se o sujeito tinha se machucado na
queda, mas não demorei muito e nem vi direito, porque estava ansiosíssimo por
chegar perto de você.
-
Então - reprovou a baronesinha que, no íntimo, sendo mulher e ainda jovem,
sempre possuía em si um resquício de humanidade - você teve a coragem de matar
um homem que não lhe havia feito nada, só para lhe roubar a carruagem?!
-
Matar? Que é isso, Denise?! Se ele não teve a infelicidade de bater com a
cabeça numa pedra, nada lhe deve ter acontecido. E se bateu, azar o dele! A
culpa foi minha? E quanto à charrete, eu a fiz cair no rio, aqui perto... Não
valia nada!
-
Denise, frente a tamanho cinismo, a tanta maldade, perdeu o resto da esperança
que ainda alimentava de livrar-se daquele monstro.
Afonso,
por sua vez, virando sempre a taça entre cada frase, deu por concluído o
repugnante relato:
-
Mas agora, que aqui estou, sei que as dificuldades se acabaram. Bebo à saúde de
todos os policiais e de todos os estúpidos donos de carruagens do mundo!
Viva!...
E
com um gesto inesperado atirou a taça em que bebia contra a parede, fazendo-a
em pedaços.
Denise,
apavorada ante a idéia de que algum dos criados pudesse ter ouvido o barulho, e
acorresse, pôs-se de pé e, de olhos cintilantes de fúria, gritou:
-
Afonso! Agora basta!
-
Basta? Mas se apenas começamos...
-
Está completamente bêbado!
-
Ah, ah, ah! Não me conhece direito! Eu, bêbado? Que besteira! Só bebi duas
garrafinhas...
-
Ouça, Afonso: eu já fiz por você tudo o que podia, suportei sua presença até
este momento, mas agora não posso mais! Tem de ir embora, e já, compreende? Vá,
vá dando o fora!
Uma
risada sarcástica fez eco às palavras da jovem baronesa.
-
Dar o fora, se mal acabo de chegar!... Ora vejam!
-
Que mais quer, agora? Fale, não me ponha louca!
De
repente, a fisionomia do bandido se modificou. Ficou sério e seus olhos
brilharam de ferocidade.
-
Ora, que é que quero e preciso, você sabe muitíssimo bem!
Num
gesto nervoso, Denise retirou do pescoço um belíssimo colar de brilhantes e
estendeu o braço na direção do chantagista.
-
Afonso - disse com voz rouca - o dinheiro em espécie que dei a você há pouco
não é muito, sei perfeitamente. Pois, tome este colar. Vale um bocado de
dinheiro, talvez milhões... Leve-o, mas saia imediatamente deste palácio!
O
miserável segurou o colar e fez os brilhantes perpassarem entre seus dedos com
indiferença.
Depois,
como se estivesse a pegar num objeto sem nenhum valor, atirou-o sobre a
mesinha, junto à taça e à garrafa, sem sequer olhar para o ponto onde foi cair.
-
Denise - exclamou - tenho a impressão de que você está ficando completamente
idiota...
-
Por quê? Que fiz eu para... - disse ela, sem entender.
-
Que fez você, Denise? Então acha que eu seria tão imbecil para tentar vender um
colar desses, o que me faria cair direitinho nas unhas da polícia? Não eu,
minha filha! Sou um otário? Vê lá!...
-
Mas, então, não vejo outra maneira de lhe ajudar!
-
Disso falaremos mais tarde, com vagar, não tenha dúvida. Por ora, o problema é
um só: preciso de um esconderijo.
Denise
sentiu um aperto no coração.
-
Com dinheiro, isso será fácil... - murmurou.
-
Dinheiro? Não... Não adianta. O lugar que vai servir como esconderijo eu já
encontrei e garanto que não se poderia desejar coisa melhor!
A
voz do ladrão era firme, decidida, e seus olhos percorriam o aposento, à sua
volta.
Denise
levou a mão à boca, como para abafar um grito.
-
Não, Afonso! Que é que está pensando fazer?
O
bandido se pôs de pé e se aproximou dela com ar ameaçador.
-
Vou fazer o que qualquer homem inteligente faria no meu lugar: permanecerei
aqui!
Os
olhos de Denise se fizeram enormes pelo terror.
-
Não! Aqui, não! É impossível!
-
Nada disso, é possibilíssimo, até! Ademais, quem me pode expulsar daqui?
