O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
VII
OS
OLHOS DO DEMÔNIO
O
doutor Démon, sentado no seu escritório numa poltrona de couro negro, com as
mãos apoiadas na fronte, que apresentava num dos parietais uma antiga cicatriz,
parecia entregue a profundos pensamentos. Seus olhos maliciosos brilhavam,
mesmo por trás dos óculos escuros e seu rosto magro, na penumbra do escritório,
parecia o de uma autêntica múmia egípcia.
Um
dos empregados do manicômio apareceu, nesse momento, diante de seu patrão:
-
Doutor - disse o recém-chegado. - O visitante que deseja falar com o senhor
levei-o para a sala número dois, como o senhor mandou. Já está lá.
-
Está bem. Vou agora mesmo ter com ele.
Démon
se pôs em pé, abotoando cuidadosamente o comprido guarda-pó branco. Depois,
assumindo um ar de circunstância rigidamente profissional, fisionomia
preocupada e séria de cientista, saiu para o corredor e foi até a sala
conhecida como número dois.
George
Brancion, que se encontrava junto da janela, voltou-se para ele e lhe estendeu
a mão, dizendo:
-
Bom dia! O senhor é o doutor Démon? Eu sou...
Mas
cortou a frase de súbito, interdito, ao ver o rosto lívido do psiquiatra
contrair-se numa verdadeira careta, que tanto podia exprimir surpresa como
raiva ou pavor.
Démon
dera alguns passos para ele e, agora, imóvel, com os braços pendentes ao lado
do corpo, olhava-o fixamente.
Pela
segunda vez, George sentiu um calafrio lhe percorrer o corpo, e seus cabelos se
arrepiaram, como se enfrentasse um ser sobrenatural, uma visão extraterrena.
Não
podia afastar os olhos daquele médico hipnotizador, que o fitava com ávida
intensidade, como se lhe quisesse penetrar no cérebro, sondar seus mais ocultos
pensamentos, enfim.
-
O senhor é o diretor do sanatório? - perguntou idiotamente.
-
Sim, sou eu - respondeu Démon, cujo rosto, como por encanto, ia já retomando a
primitiva impassibilidade.
-
Quem é o senhor? De onde vem e o que deseja de mim?
-
Sou o doutor George Brancion, sou também psiquiatra.
-
Ah! Muito interessante! Sente-se, doutor... Brancion. A que devo, então, o
prazer de sua visita?
-
Vim procurá-lo para lhe falar sobre uma senhora que está entregue aos meus
cuidados profissionais.
-
Uma conferência médica, doutor?
-
Não é bem isto... Apenas desejaria umas informações...
Démon
ajustou os óculos com gesto nervoso. George notou que sua mão estava trêmula,
visivelmente trêmula quando ele fez aquele gesto e, embora não estivesse
fazendo calor, percebeu em sua fronte algumas gotas de suor.
-
Trata-se de uma senhora que esteve internada aqui na sua clínica, até que o
conde Fernando a retirou e levou para o seu palacete - continuou George.
-
Perfeitamente... Sei de quem se trata... Aliás... Um caso perdido, uma doente
irrecuperável...
-Tem
absoluta certeza disso, doutor Démon?
-
Mas, naturalmente, ou não o diria! Esteve aqui internada longo tempo! Deseja
saber a que tratamento foi submetida?
-
Sim, é exatamente isto o que lhe vim pedir que me dissesse... A impressão que
tenho é... Aliás... Não é de que ela tenha estado submetida, por tantos anos, a
contínua e sistemática assistência médica...
Um
riso sardônico surgiu no rosto do diretor do manicômio.
-
Doutor George, o senhor foi diplomado há pouco tempo, não é?
-
Por que me faz esta pergunta?
-
Porque se o colega tivesse a minha experiência, a minha prática, certamente
saberia que há tipos de loucos e que muitos reagem de uma determinada maneira,
outros não, que a maioria das formas de demência não tem cura, que muitos
loucos se negam de maneira tremenda a serem tratados, recusam os alimentos e
decaem num lamentável estado de carência, sendo uma verdadeira luta cuidar
deles...
-
O senhor teve essas dificuldades no caso específico da minha atual cliente?
-
Dificuldades? Durante todo o tempo em que aqui esteve, duas enfermeiras
precisavam estar constantemente ao lado dela, noite e dia, para impedir que
desse cabo de si mesma!
-
Mas existem métodos que permitem abolir essa super-vigilância contínua,
aplicando, por exemplo...
Démon
ergueu a mão, interrompendo o rapaz quase bruscamente.
-
Doutor! O senhor parece esquecer que até há bem poucos anos os sistemas de que
está falando nem sequer eram cogitados. Só havia um meio para refrear as
reações violentas dos dementes e impedir que se entregassem a perigosos
acessos: a força!
