O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXXVI
UM
SALVAMENTO MIRACULOSO
Apesar
de realizarem incessantes buscas, Afonso e Renato, os asseclas de Ubaldo, o
investigador, não haviam conseguido notícias de Maria "Flor de Amor".
Baseado nisso é que Ubaldo, ao dar a notícia da morte da jovem a Luís Paulo,
achava-se persuadido de não estar exagerando, nem mentindo. E, ademais, na sua
cruel frieza, considerava-se um homem verdadeiramente de sorte, porque,
morrendo, a pobre Maria "Flor de Amor" lhe poupara o trabalho de
fazê-la desaparecer, como lhe ordenara que fizesse a baronesa Denise, esposa de
Luís Paulo, pagando-lhe regiamente por isso. Ubaldo Duroi, o detetive
particular, estava longe de suspeitar o que realmente tinha acontecido.
Ignorava o importante papel que, no drama de Maria "Flor de Amor",
correspondera ao guarda dos depósitos de água potável, que estavam situados a
curta distância do ponto onde a jovem caíra no rio. Era este um homem idoso e
na noite do trágico acidente de que fora vítima a jovem "Flor de
Amor", ele, como de costume, com sua caixa de rapé na mão direita, estava
sentado num banquinho à porta de entrada dos depósitos, entregue às lembranças
da sua juventude.
Como
em tantas outras noites, o vigia estava entregue aos seus pensamentos, quando,
de súbito, do lado da água lhe pareceu vir um ruído, como se alguma coisa ali
se agitasse ou se alguém gemesse.
Estranhando,
com receio de se ter enganado, aguçou o ouvido, e então percebeu um certo rumor
na água, que aumentava cada vez mais, e que não podia certamente ser produzido
por nenhum peixe, por maior que fosse. Inquieto, desejando esclarecer aquele mistério,
o velho vigia foi até a margem, que ficava a poucos passos, e se curvou para
ver e ouvir melhor.
Naquele
justo momento um gemido, mais forte que o anterior, se fez ouvir, e desta feita
de modo a não mais deixar dúvida no espírito do vigia noturno, diante de seus
olhos, visível à luz da fachada do depósito, havia algo dentro d'água. O ruído
que ele ouvira antes, certamente fora produzido por algum movimento de braços,
que a criatura ainda tentava fazer.
O
guarda era velho, naturalmente não tinha muita força, mas era corajoso e cheio
de boa vontade. Embora pensasse que devia estar enganado e que os ruídos que
ouvia tivessem outra causa qualquer, não poderia deixar de ir ver, de
certificar-se sobre suas suspeitas.
Havia
um escalerzinho amarrado a um moirão, junto à margem, usado pelos funcionários
para pequenas pescarias. Embora estivesse com um bocado de água no fundo,
servia para o que ele queria. O velho entrou no barquinho e começou a remar
vigorosamente, no sentido da correnteza que, naquele ponto, era quase nula. Não
havendo luar aquela noite, pouco conseguia ver a sua volta e ia avançando às
cegas, procurando alcançar o ponto do qual achava terem vindo os ruídos.
O
valente ancião, no íntimo, pedia a Deus que o ajudasse a encontrar o que sua
vista, já um tanto curta, não lhe permitia ver com clareza. E o Senhor,
certamente, devia estar olhando cá para baixo, para aquele microscópico espelho
de água perdido na vastidão do mundo, porque, justamente quando, desencorajado,
o guarda já estava para desistir da busca, algo bateu num dos lados do seu
barquinho, que oscilou levemente. Largando os remos e inclinando-se para a
borda, em risco de fazer virar a frágil embarcação, o vigilante noturno
mergulhou ambas as mãos na água gelada e teve uma exclamação de surpresa e
satisfação ao mesmo tempo, ao sentir que segurava um braço humano. Por um
momento receou que se tratasse de um cadáver mas, pensando nos gemidos que
ouvira poucos minutos antes, concluiu para consigo que se o afogado estivesse
morto, a morte deveria ter ocorrido há pouquíssimos instantes.
