domingo, 20 de janeiro de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 12 - PARTE 2 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Segunda Parte – Capítulo XII – Parte 2

UM EX-NOIVO QUE APARECE

- Negócios? - repetiu Denise, com um lampejo de medo nos olhos. - Que quer dizer com isso?
O ladrão sorveu com deleite outro gole e depois, enxugando os lábios, exclamou, sem sequer olhar para ela:

  
- Mas é simples, querida!... Se você não quiser voltar ao passado e continuar... a ter aquela vidinha miserável de quando lhe conheci.  Você agora é a mulher do barão Luís Paulo, não é?
- Claro que sou...
- Mas, antes disso, você foi minha noiva. E o foi antes de conhecê-lo.
A baronesinha conteve a custo mais algumas lágrimas de raiva.
- Infelizmente é assim. E daí?
- Daí que, assim como eu fui tão gentil deixando que minha noivinha casasse com o barão de Rastignac, é justo que o barão ceda para mim qualquer coisa que possua em abundância: dinheiro, por exemplo! Não acha legal?
- Afonso!... Espero que você não seja tão desastrado, que queira fazer chantagem com Luís Paulo!
O bandido levou a mão ao peito, com ar de indignação teatral.
- Chantagem?! Mas, que palavra horrenda! Eu já lhe expliquei direitinho, trata-se apenas de uma pequena ajuda!
Um silêncio tumular se seguiu a estas palavras.
Denise, sentada na poltrona, fitava Afonso com a mesma expressão com que se olha um animal peçonhento. Dividida entre o temor de ver Luís Paulo surgir ali a qualquer instante, e o de desencadear a cólera e a violência do malandro, sentia-se tolhida, inibida, sem força sequer para reagir. Reagir! E, de resto, que adiantaria isso, contra um homem como Afonso, que ela tão bem conhecia?
Fora noiva dele, chegara mesmo a acreditar que o amava, durante certo tempo... E era justamente pelo erro que cometera então, que agora ele se sentia perfeitamente seguro de si, sabendo que a tinha nas mãos, indefesa.
Afonso, enquanto a filha da marquesa Renata jazia imersa em seus pensamentos, continuava tranquilamente a beber e a comer, como se estivesse numa sala de bar, de um dos bares equívocos que estava habituado a frequentar.
Aquela bebida, depois do período de prisão, da fome com que chegara, das peripécias da fuga, avermelhava-lhe as faces e subia-lhe à cabeça, tornando-o loquaz e pilhérico.
- Querida Denise - disse ele - você, que põe tamanha dificuldade para arranjar uma simples roupa usada, devia passar uns dias lá onde eu estive, para ver como a vida é feia! Ah! O que eu passei, você nunca passou!
Colocou, sem a menor cerimônia, os pés sobre a mesinha em que se encontrava a bebida e continuou:
- Oh! Não quero falar da prisão... A ela já estou habituado, já somos velhos conhecidos... Mas o resto! O pior momento foi quando aquele imbecil que pensa que é seu pai, o tal conde Fernando, foi ao xadrez, para me identificar. Ah! Como eu gostaria de amarrotar, ali mesmo, aquele orgulhoso fidalgo!
Denise, procurando manter calma a voz, porque sabia que com violência nada conseguiria mesmo, murmurou:
- Afonso, sou bastante capaz de avaliar o que você passou, mas agora não é o momento oportuno para me contar isso, deve compreender... Se por acaso Luís Paulo...
- Bolas para o seu Luís Paulo! Não tive medo dos policiais, que são homens de verdade e armados, vou ter de um almofadinha como esse barão Luís Paulo de Rastignac?
- Mas... Ele vai chegar Afonso! Já devia estar aqui!
O bandido fez com a mão um gesto seco:
- E que bem me importa? Arranje outra garrafa de champanha, isso sim! Mostre que é uma boa anfitriã, uma ótima dona de casa. A propósito, não quer saber como consegui chegar até aqui?
Denise fez um esforço tremendo para dominar os nervos, para não começar a urrar de raiva, de desespero.
- Claro! Desejo saber a quem devo agradecer isso!
- Ah, ah, ah! Vejo com prazer que começa a ficar espirituosa! Já começava a desconhecê-la... A quem deve agradecer? Antes de tudo à estupidez dos tiras que me acompanhavam. Foi a coisa mais fácil do mundo, escapar das mãos daqueles palhaços! Feio, mesmo, foi quando tive que saltar da carruagem em movimento, no perigo que uma roda me passasse pelo peito, ou me deixasse capenga. Mas não havia outra solução. Você gostaria bem que eu me tivesse arrebentado todo, hem, Denise?
