quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

LOCOMOTIVAS - CAPÍTULO I - PARTE I


Kiki sentou-se diante do espelho e sentiu uma leve tristeza. Aquela imagem no espelho era a única verdade incontestável de sua vida, que também se havia transformado num simples reflexo de seu passado. Ah! Como era bom lembrar o passado! Os tempos em que dançava e cantava nos palcos, sob as luzes e os aplausos de tantos admiradores, que lhe faziam juras eternas de amor, coroadas com dúzias e mais dúzias de rosas em seu camarim... quando ela ainda era a famosa Kiki Blanche, a grande vedete do teatro de revista.
Naquela época, eram raras as pessoas que não conheciam e admiravam Kiki Blanche. Mas agora ninguém mais a parava nas ruas para pedir um autógrafo ou para lhe dar um sorriso de reconhecimento.
Mesmo assim, ainda sentia muito orgulho em ser Kiki Blanche.
Afinal, criar cinco filhos sozinha era também uma obra de artista. E, é claro, não poderia deixar de pensar em Adelaide a fiel governanta de todos esses anos, a única lembrança viva dos tempos do teatro. Adelaide sempre foi a companheira de lágrimas e segredos. Ela viu Milena nascer e acompanhou de perto o crescimento de seus outros quatro filhos adotivos. Era Adelaide a única testemunha de sua metamorfose, desde os dias de glória, até suas noites de solidão, quando chorava em seu quarto, enquanto os cinco filhos dormiam.
No meio de tantas lembranças do passado, Kiki buscava, nos, traços de seu rosto, o caminho certo a seguir e a resposta para sua inquietação. Talvez lhe faltasse um neto... ou dinheiro... Não, não era isso. O mais provável é que lhe faltasse a coragem de descobrir que o passado e os amores perdidos não voltariam jamais.
De tudo isso, restava uma certeza, uma verdade para impor ao espelho tão frio e sem emoções: seu Instituto de Beleza Kiki Blanche era próspero, famoso e, de certa forma, completo. Ele supria suas necessidades de trabalho e diversão, já que um salão de beleza, com suas clientes e funcionários, não é muito diferente de um palco de teatro ou de seus camarins.
Kiki ainda remexia seus sonhos mais antigos, quando Milena entrou, trazendo-a de volta à realidade.
- Que foi, mamãe? Estava meditando ou era só narcisismo?
Kiki regressou da viagem ao passado, resgatando sua vitalidade dos tempos de vedete. Recompôs-se no papel de mãe e sorriu para Milena.
- Eu estava pensando que vocês estão me deixando velha, isso sim! Que foi, Milena? Algum problema no salão? Olhe que você é minha gerente!
- Não, mamãe. É que... bem, eu conheci um homem muito interessante!
Kiki abriu um largo sorriso e segurou as mãos da filha com ternura.
- Mas que maravilha, Milena! Há pelo menos uns dez anos eu não ouço você se referir a um homem com tanta vibração. E, pelo brilho do seu olhar, deve ser alguém muito especial. Posso saber quem é o felizardo?
- Ora, dona Kiki! Eu apenas o conheci, nada mais. Ele se chama Fábio. É pai de uma amiguinha da Regina. Eu fui pegar a Regininha no colégio e conversei com ele, rapidamente.
Kiki torceu seu nariz arrebitado e franziu um pouco a testa.
- Pronto... vão começar os problemas! Se ele é pai de uma amiga da sua irmã, é porque deve ser bem casado... e eu já lhe disse que...
- Ele é viúvo, mamãe. A mulher dele se suicidou. Mas não vamos entrar em detalhes. Eu não fui pedida em casamento, nem em noivado. Eu simplesmente conheci um homem interessante e troquei uma ou duas palavras com ele.
- Mas, às vezes, filha, duas palavras é o quanto basta... dependendo de quais foram as palavras que vocês dois trocaram!
As duas soltaram boas gargalhadas e passaram do escritório para o salão.
Lurdinha e Gracinha estavam de saída, pois já haviam terminado o serviço e as coisas estavam em ordem. Gracinha acabava de arrumar seu material de manicure e Lurdinha verificava o movimento do estoque. Kiki aproximou-se delas e as cumprimentou com delicadeza, parando diante de Lurdinha.
- Você já está morando na casa de Gracinha, Lurdes?
- Estou sim, dona Kiki. É bem melhor que a pensão onde eu estava...
- Ah, que ótimo! Pelo menos assim uma pode acordar a outra pra que nenhuma perca a hora... Boa noite, até amanhã. Amanhã, cedo!
Tão logo Kiki lhes deu as costas e saiu com Milena, Lurdinha mostrou-lhe a língua, já que não havia ninguém olhando. Gracinha baixou a cabeça, entendendo a repreensão pelo atraso daquela manhã e sentiu o rosto corar.

