domingo, 2 de dezembro de 2012

O INFERNO DE UM ANJO - CAPÍTULO 36 - COLABORAÇÃO: PAULO SENA

O INFERNO

DE UM ANJO

Romance-folhetim



Título original:
L’enfer d’un Ange




Henriette de Tremière/o inferno de um anjo

(Texto integral) digitalizado
e revisado por Paulo Sena

Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL


Capítulo XXXVI

UM SALVAMENTO MIRACULOSO

Apesar de realizarem incessantes buscas, Afonso e Renato, os asseclas de Ubaldo, o investigador, não haviam conseguido notícias de Maria "Flor de Amor". Baseado nisso é que Ubaldo, ao dar a notícia da morte da jovem a Luís Paulo, achava-se persuadido de não estar exagerando, nem mentindo. E, ademais, na sua cruel frieza, considerava-se um homem verdadeiramente de sorte, porque, morrendo, a pobre Maria "Flor de Amor" lhe poupara o trabalho de fazê-la desaparecer, como lhe ordenara que fizesse a baronesa Denise, esposa de Luís Paulo, pagando-lhe regiamente por isso. Ubaldo Duroi, o detetive particular, estava longe de suspeitar o que realmente tinha acontecido. Ignorava o importante papel que, no drama de Maria "Flor de Amor", correspondera ao guarda dos depósitos de água potável, que estavam situados a curta distância do ponto onde a jovem caíra no rio. Era este um homem idoso e na noite do trágico acidente de que fora vítima a jovem "Flor de Amor", ele, como de costume, com sua caixa de rapé na mão direita, estava sentado num banquinho à porta de entrada dos depósitos, entregue às lembranças da sua juventude.
Como em tantas outras noites, o vigia estava entregue aos seus pensamentos, quando, de súbito, do lado da água lhe pareceu vir um ruído, como se alguma coisa ali se agitasse ou se alguém gemesse.
Estranhando, com receio de se ter enganado, aguçou o ouvido, e então percebeu um certo rumor na água, que aumentava cada vez mais, e que não podia certamente ser produzido por nenhum peixe, por maior que fosse. Inquieto, desejando esclarecer aquele mistério, o velho vigia foi até a margem, que ficava a poucos passos, e se curvou para ver e ouvir melhor.
Naquele justo momento um gemido, mais forte que o anterior, se fez ouvir, e desta feita de modo a não mais deixar dúvida no espírito do vigia noturno, diante de seus olhos, visível à luz da fachada do depósito, havia algo dentro d'água. O ruído que ele ouvira antes, certamente fora produzido por algum movimento de braços, que a criatura ainda tentava fazer.
O guarda era velho, naturalmente não tinha muita força, mas era corajoso e cheio de boa vontade. Embora pensasse que devia estar enganado e que os ruídos que ouvia tivessem outra causa qualquer, não poderia deixar de ir ver, de certificar-se sobre suas suspeitas.
Havia um escalerzinho amarrado a um moirão, junto à margem, usado pelos funcionários para pequenas pescarias. Embora estivesse com um bocado de água no fundo, servia para o que ele queria. O velho entrou no barquinho e começou a remar vigorosamente, no sentido da correnteza que, naquele ponto, era quase nula. Não havendo luar aquela noite, pouco conseguia ver a sua volta e ia avançando às cegas, procurando alcançar o ponto do qual achava terem vindo os ruídos.
O valente ancião, no íntimo, pedia a Deus que o ajudasse a encontrar o que sua vista, já um tanto curta, não lhe permitia ver com clareza. E o Senhor, certamente, devia estar olhando cá para baixo, para aquele microscópico espelho de água perdido na vastidão do mundo, porque, justamente quando, desencorajado, o guarda já estava para desistir da busca, algo bateu num dos lados do seu barquinho, que oscilou levemente. Largando os remos e inclinando-se para a borda, em risco de fazer virar a frágil embarcação, o vigilante noturno mergulhou ambas as mãos na água gelada e teve uma exclamação de surpresa e satisfação ao mesmo tempo, ao sentir que segurava um braço humano. Por um momento receou que se tratasse de um cadáver mas, pensando nos gemidos que ouvira poucos minutos antes, concluiu para consigo que se o afogado estivesse morto, a morte deveria ter ocorrido há pouquíssimos instantes.