A jovem não respondeu, mas seus olhos foram bastante eloquentes.
- Mas, como agora estou aqui, fazendo-lhe esta boa companhia, é óbvio que não aconteceu assim - disse Afonso, sorrindo complacente. - Mas que o tombo foi feio, isso eu lhe garanto, e ainda estou sentindo nos músculos as consequências dele! Tamanha, no entanto, era a minha determinação de fugir daqueles meganhas malditos, que nem reparei para onde estava me jogando e caí de qualquer jeito lá embaixo e tive que ficar escondido três dias... Três dias verdadeiramente infernais! E uma coisa eu lhe garanto, Denise: a turma levou mesmo a sério a busca e a minha captura. Puseram em ação homens aos bocados e até cães policiais! Se fosse um paspalhão qualquer, eles teriam ganho a partida. Mas como era eu o perseguido, a coisa foi muito diferente. Sei me defender, sei como trabalho e me meti dentro da lama do charco, onde nem com crocodilos de lá me poderiam arrancar! Bem, não digo que tivesse sido agradável, mas que deu pé, isso deu! Quando tive mesmo certeza de que a turma havia desistido e dera o fora, pois essa gente se cansa fácil e logo fica com fome e saudades do bem-bom lá de sua casa, sai. Também eu estava faminto, cansado, sem forças, com uma fome violenta, e me arrastei como pude ao ponto habitado mais próximo, em busca de um lugar onde pudesse descansar e comer. Pensava que naquele ambiente de trabalhadores, de gente simples, não despertaria atenção. Mas eu estava tão esbodegado, devido à fuga pelos matos, à permanência dentro d’água, que o safado do dono do boteco onde entrei logo desconfiou de qualquer coisa. De fato, estava eu acabando um jantarzinho às pressas, que ele me arranjara, quando me agarraram pelo braço e ouvi uma voz dizer ao meu lado: "Quietinho, rapaz. Não faça bobagem e venha comigo. Nada de tentar fugir, sabe disso? Senão, terei que disparar." Virei-me rápido e vi um tira fardado, um cara pequenino, que, com a mão no coldre da pistola, olhava para mim com cara de papão. No começo, fiquei assustado, quase entreguei os pontos, mas logo pensei na minha boa estrela e fiquei calmo. O polícia era mocinho e naturalmente seco por mostrar serviço, por uma ocasião para se mostrar, aparecer, conseguir uma promoção. Eu, sempre matreiro, deixei-me prender por ele. Estava uma noite escura de fazer medo e chuviscava. Esperei que dobrássemos uma esquina, escapando ao olhar idiota dos curiosos que acompanhavam a cena e, com um safanão repentino, libertei o braço que ele segurava e no mesmo momento dei-lhe um belo direto no queixo que o prostrou de costas na sarjeta cheia de água! Ah, ah, ah! Foi um golpe e tanto!
Denise, agora, fitava com horror o miserável que, ao recordar o que fizera, torcia-se de rir.
O caso é que Afonso já devia estar bastante embriagado, e por isso mostrava aquela coragem toda, pois sabendo que o barão Luís Paulo estava para chegar e poderia surgir de um minuto para outro, não dava o menor sinal de preocupação, antes procurava divertir-se com a tortura que infligia à Denise.
Depois de ter limpado a garganta, sem esperar sequer que a mulher dissesse alguma coisa, continuou:
- Como não sou nenhum idiota, tratei de me afastar o mais possível do local e até dos pontos frequentados por muita gente. Fui forçado a passar ainda uma noite ao relento, embora chovesse e fizesse um frio danado. Mas nem por isso estava de mau humor, pois tinha a certeza de que, assim que conseguisse chegar aqui, teria a compensação merecida por tudo quanto enfrentara. Eh, arranje mais o que beber, mulher!
Denise, com a mão a tremer, encheu outra taça para ele e recebeu em paga um sorriso forçado.