Joana recostou-se no batente da porta da cozinha e ficou observando a velha cena de todos os dias. Já não sentia mais vontade de chorar, como fazia há anos. Apenas uma mistura de piedade e revolta, acrescida de medo e comodismo. Aquele mesmo bar, onde o tempo só podia ser medido por sua própria decadência. Nas prateleiras tortas, as mesmas garrafas empoeiradas e gordurosas, onde só mesmo as baratas e as moscas poderiam se sentir à vontade. Nas poucas mesas, com cadeiras bambas e sem toalha, alguns bêbados roncavam sonoramente, sem perceber que a qualquer momento o teto poderia cair. E no meio dessa imundície, desse pequeno inferno, atrás do balcão sujo, estava Gracinha, sua única filha, tentando esconder o próprio nojo, para ajudar o pai.
Às vezes, Joana sentia uma compulsão quase incontrolável de entrar no bar e fugir com a filha nos braços. Mas sabia que jamais faria isso. Ela ainda tinha Vítor, que, apesar de tudo, era seu marido. E não poderia abandonar os pais, o velho Chico Rico e sua mãe Marcelina, que não tinham culpa daquela miséria. As paredes manchadas e descascadas, as luzes fracas, o balcão fétido não eram a moldura dourada em que Joana sonhou ver o retrato da filha crescida. Doía-lhe o coração cada vez que via Gracinha, com vergonha, servir bebida aos homens sujos que lhe dirigiam palavras torpes. Ela não tinha culpa dessa decadência, mas também não poderia culpar somente Vítor e seu mau gênio. No fundo, a maior tristeza de Joana era não ter mais as esperanças de moça, de que dias melhores ainda pudessem vir, de salvar sua única filha de um futuro tão pobre quanto o seu.
Marcelina chegou silenciosamente por trás de Joana e tocou-lhe o ombro com a mão. Joana deu um pulo.
- Ai, mãe! Que susto! Assim a senhora me mata do coração!
- E você nos mata de fome! Eu já pus a mesa há meia hora e seu pai já está impaciente. E, ainda por cima, você deixou o feijão queimar na panela.
- Ihl Eu me esqueci do feijão... - comentou Joana, e saiu correndo para a cozinha.
Chico Rico estava sentado em seu lugar habitual à mesa, preparando um cigarro de palha. Ele também se sentia responsável por parte daquela pobreza. Todo o dinheiro que ganhara durante a vida, com a ajuda de Marcelina e da filha Joana, tivera fim nas mesas de jogo por onde passou. Mas ele, apesar de velho, ainda tinha fé. Sentia que alguma coisa iria acontecer e mudar aquela vida de miséria. O problema era saber como e quando o milagre iria acontecer. Se é que ele ainda estaria vivo para desfrutar esse dia.
- Papai, chame Vítor e Gracinha, por favor. O feijão queimou um pouquinho, mas a comida está pronta. Ah, e chame a Lurdinha também.
Chico Rico foi até o bar chamar a neta e o genro. E, claro, aquela tal de Lurdinha também. Não que ele tivesse alguma coisa contra a menina, mas não gostava de tê-la morando ali. Já bastavam as cinco pessoas da família para repartir a pouca comida que tinham. Não era justo trazer gente estranha para morar dentro da própria casa, só por causa de uns trocadinhos a mais pelo aluguel do quarto. Mas, enfim, Lurdinha era amiga da neta, colega do salão de beleza, e o que fizesse sua neta feliz também o faria.
- Vítor, a Joana está chamando pra jantar! - disse Chico Rico.
Vítor enxugou as mãos num pano de prato, desamarrou o avental e fechou a porta do bar.
- Já vou indo... e rápido. Porque se eu bobear o senhor acaba comendo tudo sozinho... comida que pago com meu dinheiro!
Chico Rico suspirou fundo e tentou se controlar para não responder a Vítor com a mesma moeda:
- Olhe, Vítor, eu não agüento mais suas indiretas. Eu também trabalho neste maldito bar, e o que eu faço vale muito bem pelo que eu como!
- A comida que o senhor come, pode ser. Mas o que a Marcelina come, quem é que paga? Ou será que seu trabalho dá pra dois?
Gracinha saiu de trás do balcão e resolveu intervir na briga do pai e do avô.
- Será que dá pra vocês dois não brigarem, só uma vez na vida? Já chega o que eu ouço daquela mulherada no salão, o dia inteiro fofocando e resmungando, e ainda tenho de ouvir briga na minha casa? Eu vou chamar a Lurdinha e vou comer. Por favor, papai, vamos comer em paz, tá?

