A
crônica que reproduzimos abaixo é da autoria de Nelson Rodrigues.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar: www.releituras.com/nelsonr_bio.asp.
Boa
leitura!
O JUIZ LADRÃO
De
vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito esplêndido, que vive
enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e realizado no passado como um
peixinho num aquário de sala de visitas. E convenhamos que isto é bonito, é
lindo. Outro dia, um deles
atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-me para o fundo de um café, e, lá,
com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a falar de Marcos de Mendonça, o
“Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do assassinato de Pinheiro Machado e do
campeonato que o Botafogo tirou em 1910. Mas, nos vinte minutos da conversa
retrospectiva, já lhe pendia do beiço uma grossa, uma espuma bovina, uma baba elástica.
De mim para mim, compreendi essa nostalgia, louvei essa fidelidade ao passado.
Amigos, eis uma verdade eterna: — o passado sempre tem razão.
Por
exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito mais rico,
complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juízes e os bandeirinhas se parecem
entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma
dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um
bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo. Outrora havia o
“juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juízes são de uma chata, monótona e alvar
honestidade. Abra-hão Lincoln não seria mais íntegro do que Mário Vianna. E
vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas exala um tédio
homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito em honestidade
sem acidez, sem dieta e sem úlcera. Mas ponha-se um árbitro insubornável diante
de um vigarista.
E
verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida
variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexeqüível o juiz ladrão. E é
pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque dramático
para os jogos modernos.
Vejam
vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol tem 22 homens.
Com o juiz e os bandeirinhas, 25.
Acrescentem-se
os gandulas e já teremos um total de 29. Vinte e nove homens e nem um único e
escasso canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria
um Balzac ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo
tornam impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode
existir, mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.
Mas
em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa fauna, uma luxuriante
flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas os salafrários podiam apitar as
partidas e com que glorioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até
interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de
graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem
os adversários?
Tentam
suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o
homem optou pela solução mais equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se
lhe faça: — roubou da maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao
soar o apito final, os 22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o
gângster já se antecipara, já estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e
alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.
[Manchete Esportiva, 31/12/1955]
Fonte: http://www.felu.xpg.com.br/A_Sombra_das_Chuteiras_Imortais_Nelson_Rodrigues.pdf
Gostei! Engraçada!
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