domingo, 13 de janeiro de 2013

O INFERNO DE UM ANJO - SEGUNDA PARTE - CAPÍTULO 10 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Segunda Parte - Capítulo X

NOS LIMITES DA IMAGINAÇÃO HUMANA

As sombras da noite haviam descido sobre o tétrico edifício do manicômio judiciário. De vez em quando, o silêncio profundo que reinava era quebrado pelos gritos estridentes, desesperados, de algum demente que, colocado na camisa de força, com os olhos dilatados e as feições pavorosamente contraídas, dava vazão à sua dor, na tortura da imobilidade forçada, no delírio da loucura. Por um dos corredores iluminados por estranha luz esverdeada, um médico, vestindo seu branco avental, caminhava lentamente, como um autômato, com os olhos fixos. Era Frederico Lenoir que, embora, intimamente se rebelasse, compreendendo a enorme gravidade do que estava fazendo, como que impelido por uma força superior, estava à espera das instruções do louco cuja vida salvara e que agora, de um dia para outro, tornara-se uma verdadeira obsessão.
Afinal, parou diante da porta do quarto que tão bem conhecia. Estendeu a mão para o trinco e o fez correr suavemente, depois de ter olhado para todos os lados, a fim de verificar se não havia ninguém. Assim que abriu a porta, avistou; no aposento imerso em semi-escuridão, o vulto de Umberto Brancion que, de pé, com os braços cruzados, o esperava.
- Muito bem, doutor Lenoir! - disse o louco, sem se mover.
- Estou vendo que é um homem sensato... Compreendeu perfeitamente que estou decidido mesmo a dar o fora daqui, não é verdade?
- Ouça, professor - exclamou Lenoir, procurando mostrar calma na voz - o senhor não está em pleno gozo das faculdades mentais, renuncie a uma tentativa que poderá acabar tragicamente para o senhor e para mim! Daqui não se foge!...
-Bobagem! Diga-me, Lenoir, quais são os únicos modos pelos quais se pode sair deste manicômio? Você sabe?
- Eu acho que é o senhor quem não sabe... Professor, daqui só se sai quando se é liberado da pena imposta pelo juiz, isso se o doente se cura ou então...
- Ou então o quê?...
- Morto, professor!
- Muito bem dito, doutor Lenoir! Eis onde eu queria chegar! Eu sairei daqui morto, mortinho da silva!
Instintivamente, Frederico Lenoir se aproximou do demente, fitando-o agora com interesse profissional, para ver se acaso ele não estaria delirando ou se estaria sendo vítima de uma recaída.
- Professor - perguntou - o senhor está se sentindo bem? Não tem nenhuma dor na cabeça?
Umberto deu uma risada sinistra.
- Não tenha receio, pois desde que você me operou, não sinto mais nada. Não lhe darei o prazer de perder completamente a razão, fique sossegado. A propósito, doutor Lenoir, o senhor já esteve na Índia?
- Na Índia? - repetiu Lenoir, cada vez mais espantado. - Eu, não, nunca... Por quê?
- Ah! Na Índia, a gente aprende muitas coisas! Eu lá estive, durante três anos, e tive oportunidade de alargar imensamente meus conhecimentos, especialmente no campo dos venenos.
Vendo que Lenoir dava visíveis sinais de nada estar compreendendo de tudo aquilo, o louco ordenou:
- Acenda a luz!
E quando o outro obedeceu, indagou:
- Tem aí uma caneta e uma folha de papel?
- Tenho...
- Dê-me!
Quando teve nas mãos o que pedira, sentou-se na cama e, apoiando o papel no travesseiro, escreveu algumas linhas. Depois, restituindo tudo ao doutor Lenoir, continuou:
- Você é um bom cirurgião, mas nada entende de química. Se entendesse, já teria percebido ao que quero me referir. Em todo caso, ouça-me com atenção: neste papel está uma fórmula que poucas pessoas conhecem e que você vai aviar no laboratório do manicômio, compreendeu?
- Sim... Professor...