Estavam todos sentados à mesa, falando apenas o indispensável.
Vítor tirou um envelope do bolso e o abriu. Desdobrou uma carta bastante amassada e colocou-a sobre a mesa. Limpou a boca com a ponta da toalha, virou-se para Joana:
- Eu acho que muito em breve nós vamos ter mais uma boca pra sustentar...
Todos pararam de comer. Por um breve instante, os olhares pousaram sobre Lurdinha. Depois, voltaram-se para Vítor, procurando uma explicação.
- Eu recebi esta carta do Moreirinha, lá de Portugal. Ele pede pra gente receber um sobrinho dele, que vem tentar a vida aqui no Brasil. O Moreira disse que ele é muito trabalhador e de confiança.
- Mas, Vítor! A gente não tem nem lugar pra Lurdinha, que está dormindo com a Maria das Graças na mesma cama! Onde é que nós vamos enfiar esse menino? - perguntou Joana, preocupada.
- Menino, não, Joana. Ele já tem mais de 25 anos. Olha aí, filha... está pra você, hein?
Chico Rico resolveu intervir em favor de Joana e Gracinha:
- Mas, Vítor, se ele é um rapaz, não vai poder dormir no quarto com a Gracinha. Onde é que ele vai passar a noite, na rua?
- Não, Chico Rico. Ele vai dormir na cama com o senhor e dona Marcelina, no quarto oficial do pessoal que vive a minhas custas! Aliás, um bom lugar pra Lurdinha dormir também ...
Lurdinha começou a chorar e Gracinha foi em seu socorro. Joana foi atrás de Vítor, enquanto Marcelina segurava Chico Rico para que os dois não iniciassem uma briga mais séria, corno sempre acontecia na hora do jantar.