Mas
talvez ainda fosse o caso de poder salvá-lo, talvez ainda estivesse vivo. Este
pensamento teve o poder de lhe reanimar o vigor e ele, procurando dominar o
perigoso sacolejar do barquinho, disse a si mesmo: "Força, José! Mostra do
que é capaz o pessoal da velha guarda!"
Ao
mesmo tempo, fez um tremendo esforço, como não se permitia há muitos anos.
O
lado do barquinho, sobre o qual se apoiava, inclinou-se de tal forma que quase
alcançou a altura da água, mas José, com a força do desespero, decidiu que
morreria ali, antes de desistir daquela penosa tarefa, da qual dependia a
salvação de uma vida humana. Não soltou o braço que segurava e, pouco a pouco,
foi conseguindo puxar aquela pessoa para dentro da embarcação. Conseguindo
isso, curvou-se imediatamente, colocando-lhe o ouvido ao peito, para ver se o
coração ainda batia. E foi ao fazê-lo que notou que se tratava de uma mulher!
Em
seguida, o bom homem decidiu praticar uma enérgica respiração artificial, tendo
antes virado a moça desfalecida de bruços, para que ela expelisse a água que
eventualmente tivesse engolido.
Terminada
a operação, pegou os remos e começou a tentativa de retorno à margem de onde
viera, ao pequeno desembarcadouro do depósito. Lá chegando, conseguiu retirar o
corpo da moça do barco e colocou-o sobre os degraus secos, debaixo do lampião
mais próximo.
E
viu então, diante dos olhos, atônitos e admirados, um rostinho de linhas
perfeitas, pálido como o de uma morta, envolvido por dourada massa de cabelos
cor de trigo maduro que, embora molhados, conservavam ainda traços da natural
ondulação.
-
Meu Deus! - exclamou o velho José, em voz alta. - Mas... Isto é um anjo!...
Deus queira que não esteja morta... Seria uma pena!
Esse
desejo de salvá-la levou-o a procurar, o mais depressa possível, um socorro,
uma ajuda, alguém que, em suma, estivesse em melhores condições do que ele, que
soubesse o que fazer naquela situação. Depois de pensar um pouco, nada achou de
melhor que correr até à estrada, a uns cem metros de lá, e assim fez, com toda
a velocidade que lhe permitiam suas pernas cansadas.
O
próprio Deus devia assistir Maria "Flor de Amor" àquela noite,
porque, mal o pobre homem pôs os pés na estrada, surgira ao longe a luz do
lampião de uma charrete que se aproximava a pouca velocidade. José correu para
o meio da estrada, começou a agitar os braços como um sinaleiro desesperado e
enlouquecido, tentando fazer com que o veículo parasse.
O
homem que levava as rédeas do cavalo viu de longe os sinais e freou a charrete,
descendo imediatamente para ver do que se tratava. Mas como viu o vigilante
noturno dos depósitos, que era seu conhecido, iluminado pela débil luz do
lampião, foi logo perguntando:
-
Que há, senhor José? Que tem? Está passando mal?
O
velho, ouvindo aquelas palavras, vibrou de alegria e respondeu:
-
Deus seja louvado! É o senhor, doutor! Venha, depressa, corra!
O
médico, que devia ser diplomado de pouco, a julgar pelo seu aspecto juvenil,
pegou-o pelo ombro e perguntou, ainda:
-
Mas fale! Que foi que aconteceu?
-
Tirei um anjo das águas do rio... Isto é, uma linda moça. Não sei se está morta
ou viva. Fiz respiração artificial... Ao meu modo... Agi certo, doutor?
Sem
nada mais perguntar, o jovem doutor tirou da charrete a sua maleta de médico,
com remédios e instrumentos de urgência e correu solicitamente atrás do velho,
que já ia à sua frente.
Quando
chegaram junto à moça desfalecida, o médico, a primeira coisa que fez foi
curvar-se para ela, tomar-lhe uma das mãos delicadas e frias, não sem antes a
olhar com interesse, encantado com a sua beleza. Tomou as pulsações e depois se
pôs de pé, ordenando ao velho que ficara a esperar, cheio de apreensão:
-
José, vamos levá-la para dentro e arranjar um lugar para deitá-la...