-
Mas, Afonso, você enlouqueceu? Esqueceu meu marido?
-
Ora! Logo você é quem vem dizer uma coisa dessas? Você, que é a campeã das
campeãs da mentira, da embromação? "Meu marido!". Que tolice é essa
que lhe deu?
-
Luís Paulo não é nenhum tolo e perceberá!
-
Este palácio é grande demais e vou poder esconder-me nele, até me cansar de não
viver livre. Os tiras vão me buscar em toda parte, menos na suntuosa morada do
ilustre barão Luís Paulo de Rastignac.
Denise
procurou reprimir o tremor que a agitava toda. Sentia-se inteiramente nas mãos
do ladrão, totalmente à sua mercê. Não havia como resistir.
-
Mesmo, porém, que Luís Paulo não chegue a saber de nada - objetou a baronesa,
fracamente - terei que confiar sua secreta presença à minha camareira.
Afonso
pareceu indeciso por instantes, mas logo depois, dando de ombros, disse:
-
Você pode pô-la a par do seu segredo... Ela calará, se você comprar seu
silêncio. Não será a primeira vez que uma camareira cala o bico, tornando-se
cúmplice dos segredos da patroa. Basta prometer que você não se mostrará
ingrata para com ela.
-
É loucura! É loucura! Ai eu ficarei sempre dependendo dela, sem sossego,
receando que me possa trair, que vá contar tudo a LuísPaulo! Não, Afonso, não
posso, não farei isso nunca!
Cerrando
os dentes, o bandido aferrou os dedos no braço da mulher e sacudiu-a
violentamente.
-
Você fará o que eu mandar! - rosnou. - E nada de objeção! Acha que também eu
não estou correndo risco?
-
Não tem o direito de me impor a sua vontade, Afonso! E vá embora! Eu já não o
suporto!
Sorrindo
ironicamente, o bandido largou o braço da baronesinha e tornou a sentar-se, com
ar falsamente resignado.
-
Pois, muito bem... - murmurou, abrindo os braços. - Se você preferir contar ao
seu Luís Paulo... Você é quem sabe. Mas não creio que ele seja assim tão
mansinho, que não sapateie quando vier a saber que você me amou... Que foi a
noiva de um bandido. Você, que agora é baronesa e pertence à alta-roda!
Denise
cerrou os punhos, como se, com as unhas róseas e agudas, tivesse vontade de
cravá-las na garganta do miserável.
-
E quem lhe contará isso? - gritou.
-
Eu! Ora, quem há de ser? Não já disse que decidi ficar aqui à espera dele?
-
Canalha! Miserável! Nojento!
-
Ora, Denise, que é isso?... Chega! Cale-se!
-
Não, não me calo! Criminoso, vagabundo!
E
a baronesinha, cega pela ira, agarrou uma das garrafas vazias que estava sobre
a mesinha e fez o gesto de arremessá-la contra Afonso.
O
marginal, porém, embora meio perturbado pela bebida, não demonstrou sentir
medo.
Deu
um pulo de gato e, agarrando o braço dela, torceu-o com toda violência,
obrigando-a a largar a garrafa e fazendo-a cair de joelhos, gemendo de dor.
-
Vigarista! - sibilou, rangendo os dentes. - Até agora eu suportei os seus
insultos, mas agora chega, compreendeu? Chega! É uma comediante suja, uma
odiosa impostora e quer bancar a fidalguinha, mas comigo, isso não cola!
Farsantes como você, eu sei como se trata! E se levantam a cabeça, piso nelas,
como animais!...
E
dando-lhe um tremendo empurrão, atirou-a por terra, de costas.
-
Eis o que deve esperar de mim a senhora baronesa. E agora veja se tem gana de
inventar algum meio de trair-me! - ameaçou, ao mesmo tempo em que erguia o pé,
como se quisesse realmente cumprir a ameaça contida nas palavras pronunciadas
pouco antes.
Denise,
aterrorizada, soltou um grito abafado:
-
Não, Afonso, eu peço a você...
-
Ah! Agora "pede", não é? Vá para o inferno!
Paulo, o inferno agora, está sendo de Denise, tomara que demore a sair dele rsrsrs. E Afonso, vai ser um osso duro de roer! Gostei muito!
ResponderExcluirNossa, até fiquei com pena de Denise, esse Afonso é mau mesmo. Vamos ver o que vai acontecer com eles...
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