O apartamento de Margarida era perfeito para seu tipo de vida. Na parede, em cima do sofá, somente um retrato seu, com o filho ainda bebê nos braços. Com sua paciência de funcionária pública, ela havia recortado o retrato cuidadosamente, retirando dele a imagem do falecido marido. Uma espécie de homenagem que fizera ao filho, no dia em que completou dezoito anos e se tornou o homem da casa. Um homem que Margarida ainda tratava como um menino, para que não tivesse jamais a sensação de perdê-lo.
Se ela não deixasse Netinho crescer, talvez pudesse passar a vida toda morando com ele, controlando não apenas seus passos, mas até suas idéias, pensamentos e desejos... No fundo, não havia nada que uma mãe pudesse querer mais do que viver toda a vida com o adorado filho único...
Margarida arrumava a mesa para o jantar, quando Netinho apareceu, pronto para sair, mas ainda com a camisa desabotoada.
- Aonde você vai, filho? Vai sair de casa e deixar sua mãe sozinha?
Netinho tentava decifrar aquele enigma entre botões e casinhas da camisa que sempre se desencontravam, deixando a roupa torta. 
- Olha aí, Netinho! Você nem sabe abotoar a camisa sozinho. Deixa que eu faço isso pra você - disse Margarida, começando a arrumá-lo. Desabotoou a roupa do filho, acertou os botões, ajeitou seu colarinho e penteou seus cabelos com os dedos das mãos.
- Está vendo, filhinho, como você não pode viver sem sua mamãe?
Netinho enfiou a camisa dentro das calças, puxou o colarinho novamente e arrumou o cabelo.
- Mamãe, eu vou sair e volto mais tarde. Se o. Cássio me ligar, diga pra ele que a gente se encontra amanhã, lá no banco, tá?
Margarida mudou imediatamente de expressão. Tentou disfarçar sua raiva, fazendo uma pergunta em tom quase amistoso:
- Com quem você vai sair hoje, Netinho? Com aquela menina vulgar, ou com a filhinha da vedete?
- Mamãe.... eu já disse que elas têm nome. Em primeiro lugar, a Patrícia não é nenhuma menina vulgar, ela é uma garota normal, como...
Margarida interrompeu Netinho, como se ele nada tivesse dito:
- Eu não quero que você saia com essa Patrícia! Maldita a hora em que você salvou a vida dessa nojenta! Você deveria ter deixado ela se afogar na praia, que era o que ela merecia! E, depois, se ela fosse de boa formação, de família, o pai não teria comprado você...
Netinho, mesmo submisso à mãe, também tinha seus momentos de coragem. Voltou-se para ela com o dedo em riste e defendeu sua nova paixão:
Mamãe ... eu já disse que o pai da Patrícia não me comprou! O dr. Sérgio me deu uma recompensa por ter salvo a vida da filha. E eu nem tive tempo de recusar... foi... tão rápido...
- É... e com esse dinheiro você comprou um carro só pra fugir da sua casa à noite, e sair com essas sirigaitas... Por que você não sai só com a outra, aquela que é menos vulgar que a Patrícia?
Netinho contou até dez, passou a mão no rosto e tentou responder com a educação que ela própria lhe ensinara:
- A senhora está falando da Renata... Hoje, eu não vou sair com a Renata. Eu vou sair com a Patrícia. Está certo? Tchau, mãe. Até mais tarde.
Ele se virou, beijou a mãe no rosto e saiu. Quase bateu na porta, que se abriu com a chegada de Celeste.
- Desculpe, Netinho! Eu quase bati a porta na sua cara!
Netinho esfregou o nariz com a mão, enquanto Margarida ia em seu socorro.
- Não foi nada, Celeste. Eu saía e você chegava! É até bom que você faça companhia pra minha mãe. Dona Margarida está impossível!
Margarida sentou-se numa poltrona, visivelmente irritada.
- Está vendo, Celeste? Ele já vai sair outra vez com aquela Patrícia! Será possível que ele só gosta de meninas vulgares? Primeiro, era a Renata, filha daquela vedete do teatro rebolado. Agora é essa aí, que ele salvou do afogamento, toda metida a rica...
Celeste, com toda a sua calma e serenidade, tentou consolar Margarida:
- Não ligue, Margarida. O Netinho sabe o que faz. Ele é um rapaz maravilhoso. Você não pode se queixar do filho que tem. Eu acho até que ele tem muita paciência pra agüentar você!
Margarida levantou-se, furiosa:
- Que diabo de amiga é você, hein, Celeste? Além de não me apoiar, ainda defende o Netinho? Você diz isso porque nunca se casou nem teve filhos.
Celeste calou-se. Margarida estava certa. O que é que uma solteirona como ela poderia entender de filhos? Tudo o que entendia é que Netinho devia sofrer muito, com esse amor sufocante e doente da mãe. Um problema que ele mesmo teria de perceber e resolver...