-
Está morta esta pobre moça, doutor?
-
Nada disso. Graças a Deus está viva, mas se não agirmos com rapidez, não viverá
muito...
Não
precisava dizer mais, para pôr em atividade o zelo do vigilante, que tanto
desejava salvar a vida do "anjo" que pescara depois de tantos
esforços, e com risco de morrer ele também.
Pouco
depois Maria "Flor de Amor" estava estendida na cama rústica do
velho, no quarto onde ele dormia. O doutor, tirando o casaco para colocá-lo
como agasalho sobre o corpo da jovem, disse:
-
Veja se prepara alguma bebida forte ou quente. Não haverá aí um pouco de vinho
ou conhaque?
O
velho piscou o olho, maliciosamente:
-
Deixe isto por minha conta, doutor! Eu não costumo beber, mas tenho aqui uma
garrafa de conhaque que, pelo jeito, deve ter uns dez anos.
-
E que está esperando? Vá buscá-la!
Enquanto
o médico massageava o coração de Maria "Flor de Amor", que estava
fraquíssimo, José foi buscar a garrafa e enchendo um copo grande, voltou ao
quartinho da portaria, exclamando:
-
Pronto, doutor George! Isto a fará pular como uma cabrita!
O
médico não pôde deixar de sorrir, ante o exagero do velho.
-
Isto é uma dose para homem, meu amigo! Tem intenção de afogá-la em conhaque,
depois de tê-la salvo de afogar-se em água?
-
Bem... Eu pensei...
-
Vamos, meu amigo José, não percamos tempo. Arranje uma colher, entende?
Colherinha...
Quando
o vigilante noturno trouxe o que ele pedira, o médico se curvou sobre a moça
desmaiada e fez descer pela sua garganta a fortíssima bebida. Depois, ficou à
espera do resultado.
A
beleza de Maria "Flor de Amor", mesmo naquelas condições, parecia fazer
o médico esquecer tudo. George Brancion até aquele momento havia agido quase
maquinalmente, com a típica indiferença do profissional habituado a considerar
o paciente apenas como "um caso", mas agora se interessava pela
mulher em si. Falando baixo, absorto na contemplação da moça, murmurou:
-
Sabe, José? É um verdadeiro anjo...
-
Oh, sim! - concordou com entusiasmo o velho guarda noturno.
-
E... Ela se salvará?
-
Tenho quase certeza, mas... O coração está pulsando mais regularmente, agora, e
já está respirando melhor. Quisera saber como pôde cair no rio a estas alturas,
numa zona como esta, onde à noite não passa quase ninguém. Que é que pensa
disso?
O
velho apanhou a caixinha de rapé que estava em cima da mesa e disse:
-
Não sei, doutor... Eu estava aqui sentado, cheirando o meu rapé, e ouvi,
primeiro, assim como uns gemidos. Depois o ruído que o corpo fazia na água,
como se se agitasse. Corri, entrei no barquinho e remei na direção dos ruídos.
Mas acho que ela caiu na água muito mais acima do ponto onde a apanhei. A
correnteza, aqui, é branda, mas lá em cima é forte um bocado. Aqui na represa a
água se espraia e fica mais tranquila...
George,
que não tirava os olhos da moça desacordada, nada respondeu e, depois, de algum
tempo, falou:
-
Olha... Está voltando a si... Abriu os olhos.
Maria
"Flor de Amor", realmente, fizera alguns movimentos lentos e, como
alguém que desperta de profundo e demorado sono, abriu um pouco os olhos,
depois os abriu completamente, ostentando-os em todo o seu azul celeste e
começou abater as pálpebras...
A
primeira coisa que viu foi o rosto simpático e jovial do doutor George que,
para demonstrar sua alegria de vê-la salva, sorriu francamente, dizendo:
-
Como se sente, senhorita?
A
jovem, porém, não respondeu logo. Seus olhos percorreram o pequenino aposento
do guarda noturno.
-
Onde estou? - murmurou, com voz muito tênue, quase imperceptível, a mocinha. -
Que houve comigo?