- Uma vez terminado o aviamento, a combinação do que aí está escrito dará um líquido incolor da mesma densidade da água. Então, você me trará isso. Vai dar um frasquinho não muito grande.
Lenoir refletiu alguns segundos, indeciso.
- E depois? Que acontecerá?
- Uma coisa que você não imagina nem de longe: eu beberei...
- O senhor?!...
- Sim, eu! Beberei aquele líquido e, no mesmo instante, se você tiver executado com precisão as instruções que aí estão, cairei duro, como se fulminado por uma paralisia cardíaca e será de paralisia cardíaca que todos me acreditarão vitimado.
O doutor Lenoir, que começava a olhar com respeito e admiração a demoníaca habilidade daquele homem, perguntou com a voz alterada:
- E depois... Depois o que acontecerá?
- Nada, absolutamente nada! Ou, por outra: tudo se passará como no caso de uma morte normal, como nos casos de morte de internados no manicômio. O senhor, doutor Frederico Lenoir, por ser o meu médico assistente, assinará o atestado de óbito e autorizará a remoção do meu cadáver para fora deste lugar horrível e providenciará sobre meu sepultamento. Não é simples?
Lenoir, com um gesto de autômato, passou a mão pelos cabelos, depois esfregou os olhos, como quem está a acordar de um longo sono.
- Sim, agora começo a entender... - murmurou. - O ingrediente produzirá no senhor uma espécie de catalepsia, ou seja, um estado de morte aparente, durante o qual o coração cessará de bater. Já ouvi falar em coisas desse gênero...
Os olhos de Umberto Brancion cintilaram:
- Ora, até que afinal você chegou lá! E quando eu estiver legalmente morto e enterrado, será uma brincadeira de criança para você tirar-me da cova e permitir que eu volte cá para fora, morto para os outros, mas vivinho, disposto a começar uma nova vida e sem o menor perigo de ser reconhecido, porque você, de maneira tão gentil, se prestou a modificar a minha fisionomia. Está claro?
Frederico Lenoir, imóvel, estava absolutamente incapacitado de falar, para responder.
Aquele homem, o ex-professor Brancion, que todos acreditavam incapaz de raciocinar, de concatenar ideias, havia, não obstante, tramado um plano que era em tudo e por tudo digno da diabólica mente de um gênio do mal. Por um instante, tremeu ao pensamento do que aquele homem, que afinal não passava de um homicida, um criminoso, poderia fazer, se conseguisse a liberdade. Mas a ideia de que assim se livraria dele e poderia, por seu lado, usufruir os benefícios da fama e do renome que adquirira, inclusive dinheiro, muito dinheiro, sobrepujou todo e qualquer escrúpulo que pudesse existir em sua mente. O doutor Lenoir, venal ao extremo, pensava que o dinheiro, mais tarde, e a satisfação de suas ambições acabariam por silenciar a voz de sua consciência. Que lhe importava o que pudesse vir a fazer Brancion mais tarde? Quem seria capaz de reconhecer nele, agora, depois da operação plástica que ele, Lenoir, lhe fizera, o famoso cirurgião de antes?
Umberto Brancion, com os olhos brilhando de expectativa, acompanhava avidamente as mudanças de expressão que se sucediam no semblante do seu interlocutor.
- E então - perguntou por fim. - Que acha?
- É infernal!...
- Está de acordo? É lógico que está...
Frederico Lenoir ainda hesitou um instante. Depois, com a voz sufocada, respondeu:
- Estou!
O jovem facultativo, apertando entre os dedos o papel com a fórmula, se aproximou da porta. Mas, antes de abri-la, voltou-se ainda para trás e exclamou:
- Professor Brancion, dentro de uma hora o senhor estará "morto"!
O professor Umberto Brancion que, depois de sua fuga do manicômio, adquiriu falsa identidade e passou a ser o doutor Démon, com a testa enrugada, continuava a seguir o fio de suas recordações.