Sérgio lia seu jornal, um ritual de todas as noites. A mulher, Mirtes, passava horas bordando, sem trocar urna única palavra com ele, a não ser o costumeiro "boa noite". Em geral, o silêncio dominava a casa como um todo, e só seria quebrado pela voz do mordomo anunciando o jantar servido. Sérgio ainda era um homem bonito, apesar de austero e dos traços marcados pela idade; Alguma coisa fazia com que ele parecesse amargo, talvez o constante desprezo por Mirtes, o mesmo desprezo que sentia desde o dia em que se casou com ela, para obedecer à ordem do pai, a quem ele jamais tivera coragem de dizer "não", mesmo depois de adulto e homem feito. Tudo isso transformava seu rosto num semblante frio e quase desumano,
Seus negócios iam muito bem e em seus planos estava a continuidade desse sucesso: ele também haveria de escolher o melhor marido para Patrícia, mesmo que isso a tornasse infeliz. Para Sérgio, os sonhos de um casamento cheio de amor não passavam de tolices. O que importava era o que ele podia tocar: sua casa luxuosa, sua piscina, seus carros, seus criados. Em momento algum deixava transparecer que tivesse experimentado um só minuto de amor, daqueles em que se troca qualquer fortuna por um único beijo sincero.
Mirtes bordava distraidamente, quando Patrícia se sentou a seu lado.
- Mamãe, eu... não estou gostando muito das aulas de piano...
Mirtes ia responder, mas a filha foi interpelada pela voz autoritária de Sérgio:
- Patrícia! Nem pense em largar as aulas de piano! E, até o fim do ano, eu quero ouvir você tocando a Sonata ao luar, de Beethoven, sem partitura!
- Mas, papai, eu não tenho jeito pra piano! Eu ainda não consigo tocar nem o Parabéns a você...
- Claro! Você só pensa em rapazes! Não consegue se concentrar na música. E, por falar nisso, você tem visto aquele rapaz?
Ela engoliu em seco. É claro que seu pai estava se referindo a Netinho. Como ele podia ser assim? Esse controle e severidade não podiam ser sinais de amor. Se ele realmente a compreendesse, sentiria que Netinho era muito especial, que, apesar de simples e humilde, trazia no coração alguma coisa que ela jamais conhecera em outro rapaz.
- O senhor... está falando do... Paulo?
O pai fechou o jornal e colocou-o sobre o tapete.
- Que Paulo, menina? - perguntou ele, virando-se para Mirtes.
- Você está vendo? Eu nunca vi mãe mais incompetente! Sua filha conhece tantos nomes de rapazes que nem consigo memorizá-los! O que é que você faz o dia todo, Mirtes, que não cuida da Patrícia?
Sérgio virou-se para a filha e encarou-a com frieza:
- Eu estou falando daquele rapaz que a salvou. E que paguei regiamente pra não incomodá-la mais! Você tem se encontrado com ele?
- Não, papai. Eu não o tenho visto - mentiu a jovem. - E peço sua      permissão pra subir até meu quarto.
- Pode subir. Se eu precisar falar com você, mando sua mãe chamá-la.
Patrícia subiu rapidamente a escada, rezando para que Netinho chegasse lo­go. Ele já havia salvo sua vida uma vez da violência do mar ... não seria muito difícil salvá-la novamente, desta vez da tirania do pai.

Fernanda era sem dúvida uma menina temperamental, a responsável pelos cabelos brancos que Kiki precisava sempre tingir no salão. Milena era a filha mais sensata, por ser a mais velha. Renata ainda estava numa fase difícil, tentando se encontrar e se conhecer. Paulo era um garotão, desfrutando o privi­légio de ser o único homem da casa. E Regina era apenas uma criança alegre que sonhava ser atriz quando crescesse. Mas Fernanda era uma filha especial. Com a mesma vibração que fazia a família inteira sorrir de suas brincadeiras, podia transformar a casa num inferno. Um misto de anjo e demônio que despontava numa linda mulher. O único problema era a rivalidade entre ela e Milena. Apesar de todo o cuidado e carinho que esta dedicava à irmã desde pequena, Fernanda sentia inveja e revolta. Sempre que podia, fazia Milena sofrer.
Foi exatamente por causa dessa rivalidade que Fernanda resolveu buscar Regina na escola. Acordou cedo, avisou Kiki que pegaria a irmãzinha, e foi tirar a dúvida que não a deixara dormir: quem seria esse tal de Fábio, que Milena conhecera na manhã anterior? E por que falara nele com tanta alegria? Todos sabiam que Milena não era o tipo de mulher que se interessava por qualquer homem... o melhor seria conhecer esse Fábio e descobrir o que ele tinha de tão "interessante", a palavra que a irmã usara para descrevê-lo.
Fernanda parou o carro em frente à escola, desligou o motor e arrumou o cabelo diante do retrovisor. Queria ter certeza de que ele a acharia irresistível, que ela era muito mais jovem e mais bonita que Milena. Regina chegou correndo até o carro, junto com a amiga, Lia.
- Ué? Cadê a Milena, Fernanda? Ela não quis me buscar?
Fernanda nem respondeu à pergunta da irmã. Mas examinou a amiga com muito cuidado.
- Você não me apresenta sua amiguinha, Regina?
Regina virou-se, com toda a má-vontade que poderia demonstrar, em sua sinceridade de criança.
- Lia! Esta é a chata da minha irmã Fernanda. Não ligue pra nada que ela te disser, porque ela é muito besta... o apelido dela é...
Fernanda tapou a boca de Regina com a mão, com carinho e cuidado.
- Não vá contar pra ninguém! É segredo de família!
E olhou para Lia, querendo agradá-Ia:             ,
- Mas, e o seu papai, onde está? Ele não ia deixar uma bonequinha como você esperando aqui na rua...
- O papai ainda não chegou... - e olhou pra rua. - Ah! Olha ele chegando!
Fernanda desceu do carro, deu uma das mãos para Regina e a outra para Lia, indo ao encontro de Fábio, o homem misterioso que abalara Milena.
Tão logo o viu, Fernanda sentiu um tremor por todo o corpo. Milena certamente tinha muito bom gosto para homens. "Interessante" era pouco para descrevê-lo. Ele era lindo, elegante, com cabelos grisalhos muito alinhados, aparentando quarenta anos. Assim que olhou para ele, sentiu que alguma coisa acontecia dentro de si, como se a estivessem virando pelo avesso...
Fábio abriu a porta, desceu e foi ao encontro da filha. Fernanda estendeu­lhe a mão com um enorme sorriso.
- Boa tarde, eu sou Fernanda, a irmã da melhor amiga de sua filha!
Fábio olhou Fernanda sem nenhuma emoção, beijou a filha e passou a mão nos cabelos de Regina, numa atitude cordial.
- Muito prazer. Mas... e sua outra irmã, a Milena? Por que ela não veio buscar a Regina?
Fernanda sentiu um vulcão de ódio explodindo em sua cabeça. Sempre Milena, Milena, Milena! Já não bastava ser a única filha legítima de Kiki, a queridinha da casa, e ainda fazia mais sucesso que ela, mesmo sendo mais velha e mais feia... Fernanda olhou Fábio nos olhos e respondeu com petulância:
- Ela não veio porque morreu! Foi atropelada por uma jamanta e morreu, ontem mesmo, logo depois que saiu daqui. Por isso eu tive de vir aqui. Mas, se interessar, eu estou bem viva...
Não foi difícil para Fábio achar a resposta certa para Fernanda. Ele já conhecia bem as mulheres, aliás sua especialidade desde que ficara viúvo...
- Mas que pena! O que é o destino, não? Teria sido bem melhor se você tivesse sido atropelada no lugar dela. Assim, ela teria vindo aqui em seu lugar. Vamos, Lia. Até logo. Lembranças a sua irmã... leve umas flores para ela.
Ele entrou no carro e saiu, enquanto a filha ainda acenava para Regina. Fernanda sentiu que o chão estava se abrindo sob seus pés...