-
Está na casa de um bom amigo que a retirou do rio, onde estava quase a se
afogar, explicou complacente, o médico.
-
Quanto ao que lhe aconteceu, não sabemos. Sou o médico que ajudou o velho
senhor José a fazê-la voltar a si...
Maria
"Flor de Amor" tornou a olhar o médico e seus lábios se entreabriram
num pálido sorriso.
-
Obrigada...
Bastaram
aquela palavra e aquele sorriso para que o rapaz e o ancião se sentissem
suficientemente pagos pelo que haviam feito.
O
jovem facultativo, então, teve a impressão de que o próprio coração se
acelerava estranhamente;batendo com mais força e, pela primeira vez, em sua
carreira, não soube analisar o motivo. "Que diabo acontece comigo?",
pensou. "Tenho visto já tanta coisa, no exercício desta profissão, e
agora, diante de um caso tão banal, estou assim comovido?" Procurando
dominar-se e começando a pôr os seus pertences em ordem, na sua maleta
profissional, disse:
-
Agora, senhorita, se concordar, eu a levarei até a minha casa, onde, com o
auxílio de minha mãe, poderei ministrar-lhe os cuidados de que ainda precisa.
Seria penoso e até perigoso, para a senhorita, ser levada para o hospital mais
próximo, que está situado muito longe daqui, ao passo que a nossa casa fica a
apenas dez minutos de charrete. Não se opõe a isso, não é verdade?
-
Bem... Eu não sei...
Maria
"Flor de Amor" gostaria de falar, de saber algo mais sobre aqueles
homens, mas as pálpebras lhe começaram a pesar estranhamente. Um agradável
calor, depois estranha sensação de frio a invadiu e tornou a perder os
sentidos. George Brancion, satisfeito vendo sua paciente cair num sono
restaurador, voltou-se então para o velho guarda:
-
Vamos envolvê-la numa coberta e você me ajudará a levá-la até a charrete. Ela
precisa ainda de ser assistida e nem eu nem você, que somos homens, podemos
tirar-lhe essas roupas molhadas e cuidar dela. Minha mãe terá prazer em ajudar
essa coitadinha. A propósito, não havia com ela nenhuma coisa que a
identifique?
-
Não, doutor... Pelo menos eu nada vi.
-
Bem... Não percamos tempo, então. Os dois homens, com toda a delicadeza
possível, envolveram o corpo inerte de Maria "Flor de Amor" num
cobertor tirado da cama do velho. O moço a segurou por baixo dos braços, depois
a colocou no colo, como uma criança adormecida, saindo do aposento onde dormia
o guarda noturno durante o dia, e depois seguiu em direção à charrete, como se
não sentisse o peso da preciosa carga que conduzia.
O
velho José o acompanhou, levando a maleta e uma lanterna com que clareava o
caminho, para que ele não tropeçasse. Quando chegaram junto da charrete,
acomodaram a moça no banco, procurando ajeitá-la o mais comodamente possível. O
médico, então, pegou as rédeas do cavalo e disse, pondo o veículo em movimento:
-
Você foi formidável, José! Nem todo mundo faria o que você fez! Quando o
"anjo" ficar bom, dir-lhe-ei que venha agradecer-lhe pessoalmente!
Fica satisfeito?
O
bom velhinho José limitou-se a acenar que sim, com a cabeça, emocionado demais
para falar. E quando a charrete desapareceu na curva da estrada, ainda ficou
com a lanterna erguida acima da cabeça, com os brancos cabelos a brilharem na
escuridão, a outra mão em pala sobre os olhos, como se esperasse ver surgir
novamente um anjo louro, que, agora, já ia longe...
Que legal esse capítulo, Paulo! Felizmente Maria "Flor de Amor" foi salva e parece que pelo menos por enquanto, os que querem prejudicá-la ficarão ignorando esse salvamento. Muito bom! Bjs.
ResponderExcluirSerá que Flor do Amor ficará oculta? Qual será o futuro de Luís Paulo? E Denise, será desmascarada? Estou aguardando ansioso os próximos capítulos...
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