O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXXVII
INFELICIDADE
CONJUGAL
A
natureza fora muito pródiga com Denise e Luís Paulo. Ambos tinham tudo:
mocidade, beleza, riqueza, saúde. Não obstante, ambos se consideravam as
criaturas mais infelizes que existiam na face da Terra. Denise, que acabara de
se apaixonar profundamente por Luís Paulo, exasperada com a sua frieza, daria
tudo o que tinha tão duramente conquistado, usando os mais pérfidos recursos e
simulações, em troca do amor daquele marido que, por seu lado, considerava-a
como uma calamidade em sua vida, uma desgraça que lhe desabara em cima e que
não pudera evitar.
Luís
Paulo, por sua vez, sacrificaria de boa vontade todo o seu patrimônio, já que o
dote trazido por Denise estabelecera o equilíbrio à sua situação financeira, em
troca de reaver Maria "Flor de Amor", a moça que, para ele, valia
mais que a própria vida. Já não era visto, agora, a andar pelo interior do
palácio. Trancado na biblioteca, ou no
quarto de solteiro, passava os dias inteiros a recordar aquela que acreditava
estar morta e evocar os poucos momentos de felicidade que tinham desfrutado em
comum. Criara, assim, uma espécie de um mundo próprio, feito de recordações e
de tristeza. Nada do que, antes, lhe causava prazer, o satisfazia agora, era
como se tivesse envelhecido uns trinta anos. Denise sentia-se ainda mais
infeliz que Luís Paulo. Em sua alma primitiva e exaltada se agitavam desejos de
vingança, almejava fazer mal, desafogar seu instinto cruel, por tanto tempo
reprimido com a finalidade de alcançar o fim que, agora, para ela se
transformara em verdadeira tortura! Aguardava a chegada da noite com verdadeiro
pavor, porque vinha acompanhada de terríveis pesadelos. Parecia-lhe, às vezes,
que as sombras dos salões do palácio se transformavam, animavam-se como se
fossem espectros e movimentavam-se de modo apavorante.
Acordava,
às vezes, gritando, tremendo de medo, e ficava sentada na grande cama de casal,
com os olhos abertos, o coração aos pulos, como que à espera da chegada de
alguém, de algo que iria acontecer...
Nada,
porém, acontecia, embora ela, às vezes, bem que o desejasse, e seus nervos,
extremamente tensos, deixavam-na numa excitação sem precedentes,
desgastando-lhe o organismo.
Às
tardes, algumas vezes, quando se estava a vestir, detinha-se diante do espelho,
a observar a própria sedutora beleza. Olhava quase com ódio o próprio corpo,
tão perfeito, cheio de atrativos, que bem poderia propiciar a felicidade de
algum homem, mas que deixava absolutamente indiferente o único que agora ela
amava. O quarto de solteiro de Luís Paulo ficava justamente acima do dela e o
fato de sabê-lo ali, ainda aumentava o seu desespero.
Aquele
homem, que ela gostaria de amar com toda a exuberância de sua juventude,
provavelmente naquele momento estaria lembrando-se de Maria "Flor de
Amor", esquecido que ali, no palácio, quase ao seu lado, estava sua
mulher, sua companheira para o resto da vida, que morria de amor por ele.
Denise passava os dias em seu aposento privado, estirada no leito, trajando
belas roupas na esperança de que Luís Paulo lá entrasse, ao menos para trocar umas
palavras com ela. Vãs, porém, eram essas suas esperanças!
Vivia
a espreitar a porta fechada e chegava a ter dor de cabeça, de tanto pensar
naquilo. E quando as trevas desciam, como um véu, sobre o palácio, ela, a
belíssima Denise, ficava a mendigar um pouco de amor, ouvindo no andar superior
os passos do jovem barão, a caminhar de um lado para outro.
E
aqueles passos continuavam a ser ouvidos horas inteiras, com uma regularidade
enervante, exasperante mesmo!
Luís
Paulo, a sós com a sua dor, não sentia sono, e as noites, ele as passava
acordado, às vezes bebendo algum licor, mas nada daquilo lhe trazia o
esquecimento que desejava e, dia a dia, caminhava para um estado de saúde e de
espírito capaz de inspirar piedade desde aquela noite em que pouco faltou para
que na febre do desespero atentasse contra a sua própria vida.
Denise
apertava a cabeça entre as mãos, procurava tapar os ouvidos para não ouvir, mas
os passos do marido lhe ecoavam no cérebro, provocando verdadeiro sofrimento
físico.
"Por
que não dorme?", perguntava ela a si mesma, desesperada, temendo, por sua
vez, enlouquecer. "Em que pensa ele nesta noite que não termina? Será
possível que um fantasma possa encher assim uma vida? Vai arruinar-se, acabará
morrendo, suicidando-se... Oh! Não pode continuar assim! As maldições, as
pragas de minha mãe, caíram sobre nós! Não posso, não tenho meios de lutar
contra um espectro... O espectro de uma mulher que, apesar de estar morta,
ainda é completamente senhora da vida de meu marido!
Denise,
pelo que soubera de Ubaldo, o detetive, estava firmemente convencida de que
Maria "Flor de Amor" morrera afogada.