VÍDEOS

ABERTURA



ELENCO QUASE COMPLETO



CHAMADAS



3 comentários:

  1. JE, que delícia, ler esse romance! Eu adorei a novela, muito leve, divertida, romântica e cheia de peripécias, mas lendo aqui, fica mais fácil conhecer logo cada personagem , o que na novela, só se conseguia, depois de algum tempo. A personagem Kiki Blanche foi inesquecível, um trabalho magnífico de Eva Todor! Sempre que ouço falar em Locomotivas, o que me vem logo a mente é Kiki Blanche, uma mãezona, cheia de amor pelos filhos, cheia de histórias para contar, dona de um humor e um conhecimento do ser humano invejáveis! Adorei recordar essa novela, uma das boas telenovelas, do saudoso Cassiano Gábus Mendes que tanto alegraram uma geração! Obrigada JE, por compartilhar conosco, bjs.

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  2. De Locomotivas me lembro melhor... foi uma novela bem legal, engraçada.
    Eu gostava das cenas do salão. A Kiki e filhas sempre faziam boas cenas e a Eva Todor, como bem disse a Maria do Sul, fez um trabalho magnífico mesmo.
    E lá estava a Araci Balabanian, rsrs
    Nossa! Dá impressão que ela emendava uma novela na outra...
    A Lucélia Santos era bem novinha, mas já mostrava seu talento. Fez uma Fernanda chatinha, implicante com a Milena, que achava que era irmã, mas... deletei, pois lembrei que ainda virão os outros capítulos, com novas informações.

    Enfim, adorei e vou aguardar o próximo capítulo com curiosidade, para relembrar outras histórias.

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  3. JE, só hoje(16/02) comecei a ler. Desculpe a demora. ja to gostando de ler e assim vou lembrando algumas cenas, alguns personagens. Lembro que o Toni Correa que fez o Machadinho, era lindo, rs. A Aracy Balabanian que estava linda na novela tb. Mais uma vez obrigada por postar esses romances para nós.

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