Recordava o momento em que Frederico Lenoir retornara ao seu quarto de doente, trazendo o frasco precioso, experimentava ainda agora, novamente, a terrível sensação de sufocação e estrangulamento que sentira naquela noite quando ingerira o líquido contido no vidro. E também, com um arrepio, o instante em que despertara no tétrico cemitério, diante da própria sepultura tornada a abrir. E, depois, a fuga, dentro da noite, sem meta, sem destino, para o acaso...
Judas Démon, ou melhor, Umberto Brancion se pôs de pé, num impulso. Tomado de um acesso de cólera irrefreável, atirou contra a parede a garrafa que tinha na mão, fazendo-a em pedaços!
- Não! - urrou como um desesperado. - Não! Não pode terminar assim!... Matei, roubei, trapaceei, menti, sofri as penas do inferno para chegar ao que sou! E agora não posso viver no temor de que minha mulher saiba que estou vivo e me desmascare, fazendo-me voltar ao lugar de onde fugi arriscando a vida!... Será um eterno pesadelo! Não o suportarei! Por pouco não me traí diante de George e ele provavelmente já suspeitará. Era ainda muito criança, então, mas refletirá, ficará a remoer o caso, até chegar a uma solução e, então, ele falará com sua mãe e tudo para mim estará perdido! Não! Antes morrer do que voltar para aquele pavoroso manicômio judiciário! Antes a morte!...
Subitamente, calou-se e olhou em torno, como para se certificar de que estava sozinho. Afastou com um pé os cacos de garrafa que estavam espalhados no chão, tornou a sentar-se, apertando as mãos nos braços da poltrona.
- Só resta um meio para me salvar... - murmurou. - Um só...

*  *  *
Enquanto isso, George Brancion, retornava ao castelo, ignorando a tempestade que estava para estourar sobre sua cabeça. Sentia-se confuso, perturbado, deprimido como se a visita ao sanatório do estranho doutor Démon lhe tivesse perturbado o equilíbrio psíquico. Por mais que fizesse, não conseguia esquecer aquele rosto enigmático, aqueles olhos frios como o aço e, todavia, não totalmente desconhecidos para ele. Estava certo de haver enfrentado aqueles olhos, aquele olhar, em algum lugar, em qualquer tempo, mas não conseguia localizar esse momento do passado, não podia recordar nem quando, nem onde... Nem penetrar na névoa que se formava na própria memória, o que lhe causava uma sensação indizível de mal-estar, quase de ameaça ou de perigo. Enxugou a fronte banhada de suor e pensou que seria melhor deixar aquilo de lado, cogitar de outras coisas, para se distrair. Quase sem o concurso de sua vontade, seus lábios pronunciaram um nome:
- Maria "Flor de Amor".
Imediatamente, como por intervenção de um anjo benéfico, de sua mente se afastara a recordação do doutor Démon. Agudo, quase doloroso, sentiu o desejo de rever a moça que começara a amar instintivamente, sem nada saber do seu passado. Naquele momento, teria querido poder voar, vencer o espaço para ir ter com ela, para estar ao seu lado, deleitar-se com sua presença, esquecer no azul de seus olhos as preocupações, as dores, a feiúra do mundo. Junto ao vulto de Maria "Flor de Amor" surgiu o de sua velha mãe, cujo coração a mocinha soubera de imediato conquistar, assim como o seu afeto. Arrependia-se de haver aceito a incumbência daquele caso, oferecido pelo diretor da Clínica Salus. "Talvez", pensou, "eu tenha andado errado, afastando-me de casa agora. Não deveria ter deixado minha mãe e Maria “Flor de Amor”, justamente no momento em que estava para se decidir minha felicidade." "Maria "Flor de Amor", agora, conhece o infinito amor que lhe dedico e estou certo de que aceitará ser minha esposa. Aliás, insistirei com ela, tornarei a renovar o meu pedido, quando voltar..." Quase sem o perceber, entregue completamente que estava a essas reflexões, George chegou ao palacete do conde Fernando. Conduziu a charrete à coudelaria, encarregando-se do veículo um dos cocheiros do conde. Depois, George atravessou o cuidado jardim e se dirigiu ao pavilhão, indo diretamente ao quarto da demente, para ver em que condições se encontrava. Para seu grande espanto, no entanto, não encontrou ninguém lá! Na sala ao lado, todavia, recostada numa cadeira de vime, a enfermeira cochilava placidamente. Assustado, nervoso, George a segurou pelo braço e sacudiu-a bruscamente.