Quando,
finalmente, Denise conseguia dormir um pouco, pesadelos apavorantes a
atormentavam e seu sono durava apenas poucas horas, sem lhe dar a necessária
sensação de repouso.
Levantava-se
tarde, no dia seguinte, de mau humor, e a primeira coisa que perguntava à sua
camareira, quando a ajudava a vestir-se, era:
-
Onde está o senhor barão?
A
resposta era sempre a mesma:
-
Saiu muito cedo, a pé. Está passeando pelo campo.
Ou,
se não era essa, era esta outra:
-
Está na biblioteca. Nem o desjejum quis tomar.
Acontecia,
assim, que Denise e Luís Paulo só muito raramente se viam e sempre às pressas,
porque o jovem barão não parecia desejar outra coisa senão estar sozinho.
Até
nas horas das refeições arranjava uma desculpa e não comparecia à mesa, no
grande salão, e quando por acaso isso acontecia, sua conduta era tal que Denise
sentia-se ainda mais sozinha do que quando ele não estava à sua frente. Em vão,
ela tudo fazia para lhe chamar a atenção, para se fazer notada por ele, e,
reprimindo os ímpetos que sentia de apelar para a violência, como lhe pedia seu
instinto, usava toda sorte de atenções para com ele, sempre com a esperança de
ouvir uma palavra, um comentário, que lhe dessem a sensação de estar diante de
um homem, de seu marido, e não de um estranho indiferente. Nas raras vezes em
que se encontravam à mesa, procurava, em vão, indagar sobre seus projetos, seu
programa para o dia seguinte. Dominando o tremor da própria voz, perguntava:
-
Vai passear amanhã cedo pelo parque?
E
ele, correto sempre, mas seco, respondia:
-
Não... Não creio. Tenho muita correspondência a atender.
-
E à tarde?
-
Tenho que ler um livro que me interessa muito. Ficarei na biblioteca.
-
Virá jantar, à noite?
-
Desculpe-me, mas já dei instruções para que levem o jantar ao meu gabinete.
E
era sempre assim! Cada tentativa de aproximação resultava invariavelmente em
vão!
Finalmente,
vendo que nada conseguia vencer a apatia de Luís Paulo, Denise começou a viver
sua vida, abriu os salões do palácio, recebeu gente amiga, organizou mesmo
bailes, gastando milhões, na esperança de distrair-se, de esquecer, ou de
provocar a reprovação do marido. Como, porém, se enganava também sobre esse
ponto! Luís Paulo não se deu ao trabalho de fazer a mínima observação, nenhum
reparo ou objeção, limitando-se a não aparecer, a não aprovar com a sua
presença nenhum dos divertimentos organizados por ela. Absolutamente alheio a
tudo, desinteressava-se tanto da mulher como das demais pessoas.
Uma
tarde, Denise estava experimentando um dos vestidos que acabavam de ser
mandados pela modista e que pretendia usar numa festa, quando Rosane, a
cúmplice de Ubaldo, o detetive particular, que ela havia admitido na qualidade
de camareira particular, entrou no aposento e disse:
-
Senhora baronesa, o senhor conde Fernando acaba de chegar. O mordomo o fez
entrar para o salão, onde está à sua espera. Devo dizer-lhe que venha até aqui?
Nos
últimos tempos Denise vinha procurando evitar encontrar-se com o suposto pai,
com receio de que ele lhe fizesse perguntas sobre seu estouvado modo de agir e
também porque se sentia envergonhada de ser incapaz de conquistar o amor de Luís
Paulo. Mas agora sua tensão nervosa era tal que só o pensamento de poder estar
com ele, de poder desafogar com alguém as suas mágoas, lhe deu coragem, e
decidiu buscar nele uma espécie de benéfica influência.
Por
isso ordenou a Rosane:
-
Diga a meu pai que venha até aqui. Vou levar algum tempo ainda a me ajeitar e
ele vai entediar-se, esperando.
A
camareira apressadamente cumpriu a ordem e um instante depois o conde Fernando,
mais envelhecido do que na última vez em que a falsa filha o tinha visto, dava entrada
no aposento particular da moça. Rosane fechou a porta, assim que o fidalgo
entrou e, logo depois, anotou num caderninho que trazia sempre consigo que o
conde Fernando veio visitar a filha, às seis da tarde.
Essa
anotação, como muitas outras, ela as fazia por ordem do detetive Ubaldo, que a
incumbira de mantê-lo informado de tudo o que acontecesse no palácio, embora
aparentemente fosse coisa sem nenhuma importância. Enquanto isso, Fernando,
depois de haver beijado Denise na testa, dizia-lhe:
-
Minha filhinha, não avalia como tenho sentido a sua falta, desde quando deixou
o nosso palacete!
-
Também ando saudosa, papai...
O
conde Fernando, com a sua rara sensibilidade, logo notou que havia algo anormal
no jeito da filha e, adivinhando-lhe a causa, perguntou, com aparente
indiferença:
-
Luís Paulo não está?
-
Não sei, papai - respondeu Denise, sem olhar para ele. Durante todo o dia não o vi. Quer falar com
ele?