Mas talvez ainda fosse o caso de poder salvá-lo, talvez ainda estivesse vivo. Este pensamento teve o poder de lhe reanimar o vigor e ele, procurando dominar o perigoso sacolejar do barquinho, disse a si mesmo: "Força, José! Mostra do que é capaz o pessoal da velha guarda!"
Ao mesmo tempo, fez um tremendo esforço, como não se permitia há muitos anos.
O lado do barquinho, sobre o qual se apoiava, inclinou-se de tal forma que quase alcançou a altura da água, mas José, com a força do desespero, decidiu que morreria ali, antes de desistir daquela penosa tarefa, da qual dependia a salvação de uma vida humana. Não soltou o braço que segurava e, pouco a pouco, foi conseguindo puxar aquela pessoa para dentro da embarcação. Conseguindo isso, curvou-se imediatamente, colocando-lhe o ouvido ao peito, para ver se o coração ainda batia. E foi ao fazê-lo que notou que se tratava de uma mulher!
Em seguida, o bom homem decidiu praticar uma enérgica respiração artificial, tendo antes virado a moça desfalecida de bruços, para que ela expelisse a água que eventualmente tivesse engolido.
Terminada a operação, pegou os remos e começou a tentativa de retorno à margem de onde viera, ao pequeno desembarcadouro do depósito. Lá chegando, conseguiu retirar o corpo da moça do barco e colocou-o sobre os degraus secos, debaixo do lampião mais próximo.
E viu então, diante dos olhos, atônitos e admirados, um rostinho de linhas perfeitas, pálido como o de uma morta, envolvido por dourada massa de cabelos cor de trigo maduro que, embora molhados, conservavam ainda traços da natural ondulação.
- Meu Deus! - exclamou o velho José, em voz alta. - Mas... Isto é um anjo!... Deus queira que não esteja morta... Seria uma pena!
Esse desejo de salvá-la levou-o a procurar, o mais depressa possível, um socorro, uma ajuda, alguém que, em suma, estivesse em melhores condições do que ele, que soubesse o que fazer naquela situação. Depois de pensar um pouco, nada achou de melhor que correr até à estrada, a uns cem metros de lá, e assim fez, com toda a velocidade que lhe permitiam suas pernas cansadas.
O próprio Deus devia assistir Maria "Flor de Amor" àquela noite, porque, mal o pobre homem pôs os pés na estrada, surgira ao longe a luz do lampião de uma charrete que se aproximava a pouca velocidade. José correu para o meio da estrada, começou a agitar os braços como um sinaleiro desesperado e enlouquecido, tentando fazer com que o veículo parasse.
O homem que levava as rédeas do cavalo viu de longe os sinais e freou a charrete, descendo imediatamente para ver do que se tratava. Mas como viu o vigilante noturno dos depósitos, que era seu conhecido, iluminado pela débil luz do lampião, foi logo perguntando:
- Que há, senhor José? Que tem? Está passando mal?
O velho, ouvindo aquelas palavras, vibrou de alegria e respondeu:
- Deus seja louvado! É o senhor, doutor! Venha, depressa, corra!
O médico, que devia ser diplomado de pouco, a julgar pelo seu aspecto juvenil, pegou-o pelo ombro e perguntou, ainda:
- Mas fale! Que foi que aconteceu?
- Tirei um anjo das águas do rio... Isto é, uma linda moça. Não sei se está morta ou viva. Fiz respiração artificial... Ao meu modo... Agi certo, doutor?
Sem nada mais perguntar, o jovem doutor tirou da charrete a sua maleta de médico, com remédios e instrumentos de urgência e correu solicitamente atrás do velho, que já ia à sua frente.
Quando chegaram junto à moça desfalecida, o médico, a primeira coisa que fez foi curvar-se para ela, tomar-lhe uma das mãos delicadas e frias, não sem antes a olhar com interesse, encantado com a sua beleza. Tomou as pulsações e depois se pôs de pé, ordenando ao velho que ficara a esperar, cheio de apreensão:
- José, vamos levá-la para dentro e arranjar um lugar para deitá-la...
- Está morta esta pobre moça, doutor?
- Nada disso. Graças a Deus está viva, mas se não agirmos com rapidez, não viverá muito...