- Enfermeira! - disse, aflito, mal ela abriu os olhos, olhando em torno assustada, estonteada ainda. - É assim que você cuida da doente? Bela maneira de trabalhar, de cumprir sua tarefa! Onde está a enferma?!
- Não... Sei! - balbuciou a mulher. - Estava agora mesmo no quarto dela, agarrada à boneca, que ninava...
- Mas já não está lá! Como explica isso?
A enfermeira deu um pulo, pondo-se de pé e correu para o quarto de Marta Aubert, como se duvidasse do que o médico lhe havia dito.
- É verdade! - exclamou. - Não sei... Não compreendo para onde foi... Mas se saiu não deve estar longe.
- Veja no parque - ordenou George. - Procure-a. Enquanto isso, eu darei uma busca no pavilhão... Que desgraça! Como aconteceu uma coisa dessas!
Enquanto a mulher se afastava a passos apressados, ele caminhou para o seu próprio quarto e abriu a porta nervosamente. Junto ao seu leito, imóvel, estava Marta Aubert... E a surpresa que ele teve o fez estacar, cheio de espanto, com a respiração suspensa. A louca tinha alguma coisa na mão, para a qual olhava como que fascinada: era o retrato, aquele que ele havia desenhado de sua adorada Maria "Flor de Amor", e que fizera colocar numa singela, mas elegante moldura de prata e pusera, logo ao chegar, sobre a mesinha de cabeceira. Tinha uma das mãos contra o peito e um doce sorriso errava sobre os seus lábios. George permaneceu imóvel, receando que a doente se assustasse com sua chegada e ficou a observá-la com a máxima atenção. Talvez se enganasse, mas tinha a impressão de que a fisionomia da louca se mostrava um pouco mais serena, que seu olhar, que até então se mostrara privado de expressão, estava como que tocado de nova luz, nova vitalidade... "Meu Deus", disse George para si mesmo. "Que é que está acontecendo? Uma reação, cuja origem não chego a estabelecer, se produziu nela... Por que olha assim aquele retrato? Que pode ter encontrado nele que lhe cause tamanha impressão?"
Deu um passo cauteloso para a frente e seu pé, apesar disso, se chocou com a cabeça da boneca de Marta, que caíra ao solo e se partira.
Também aquele fato tão simples e na aparência insignificante veio contribuir para reforçar sua ideia de que algo novo acontecera, alguma coisa que no momento ele não compreendia, mas que contava ver devidamente explicada sem mais demora.
- Senhora... - chamou, mansamente. - Como se sente?...
Como, porém, ela pareceu não ter ouvido, chamou, novamente, em voz alta:
- Marta...
Só então a infeliz criatura se deu conta de sua presença e, voltando os olhos para ele, sem dar nenhum sinal de susto ou alarme, sussurrou:
- Venha, venha ver!... Encontrei minha filha... Encontrei minha filhinha... Minha menina querida... Deus me concedeu essa graça...
Depois, como se as forças lhe tivessem subitamente faltado, caiu soluçando sobre o peito de George Brancion que, com a fronte enrugada pelo esforço que fazia para esclarecer as ideias, acariciou-lhe os cabelos brancos em desalinho, murmurando:
- Acalme-se, senhora Marta... Acalme-se... Não há motivo para chorar... Vamos, sente-se aqui... Quando viu que ela estava mais tranquila, perguntou então:
- Por que acha que encontrou sua filha? Ela esteve sempre aqui com a senhora...
- Não, não, não é verdade!
- Pense bem, onde está sua filha?
- Ali! O retrato! É dela!
- Não é possível - contradisse com toda a cautela o doutor George. - Este é o retrato de uma jovem que a senhora não conhece. Esta é a minha noiva.