-
Não. Vim para estar um pouco com você, para ouvir as suas impressões sobre a
vida matrimonial. Que sensação lhe dá a condição de esposa?
Denise
trincou os dentes e esteve a ponto de se pôr a gritar a sua dor, a sua cólera.
Mas se conteve e respondeu com a maior indiferença:
-
Nem sei... Não é coisa do outro mundo...
-
Não parece muito entusiasmada com o casamento... Estou enganado? Não é feliz,
acaso?
-
Ora, papai! Que pergunta! Por que não haveria de sê-lo?
Fernando
tomou a mão da moça e fê-la sentar-se ao seu lado.
Depois,
acariciando-lhe levemente os cabelos sedosos, disse:
-
Escute, Denise. Vamos falar claro de uma vez por todas. Não sou mais um
rapazinho e, portanto, deve compreender que possuo muita experiência. Assim
sendo, tenho percebido muita coisa que você não me quer dizer e vim de
propósito, hoje, para conversarmos.
Denise,
sem responder, baixou a cabeça. No íntimo, estava satisfeita por poder
desabafar com alguém a sua ira, seu rancor. Sentia que não seria possível
continuar vivendo daquela maneira.
-
Você me esconde qualquer coisa - continuou o conde Fernando - e isso, me
entristece muito. E mais me magoa ainda o fato, de você não ter confiança em
mim...
-
Mas não é verdade, papai!
-
Sim, é verdade, e talvez não seja por culpa sua. Se sua mãe pudesse entendê-la,
conversar com você, aconselhá-la... Infelizmente, porém, o estado dela piora
continuamente e receio que agora já estejam perdidas todas as esperanças, não
só de lhe restituir o uso da razão, mas de salvar-lhe a vida...
A
filha da marquesa Renata, que se fazia passar por filha de Marta Aubert,
sentiu-se no dever de simular tristeza e fingiu enxugar uma lágrima:
-
Pobre mamãe!
-
Sim, é uma grande infelicidade ela estar naquelas condições! Graças a Deus,
porém, aqui estou eu, que sou seu pai, e que daria até a vida para poder
ajudá-la, diga-me: não tem mesmo confiança em mim?
Embora
Denise nada tivesse de uma moça tímida, muito ao contrário até, corou
visivelmente. Não tinha a coragem de confessar que era a mulher de Luís Paulo
apenas no nome e não de fato. Era por demais humilhante! Fernando após breve
pausa continuou:
-
Eu esperava que você viesse a mim. Flora e eu falamos longamente sobre você e
decidimos, afinal, que era meu dever procurar saber se minha filha é realmente
feliz.
-
Flora é tão boa! - comentou Denise, embora pensasse exatamente o contrário e
considerasse a outra como uma intrusa maldita. - Houve uma ocasião em que agiu
como verdadeira mãe para comigo.
-
E justamente porque seus sentimentos são os de uma verdadeira mãe é que se
sente inquieta. Denise, querida, você precisa deixar essa vida de divertimentos
e distrações que está levando. Flora e eu estivemos pensando muito nisso. E vou
dizer-lhe a minha opinião: você não tem absolutamente o aspecto, o ar de uma
esposa feliz!
-
Papai, eu...
-
Não me venha com desculpas agora. O fato é evidente, infelizmente. Aliás, eu
tive esse pressentimento desde o dia do seu casamento. Diga-me uma coisa, antes
de mais nada: como se comporta Luís Paulo com você?
Novamente
Denise estremeceu.
-
Em que sentido?- perguntou.
Sentira
a princípio, o desejo de se abrir, de contar tudo, mas agora, chegado o momento
em que deveria fazê-lo, parecia-lhe menos conveniente ainda descrever toda a
sua infelicidade, todo o seu sofrimento, seu abandono, as noites de insônia e
Solidão. Isso acontecia talvez porque ela sabia que Fernando não era seu
verdadeiro pai e considerava sua opinião, seus conselhos, como, simplesmente,
os de um homem estranho.
-
Não brigaram nunca? - perguntou ainda, prudentemente o conde Fernando.
-
Não... Nunca...
-
Então, Denise, que está havendo? Eu sou seu pai... Por que não tem coragem de
falar? Diga-me a verdade, que há com vocês? Qual a nuvem que empana a sua
felicidade, que obscurece a sua vida? Ama Luís Paulo, não é verdade?
Desta
feita, a filha da marquesa Renata ergueu a cabeça, bruscamente, e seus olhos pareciam
desprender centelhas.
-
Você, papai, pergunta se eu amo Luís Paulo...
Amo-o a ponto de ver o céu aberto quando ele me olha. Ele está no meu
sangue, é minha própria vida. Se o perdesse não conseguiria continuar vivendo.
-
Mas, e então? Que há?
Denise está tendo o que merece. Vamos ver se não vai aprontar mais alguma...
ResponderExcluirDenise está colhendo o que plantou. E Fernando coitado, sempre por fora, ignorando boa parte dos acontecimentos. Ainda bem que Denise pensa que Maria "Flor de Amor" morreu, senão poderia matá-la realmente! Muito bom Paulo! Bjs.
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