- E por fim - continuou o larápio - já era tão grande o desejo de tornar a lhe ver, que decidi meter o pé na estrada estadual e a pedir uma carona a algum cocheiro. A princípio, nenhum quis parar e fiquei furioso da vida. Mas não podia condenar aqueles desgraçados, porque, afinal, havendo tantos malfeitores, tantos marginais espalhados por aí, e agindo principalmente nas primeiras horas da noite, tinham o direito de procurar evitar encrencas, não parando suas carruagens numa estrada deserta para me ajudar. Não é isso mesmo, Denise?Ah, ah, ah! Depois de uma hora de paciente espera e vãs tentativas, apareceu um camarada guiando uma charrete mambembe, com um cavalo velho e feio, e este, talvez acreditando que ninguém se daria ao trabalho de assaltá-lo, parou e me deixou subir. Ah! Você não imagina que sujeito gentil aquele! E senti imensamente quando, querendo eu ir para um lado, e ele indo justamente para o caminho contrário, tive de fazê-lo descer, com um soco, da charrete. Ainda parei um pouco, logo adiante, para ver se o sujeito tinha se machucado na queda, mas não demorei muito e nem vi direito, porque estava ansiosíssimo por chegar perto de você.
- Então - reprovou a baronesinha que, no íntimo, sendo mulher e ainda jovem, sempre possuía em si um resquício de humanidade - você teve a coragem de matar um homem que não lhe havia feito nada, só para lhe roubar a carruagem?!
- Matar? Que é isso, Denise?! Se ele não teve a infelicidade de bater com a cabeça numa pedra, nada lhe deve ter acontecido. E se bateu, azar o dele! A culpa foi minha? E quanto à charrete, eu a fiz cair no rio, aqui perto... Não valia nada!
- Denise, frente a tamanho cinismo, a tanta maldade, perdeu o resto da esperança que ainda alimentava de livrar-se daquele monstro.
Afonso, por sua vez, virando sempre a taça entre cada frase, deu por concluído o repugnante relato:
- Mas agora, que aqui estou, sei que as dificuldades se acabaram. Bebo à saúde de todos os policiais e de todos os estúpidos donos de carruagens do mundo! Viva!...
E com um gesto inesperado atirou a taça em que bebia contra a parede, fazendo-a em pedaços.
Denise, apavorada ante a idéia de que algum dos criados pudesse ter ouvido o barulho, e acorresse, pôs-se de pé e, de olhos cintilantes de fúria, gritou:
- Afonso! Agora basta!
- Basta? Mas se apenas começamos...
- Está completamente bêbado!
- Ah, ah, ah! Não me conhece direito! Eu, bêbado? Que besteira! Só bebi duas garrafinhas...
- Ouça, Afonso: eu já fiz por você tudo o que podia, suportei sua presença até este momento, mas agora não posso mais! Tem de ir embora, e já, compreende? Vá, vá dando o fora!
Uma risada sarcástica fez eco às palavras da jovem baronesa.
- Dar o fora, se mal acabo de chegar!... Ora vejam!
- Que mais quer, agora? Fale, não me ponha louca!
De repente, a fisionomia do bandido se modificou. Ficou sério e seus olhos brilharam de ferocidade.
- Ora, que é que quero e preciso, você sabe muitíssimo bem!
Num gesto nervoso, Denise retirou do pescoço um belíssimo colar de brilhantes e estendeu o braço na direção do chantagista.
- Afonso - disse com voz rouca - o dinheiro em espécie que dei a você há pouco não é muito, sei perfeitamente. Pois, tome este colar. Vale um bocado de dinheiro, talvez milhões... Leve-o, mas saia imediatamente deste palácio!
O miserável segurou o colar e fez os brilhantes perpassarem entre seus dedos com indiferença.
Depois, como se estivesse a pegar num objeto sem nenhum valor, atirou-o sobre a mesinha, junto à taça e à garrafa, sem sequer olhar para o ponto onde foi cair.
- Denise - exclamou - tenho a impressão de que você está ficando completamente idiota...
- Por quê? Que fiz eu para... - disse ela, sem entender.
- Que fez você, Denise? Então acha que eu seria tão imbecil para tentar vender um colar desses, o que me faria cair direitinho nas unhas da polícia? Não eu, minha filha! Sou um otário? Vê lá!...
- Mas, então, não vejo outra maneira de lhe ajudar!
- Disso falaremos mais tarde, com vagar, não tenha dúvida. Por ora, o problema é um só: preciso de um esconderijo.
Denise sentiu um aperto no coração.
- Com dinheiro, isso será fácil... - murmurou.
- Dinheiro? Não... Não adianta. O lugar que vai servir como esconderijo eu já encontrei e garanto que não se poderia desejar coisa melhor!
A voz do ladrão era firme, decidida, e seus olhos percorriam o aposento, à sua volta.
Denise levou a mão à boca, como para abafar um grito.
- Não, Afonso! Que é que está pensando fazer?