George
baixou a cabeça, pensativo, o doutor Démon causava-lhe uma impressão que ainda
não conseguira analisar. Sentia-se contrafeito diante dele, como se aquele
homem lhe infundisse respeito e temor ao mesmo tempo. Os olhos do psiquiatra
eram o que mais o impressionava, o que mais afetava seu sistema nervoso.
Juraria que já os vira, não sabia onde, nem quando... A recordação se perdia no
abismo de sua memória, como se se tratasse de um encontro, acontecido havia
muitos, muitos anos antes...
-
Desculpe doutor, - disse ainda George Brancion, fazendo um esforço para afastar
de si aqueles pensamentos, que nada tinham com o caso de que estava se ocupando
- Não se recorda se enquanto esteve aqui internada na sua clínica, minha atual
cliente deu à 1uz uma menina?
Démon
dissimulou concentrar-se, levando a mão à fronte.
-
Sim... Agora me lembro... - respondeu - Um garoto... Ou uma menina... Não me
lembro bem... Levou-o consigo um escravo
fugitivo...
Fixou
os olhos em George, novamente, e perguntou:
-
Disse que se chama... Brancion, não foi?
-
Sim, doutor...
-
Seu pai não era, por acaso, um cirurgião? Um famoso cirurgião? Ou estou
enganado?
-
Não está enganado, doutor Démon - respondeu George contrafeito. - Meu pai era,
de fato, um cirurgião famoso... Mas, depois...
Os
olhos de Démon luziram, num lampejo satânico.
-
Depois...
-
Foi internado num sanatório, em seguida a um acesso de loucura... - Morreu
alguns meses depois.
-
Sinto, sinto realmente... Conheci seu pai, mas, certamente eu estava ausente do
país, sim, devia estar no estrangeiro quando aconteceu isso. E a senhora sua
mãe, está bem?
George
Brancion se agitou na cadeira, estranhando tudo o que ouvira, principalmente a
última pergunta. Uma coisa lhe parecia incompreensiva: como podia o doutor
Démon ignorar o triste fim do professor Brancion, o grande cirurgião, tão famoso,
quando todos os jornais, todas as revistas médicas, na ocasião, haviam dedicado
páginas e páginas ao ocorrido, lamentando a tragédia que sua loucura provocara?
Mais uma vez, teve a impressão de que já vira aqueles olhos, os olhos do doutor
Démon, que o fitavam fixamente, ainda naquele momento. Para não pecar por
descortesia, respondeu:
-
As condições de saúde de minha mãe não são muito boas, infelizmente. Seu
coração tem sido submetido a muitos choques e abalos inclusive o prematuro fim
de meu pai e hoje ela se ressente disso, tem tido mesmo algumas crises sérias.
-
É doloroso - murmurou Démon - Muito doloroso... E já a levou a algum
especialista?
-
Levei, mas o único tratamento prescrito foi este: calma absoluta, evitar emoções,
por menores que sejam, vida sossegada...
-
Sim, naturalmente isto é importante, é o principal - disse Démon,
levantando-se, como se de súbito sentisse necessidade de dar por terminada a
entrevista com o rapaz. - Quando tiver um momento livre, irei ao palacete do
conde Fernando e darei uma olhada na minha antiga cliente, se o desejar,
colega. Assim poderemos discutir melhor juntos a possibilidade de qualquer novo
tipo de tratamento. De acordo?
-
Naturalmente! Mas...
-
As suas ordens doutor Brancion... Muito bom dia!
George
ainda quis acrescentar qualquer coisa, mas Démon, sem sequer lhe estender a
mão, saiu da sala, deixando-o espantado sem saber o que pensar daquela atitude
inesperada.
Um
minuto depois, surgiu à porta novamente o enfermeiro que o recebera à chegada.
-
O doutor Démon me encarregou de acompanhá-lo até a sua carruagem, doutor -
disse com ar compenetrado.
Enquanto
percorria o longo corredor para sair, George ia pensando consigo mesmo:
“Que
criatura curiosa e difícil de compreender, é esse tal Démon! Em princípio rude,
brusco, depois gentil, em certo momento até indelicado... Tenho a impressão
que, por estar sempre lidando com doidos, o homem está ficando também meio
abalado... Mas uma coisa me impressionou enormemente nele: os olhos! Aqueles
olhos penetrantes e metálicos que nos observam por traz daqueles óculos
escuros... Não podia olhá-lo sem sentir um arrepio, eu que nunca me altero
diante de doentes alucinados e delirantes, de loucos furiosos... Acho que já vi
aqueles olhos... Não sei onde, mas já os vi...
Paulo, mais mistérios nesse drama! Que haverá em comum entre Dr Démon e George? Mais surpresas devem vir. Muito bom! Bjs
ResponderExcluirO que será que existiu ou existe entre a família de George e Démon? Vamos ver...
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