Não precisava dizer mais, para pôr em atividade o zelo do vigilante, que tanto desejava salvar a vida do "anjo" que pescara depois de tantos esforços, e com risco de morrer ele também.
Pouco depois Maria "Flor de Amor" estava estendida na cama rústica do velho, no quarto onde ele dormia. O doutor, tirando o casaco para colocá-lo como agasalho sobre o corpo da jovem, disse:
- Veja se prepara alguma bebida forte ou quente. Não haverá aí um pouco de vinho ou conhaque?
O velho piscou o olho, maliciosamente:
- Deixe isto por minha conta, doutor! Eu não costumo beber, mas tenho aqui uma garrafa de conhaque que, pelo jeito, deve ter uns dez anos.
- E que está esperando? Vá buscá-la!
Enquanto o médico massageava o coração de Maria "Flor de Amor", que estava fraquíssimo, José foi buscar a garrafa e enchendo um copo grande, voltou ao quartinho da portaria, exclamando:
- Pronto, doutor George! Isto a fará pular como uma cabrita!
O médico não pôde deixar de sorrir, ante o exagero do velho.
- Isto é uma dose para homem, meu amigo! Tem intenção de afogá-la em conhaque, depois de tê-la salvo de afogar-se em água?
- Bem... Eu pensei...
- Vamos, meu amigo José, não percamos tempo. Arranje uma colher, entende? Colherinha...
Quando o vigilante noturno trouxe o que ele pedira, o médico se curvou sobre a moça desmaiada e fez descer pela sua garganta a fortíssima bebida. Depois, ficou à espera do resultado.
A beleza de Maria "Flor de Amor", mesmo naquelas condições, parecia fazer o médico esquecer tudo. George Brancion até aquele momento havia agido quase maquinalmente, com a típica indiferença do profissional habituado a considerar o paciente apenas como "um caso", mas agora se interessava pela mulher em si. Falando baixo, absorto na contemplação da moça, murmurou:
- Sabe, José? É um verdadeiro anjo...
- Oh, sim! - concordou com entusiasmo o velho guarda noturno.
- E... Ela se salvará?
- Tenho quase certeza, mas... O coração está pulsando mais regularmente, agora, e já está respirando melhor. Quisera saber como pôde cair no rio a estas alturas, numa zona como esta, onde à noite não passa quase ninguém. Que é que pensa disso?
O velho apanhou a caixinha de rapé que estava em cima da mesa e disse:
- Não sei, doutor... Eu estava aqui sentado, cheirando o meu rapé, e ouvi, primeiro, assim como uns gemidos. Depois o ruído que o corpo fazia na água, como se se agitasse. Corri, entrei no barquinho e remei na direção dos ruídos. Mas acho que ela caiu na água muito mais acima do ponto onde a apanhei. A correnteza, aqui, é branda, mas lá em cima é forte um bocado. Aqui na represa a água se espraia e fica mais tranquila...
George, que não tirava os olhos da moça desacordada, nada respondeu e, depois, de algum tempo, falou:
- Olha... Está voltando a si... Abriu os olhos.
Maria "Flor de Amor", realmente, fizera alguns movimentos lentos e, como alguém que desperta de profundo e demorado sono, abriu um pouco os olhos, depois os abriu completamente, ostentando-os em todo o seu azul celeste e começou abater as pálpebras...
A primeira coisa que viu foi o rosto simpático e jovial do doutor George que, para demonstrar sua alegria de vê-la salva, sorriu francamente, dizendo:
- Como se sente, senhorita?
A jovem, porém, não respondeu logo. Seus olhos percorreram o pequenino aposento do guarda noturno.
- Onde estou? - murmurou, com voz muito tênue, quase imperceptível, a mocinha. - Que houve comigo?
- Está na casa de um bom amigo que a retirou do rio, onde estava quase a se afogar, explicou complacente, o médico.