O bandido se pôs de pé e se aproximou dela com ar ameaçador.
- Vou fazer o que qualquer homem inteligente faria no meu lugar: permanecerei aqui!
Os olhos de Denise se fizeram enormes pelo terror.
- Não! Aqui, não! É impossível!
- Nada disso, é possibilíssimo, até! Ademais, quem me pode expulsar daqui?
- Mas, Afonso, você enlouqueceu? Esqueceu meu marido?
- Ora! Logo você é quem vem dizer uma coisa dessas? Você, que é a campeã das campeãs da mentira, da embromação? "Meu marido!". Que tolice é essa que lhe deu?
- Luís Paulo não é nenhum tolo e perceberá!
- Este palácio é grande demais e vou poder esconder-me nele, até me cansar de não viver livre. Os tiras vão me buscar em toda parte, menos na suntuosa morada do ilustre barão Luís Paulo de Rastignac.
Denise procurou reprimir o tremor que a agitava toda. Sentia-se inteiramente nas mãos do ladrão, totalmente à sua mercê. Não havia como resistir.
- Mesmo, porém, que Luís Paulo não chegue a saber de nada - objetou a baronesa, fracamente - terei que confiar sua secreta presença à minha camareira.
Afonso pareceu indeciso por instantes, mas logo depois, dando de ombros, disse:
- Você pode pô-la a par do seu segredo... Ela calará, se você comprar seu silêncio. Não será a primeira vez que uma camareira cala o bico, tornando-se cúmplice dos segredos da patroa. Basta prometer que você não se mostrará ingrata para com ela.
- É loucura! É loucura! Ai eu ficarei sempre dependendo dela, sem sossego, receando que me possa trair, que vá contar tudo a LuísPaulo! Não, Afonso, não posso, não farei isso nunca!
Cerrando os dentes, o bandido aferrou os dedos no braço da mulher e sacudiu-a violentamente.
- Você fará o que eu mandar! - rosnou. - E nada de objeção! Acha que também eu não estou correndo risco?
- Não tem o direito de me impor a sua vontade, Afonso! E vá embora! Eu já não o suporto!
Sorrindo ironicamente, o bandido largou o braço da baronesinha e tornou a sentar-se, com ar falsamente resignado.
- Pois, muito bem... - murmurou, abrindo os braços. - Se você preferir contar ao seu Luís Paulo... Você é quem sabe. Mas não creio que ele seja assim tão mansinho, que não sapateie quando vier a saber que você me amou... Que foi a noiva de um bandido. Você, que agora é baronesa e pertence à alta-roda!
Denise cerrou os punhos, como se, com as unhas róseas e agudas, tivesse vontade de cravá-las na garganta do miserável.
- E quem lhe contará isso? - gritou.
- Eu! Ora, quem há de ser? Não já disse que decidi ficar aqui à espera dele?
- Canalha! Miserável! Nojento!
- Ora, Denise, que é isso?... Chega! Cale-se!
- Não, não me calo! Criminoso, vagabundo!
E a baronesinha, cega pela ira, agarrou uma das garrafas vazias que estava sobre a mesinha e fez o gesto de arremessá-la contra Afonso.
O marginal, porém, embora meio perturbado pela bebida, não demonstrou sentir medo.
Deu um pulo de gato e, agarrando o braço dela, torceu-o com toda violência, obrigando-a a largar a garrafa e fazendo-a cair de joelhos, gemendo de dor.
- Vigarista! - sibilou, rangendo os dentes. - Até agora eu suportei os seus insultos, mas agora chega, compreendeu? Chega! É uma comediante suja, uma odiosa impostora e quer bancar a fidalguinha, mas comigo, isso não cola! Farsantes como você, eu sei como se trata! E se levantam a cabeça, piso nelas, como animais!...
E dando-lhe um tremendo empurrão, atirou-a por terra, de costas.
- Eis o que deve esperar de mim a senhora baronesa. E agora veja se tem gana de inventar algum meio de trair-me! - ameaçou, ao mesmo tempo em que erguia o pé, como se quisesse realmente cumprir a ameaça contida nas palavras pronunciadas pouco antes.
Denise, aterrorizada, soltou um grito abafado:
- Não, Afonso, eu peço a você...
- Ah! Agora "pede", não é? Vá para o inferno!

2 comentários:

  1. Paulo, o inferno agora, está sendo de Denise, tomara que demore a sair dele rsrsrs. E Afonso, vai ser um osso duro de roer! Gostei muito!

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  2. Nossa, até fiquei com pena de Denise, esse Afonso é mau mesmo. Vamos ver o que vai acontecer com eles...

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