- Não! É ela! - Replicou Marta. - Minha filha querida... a filha que eu perdi.
George sentiu, por um segundo, a impressão de haver recebido uma terrível, violentíssima pancada na cabeça! Como podia saber aquela mulher, uma demente, uma louca, que a moça do retrato se chamava Maria? Quem lhe dissera seu nome? Onde o ouvira?
"Também eu estou ficando doido, com certeza...", murmurou para si mesmo o jovem doutor George, passando a mão pela testa molhada de suor. "Já ouvi falar em estranhos casos de telepatia, mas isto ultrapassa essa possibilidade... A loucura desta mulher tem em si qualquer coisa que não me convence e foge completamente a toda rotina, difere, absolutamente, de todos os casos que estudei ou tenho tratado até hoje..."
Naquele momento, sentiu que o corpo de Marta Aubert se abandonava entre seus braços.
Talvez a emoção, talvez o esforço que fizera, uma dessas causas motivara que a doente desmaiasse.

  
Amparando-a com os braços, quase sem sentir o peso daquele corpo tão emagrecido pela moléstia, George transportou-a para o quarto dela e colocou-a na cama, cobrindo-a com uma leve colcha de seda. Depois, rápido e preciso, aplicou-lhe uma injeção calmante que lhe iria distender os nervos, permitindo-lhe algumas horas de sono.
O jovem médico não tirava os olhos de sua paciente, enquanto lhe prodigava o tratamento necessário e, de repente, como se só então percebesse um detalhe de excepcional importância, deu um passo para trás, deixando escapar uma exclamação em voz baixa:
- Elas se parecem!... Ou eu estou sendo vítima de um fenômeno de auto-sugestão ou Maria "Flor de Amor" e esta mulher têm traços que se assemelham... Não há dúvida!...
Sentiu que o ar lhe faltava e teve necessidade de sair do pavilhão para respirar ar puro. Quando se encontrou à sombra das árvores do jardim, fora da atmosfera pesada e impregnada de cheiros estranhos e misturados, inclusive de remédios, que enchiam o quarto da doente, sentou-se num pequeno banco procurando concentrar-se, repassar na lembrança tudo o que havia aprendido durante seus anos de estudo e que, agora, tinha a impressão de haver repentinamente esquecido.
Naquele momento, muito atarefada, nervosa, a enfermeira de Marta tornou a aparecer, correndo para ele:
- Doutor!... - gritou. - Dona Marta não está no jardim! Não a encontrei em lugar nenhum!
- Sei - disse George - está no quarto dela. Aí no pavilhão.
- No pavilhão?!... Mas... Nós a procuramos lá...
George fez um gesto seco, mostrando que não queria ser perturbado com conversa enquanto meditava e exclamou:
- Estava no meu quarto.
- É estranho! Não compreendo como possa ter ido para lá! Aquele quarto tem estado vazio até agora e ela sabia disso.
Por um momento, o doutor George teve a tentação de contar à enfermeira tudo o que havia acontecido, depois, certo de que ela não iria compreender nada, e só ficaria a fazer perguntas, disse:
- Felizmente nada aconteceu que nos possa preocupar. Mas procure ficar mais atenta de agora em diante.
A mulherzinha, muito aflita, murmurou, sem fitar o médico:
- Doutor... Por favor, não conte ao senhor conde que eu... Distraí-me e adormeci... Não sei como me aconteceu uma coisa dessas!
- Está bem, está bem. Fique tranquila que nada direi - respondeu George. - E agora, já que está com sono, vá deitar-se um pouco. Por hoje, eu estarei vigilante. Ela vai dormir um bom sono com a injeção que lhe apliquei.
Sentindo-se mais calmo, o médico cortou de início os agradecimentos da enfermeira e, depois de despedir-se com um "até logo", entrou novamente no pavilhão.
Marta ainda continuava na mesma posição, dormindo tranquilamente e George, sentado ao seu lado, ficou longo tempo a lhe velar o sono, olhando-a de perto, ora de um ângulo, ora de outro, imerso nos seus pensamentos.