- Quanto ao que lhe aconteceu, não sabemos. Sou o médico que ajudou o velho senhor José a fazê-la voltar a si...
Maria "Flor de Amor" tornou a olhar o médico e seus lábios se entreabriram num pálido sorriso.
- Obrigada...
Bastaram aquela palavra e aquele sorriso para que o rapaz e o ancião se sentissem suficientemente pagos pelo que haviam feito.
O jovem facultativo, então, teve a impressão de que o próprio coração se acelerava estranhamente;batendo com mais força e, pela primeira vez, em sua carreira, não soube analisar o motivo. "Que diabo acontece comigo?", pensou. "Tenho visto já tanta coisa, no exercício desta profissão, e agora, diante de um caso tão banal, estou assim comovido?" Procurando dominar-se e começando a pôr os seus pertences em ordem, na sua maleta profissional, disse:
- Agora, senhorita, se concordar, eu a levarei até a minha casa, onde, com o auxílio de minha mãe, poderei ministrar-lhe os cuidados de que ainda precisa. Seria penoso e até perigoso, para a senhorita, ser levada para o hospital mais próximo, que está situado muito longe daqui, ao passo que a nossa casa fica a apenas dez minutos de charrete. Não se opõe a isso, não é verdade?
- Bem... Eu não sei...
Maria "Flor de Amor" gostaria de falar, de saber algo mais sobre aqueles homens, mas as pálpebras lhe começaram a pesar estranhamente. Um agradável calor, depois estranha sensação de frio a invadiu e tornou a perder os sentidos. George Brancion, satisfeito vendo sua paciente cair num sono restaurador, voltou-se então para o velho guarda:
- Vamos envolvê-la numa coberta e você me ajudará a levá-la até a charrete. Ela precisa ainda de ser assistida e nem eu nem você, que somos homens, podemos tirar-lhe essas roupas molhadas e cuidar dela. Minha mãe terá prazer em ajudar essa coitadinha. A propósito, não havia com ela nenhuma coisa que a identifique?
- Não, doutor... Pelo menos eu nada vi.
- Bem... Não percamos tempo, então. Os dois homens, com toda a delicadeza possível, envolveram o corpo inerte de Maria "Flor de Amor" num cobertor tirado da cama do velho. O moço a segurou por baixo dos braços, depois a colocou no colo, como uma criança adormecida, saindo do aposento onde dormia o guarda noturno durante o dia, e depois seguiu em direção à charrete, como se não sentisse o peso da preciosa carga que conduzia.
O velho José o acompanhou, levando a maleta e uma lanterna com que clareava o caminho, para que ele não tropeçasse. Quando chegaram junto da charrete, acomodaram a moça no banco, procurando ajeitá-la o mais comodamente possível. O médico, então, pegou as rédeas do cavalo e disse, pondo o veículo em movimento:
- Você foi formidável, José! Nem todo mundo faria o que você fez! Quando o "anjo" ficar bom, dir-lhe-ei que venha agradecer-lhe pessoalmente! Fica satisfeito?
O bom velhinho José limitou-se a acenar que sim, com a cabeça, emocionado demais para falar. E quando a charrete desapareceu na curva da estrada, ainda ficou com a lanterna erguida acima da cabeça, com os brancos cabelos a brilharem na escuridão, a outra mão em pala sobre os olhos, como se esperasse ver surgir novamente um anjo louro, que, agora, já ia longe...

2 comentários:

  1. Que legal esse capítulo, Paulo! Felizmente Maria "Flor de Amor" foi salva e parece que pelo menos por enquanto, os que querem prejudicá-la ficarão ignorando esse salvamento. Muito bom! Bjs.

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  2. Será que Flor do Amor ficará oculta? Qual será o futuro de Luís Paulo? E Denise, será desmascarada? Estou aguardando ansioso os próximos capítulos...

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