Só depois de duas horas, a louca abriu os olhos e, olhando em torno de si, disse com voz calma e totalmente diferente da que fora a sua até o dia anterior:
- Doutor... Permite que eu olhe outra vez o retrato de minha filha? Posso olhar?
George ficou um instante indeciso, mas logo respondeu:
- Mas, naturalmente, minha senhora! Antes, porém, vai me prometer que ficará calminha e, principalmente, que não vai chorar.
- Prometo, sim, prometo... Garanto sim, doutor... Mas eu quero olhar outra vez aquela carinha bonita...
O médico, curioso sempre e complacente, foi buscar o retrato de Maria "Flor de Amor" e colocou-o frente à demente que, com a maior delicadeza, quase religiosamente, tomou-o nas mãos.
- Oh! A minha filhinha... - sussurrou Marta, beijando o vidro do porta-retrato. - Se eu pudesse tê-la comigo!...
Não obstante a promessa que havia feito, grossas lágrimas lhe começaram a correr ao longo das faces descarnadas.
Naquele momento, George se lembrou do que Pedro, o mordomo, na véspera, lhe havia dito:
"Parece que as lágrimas secaram nos olhos daquela coitada. Seus olhos são como os de uma estátua: secos e velados."
- Doutor - continuava, no entanto, a implorar a louca - traga para aqui minha filha! Deixe que a minha Maria venha para cá, para consolar meu sofrimento...
Estas últimas palavras, que pareciam pronunciadas em plena lucidez, não deixaram de penetrar, como gotas vivificantes, na mente confusa e perplexa de George.
Uma ideia, pouco a pouco, foi se desenvolvendo na sua mente: se um simples retrato feito a lápis, fizera o prodígio de arrancar Marta Aubert da apatia na qual jazia por tanto tempo, muito maior efeito deveria fazer, com certeza, para benefício da pobre mulher doente, a presença física de Maria, em carne e osso!
George Brancion tinha o cérebro em tumulto e pela primeira vez desde que exercia a profissão de psiquiatra, sentia-se tremendamente incerto sobre que decisão tomar.
"Se eu trouxesse Maria "Flor de Amor" e se ela estivesse enganada", pensava, "as melhoras de hoje talvez se perdessem instantaneamente, mudando-se numa piora da qual não posso, absolutamente, prever as consequências..." Permaneceu, ainda alguns momentos, pensativo:
"Todavia", observou, "é bem possível que sucedesse exatamente o contrário... Se Marta chegasse à conclusão de que estava enganada, talvez esquecesse o fato completamente e, então, poderia ser mais fácil tentar chamá-la à razão." Então, decidiu-se.
Deixando a doente absorta na contemplação do retrato, saiu novamente e se dirigiu para o palacete.
Uma vez ali, mandou chamar o mordomo e lhe disse:
- Tenho um encargo importante para lhe dar. Gostaria que fosse você quem se incumbisse pessoalmente. Pode ser?
Cheio de boa vontade, o amável ancião respondeu imediatamente, fitando com simpatia o jovem doutor:
- Farei tudo o que o senhor quiser!
George sentou-se a uma escrivaninha e escreveu uma breve mensagem, que fechou num envelope.
- Gostaria que o amigo fizesse chegar esta carta ao seu destino. Procure um portador. Estamos de acordo?
- Mas está claro, doutor! Vou imediatamente até a cocheira. Ali acharei algum portador dos que sabem ser rápidos quando têm que levar algum encargo.

2 comentários:

  1. Quantas emoções nessa trama! E as surpresas não param! Acho que Maria não irá onde está a mãe, e nem a deixariam entrar. E o Dr Démon, parece que vai prejudicar o próprio filho, para continuar com suas loucuras, chocante! Paulo muito bom esse capítulo! Bjs.

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  2. Será que o reencontro entre mãe e filha está próximo. Não sei... Vamos aguardar, mas sei que ainda teremos muitas emoções...

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